Era sexta e eu arrumava minhas coisas. Finalmente iria pra casa ver minha mãe. Ainda não acreditava que minha mãe tinha CÂNCER. Precisava ser forte por ela, mas eu não conseguia. Era comum acordar a noite suando frio e chorando. Umas duas vezes, Nylo me ouviu gemer e gritar durante o sono e me acordou.
- Você vai querer uma carona não é?
- Não... Não precisa obrigado – Sorri.
- Deixa de coisa... Você quer e ponto final – Nylo tentava me convencer a pegar carona com ele.
Depois de um tempo cedi. Fomos conversando até o carro do Nylo. O motorista abriu a porta e o Nylo e eu já íamos entrar quando uma mão segurou no meu braço.
- Espera! – Era o Jean.
- Desculpe Jean, não posso conversar agora, estou indo embora e incomodando também o Nylo que está doido pra ir pra casa logo.
- Nylo, O Ruy vai comigo hoje que precisamos conversar, ok?
Acho que Nylo ficou impressionado porque Jean se dirigiu a ele assim... O que me fez ter certeza que isso não era costumeiro.
– Tu..Tudo bem, Vai com ele Ruy. – Nylo me disse e fechou a porta. Jean tomou minha mochila e jogou no banco de trás do carro dele.
- Vem, entra! – Ele comandou.
- A contragosto entrei no carro e ele começou a dirigir. Automaticamente ele começou a exibir aquele sorriso idiota e deixou o mau humor de lado.
- Por que tá rindo como um idiota? – Perguntei emburrado.
- Nada uai... Só to feliz!
- Então... O que quer falar comigo? – Perguntei seco.
- Quero falar sobre aquele dia... Sobre nós.
- Não temos nada para falar, Jean, acho que você deveria ir conversar com sua namorada... Não comigo. Ela deve estar por ai, te esperando.
- Eu não tenho namorada... – Ele falou e já estava mais sério.
- Eu vi... Você quase foi suspenso por quase fazer sexo na frente de uma sala de aula cheia de estudantes.
- Ela foi só um peguete... Você sabe disso.
- Eu não sei de nada...
- Eu estava com raiva de você, tá bom? – Ele falou com raiva.
- Raiva? De mim? Por quê?
- Você parece sabonete Ruy... Parece que gosta de me fazer de idiota. – O sinal fechou e ele olhou pra mim – Eu gosto de você, tá bom? Que mais eu tenho que dizer...
- Tá... Isso é demais pra mim. Eu não acredito que você goste de mim assim, acho que você tá confundindo as coisas na sua cabeça.
- PARA! Para de querer saber dos meus sentimentos mais que eu.... Eu sei o que eu sinto tá bom?
- Como alguém como você pode gostar assim de alguém... Como eu – Baixei a cabeça e ele olhou pra mim.
Nessa hora meu celular tocou e ele não falou nada. Eu olhei o número e era desconhecido, estranho.
Atendi e uma voz falou:
- Alô? É o Rubens Freitas que está falando?
- Sim... Sou eu. Não conseguia reconhecer a voz.
- Aqui é o Hospital x.
- Sim? – Aquele era o hospital de Câncer que eu costumava visitar. Deixei meu número lá porque me sentia meio responsável por Clarita, que não tinha nenhum familiar, nenhum conhecido ou um amigo...
- Olha... Você deixou esse número aqui por causa da Clarita Medeiros Rocha, certo?
- Sim... Isso mesmo, ela é... Uma amiga minha.
- Certo, bem... Lamento informar, mas a criança faleceu hoje. – Ela continuou falando, mas eu já não estava ouvindo... Na verdade meu cérebro parecia ter desligado minha conexão com audição, olfato, visão, tato e paladar. Eu naveguei pra uma outra existência... Um outro plano. Não é possível que aquele criança tão... Especial tivesse simplesmente morrido. Simples assim, somente deixou de existir! Lágrimas caiam do meu rosto, mas minha pele não as sentia rolar. Sei que Jean falava alguma coisa, talvez perguntando se estava tudo bem ou que tinha acontecido... Não tenho certeza. No celular, sei que a enfermeira ou quem quer que seja também falava algo, mas eu não ouvia.
Não sei quanto tempo fiquei assim, desconectado da realidade... Mas do nada eu voltei. As coisas entraram em foco. E percebi que a ligação tinha sido encerrada, a enfermeira deve ter cansado de chamar e desligou. Jean havia parado o carro e me balançava me pedindo pra responder. Então mais lágrimas caíram do meu rosto, mas dessa vez elas vieram acopladas de muita dor. Eu baixei a cabeça e chorei mais... Então falei:
- Jean... Por favor... Dirige, por favor – Então eu lembrei que ele não tinha obrigação nenhuma de me levar a lugar algum. Se eu quisesse ir, deveria pegar ônibus. Mas iria demorar muito mais então falei mais enfaticamente – Por favor, Jean, Por favor... Dirige por favor, e disse o endereço. Faz esse favor pra mim. Ele desistiu de me perguntar aonde íamos ou o que estava acontecendo e somente dirigiu enquanto eu chorava demais.
Lentamente fui mergulhando no lugar aonde eu ia somente em situações especiais. Totalmente paralela à realidade. Até que Jean falou e agora, para onde vamos... Estávamos na rua do hospital, dei as últimas coordenadas do lugar até que chegamos. Sei que o Jean deve ter queimado alguns neurônios perguntando o que diachos eu estava fazendo ali. Quando ele estacionou, eu somente sai do carro e nem o chamei para ir comigo, nem o mandei esperar ou mesmo agradeci... Eu simplesmente saí e deixei meus pés me guiarem. Eu queria muito ir lá, mas ao mesmo tempo estava com muito medo do que veria. Senti uma presença perto de mim, mas não me virei. Eu sabia que era o Jean que estava me acompanhando. Prendia meus braços fortemente em meu tórax. Receava que eu pudesse simplesmente abrir ou explodir por causa da sensação que me corroia. Falei com uma enfermeira que eu conhecia e ela me deu um rápido abraço de consolo. Ela foi guiando ao Jean e a mim pelos corredores e percebi que não íamos pra sala onde a Clarita e as outras crianças costumavam ficar. Ela abriu a porta de um quarto e senti um pequeno calafrio... A temperatura do quarto era muito baixa e percebi que devia ser ali onde guardavam os defuntos.
Em uma das camas, havia um invólucro totalmente coberto por um cobertor branco. Fui andando, Mas Jean e a enfermeira ficaram na porta, devagarzinho me ajoelhei ao pé da cama. Peguei o lençol para removê-lo de cima do rosto da Clarita, mas tirei a mão rapidamente. Coloquei a mão na boca e suprimi um pequeno grito de dor. Eu queria correr dali... Correr e nunca mais olhar para trás. Nunca mais voltar a essa sala que cheirava a morte. Sabia que esse momento me atormentaria eternamente e sempre me visitaria em pesadelos. Milhares de imagens da Clarita sorrindo e brincando passavam pela minha cabeça. Respirei fundo e Devagar, fui de novo tentando tirar o lençol e desta vez consegui. Ela estava lá. O couro cabeludo de sua cabeça, livre de qualquer fio de cabelo estava cheio de veias rochas que se perdiam em seu crânio. Seus lindos lábios que já me sorriram tanto estavam num pálida cor de violeta. Seus olhos estavam tão fundos e marcas marrons os arrodeavam. Acho que ela não teve uma morte tranquila, mas sabia que jamais seria capaz de obter essa informação das enfermeiras e médicos.
A enfermeira falou com uma voz triste – O corpo vai ser cremado hoje à tarde, o diretor não vê razão para adiar mais já que ela não tem qualquer família – Observei as feições da Clarita e apesar de tudo, ela parecia tão serena... Minhas mãos se dirigiram tentando encostar nela... Tentando fazer-lhe uma última carícia naquele corpo inerte daquela menininha. Como era possível? Como Deus simplesmente pôde permitir que ela morresse? Do nada? Será que Ele resolvera vinga-se dela pelos pecados de alguém da sua família? Ele a deixou órfã? A deixou doente e simplesmente remove a vida dela? Isso por algum acaso é justo?!
Minha mão encostou nela e um calafrio sombrio percorreu todo meu braço e se perdeu pelo meu corpo. Seu corpo estava gélido eu fiz aquele típico barulhinho que fazemos quando nos assustamos e tirei a mão. Fui vagarosamente colocando a mão de novo e desta vez não a tirei. Acariciei seu rosto, seus lábios, sua cabeçinha então senti o controle se esvaindo.
- Não, não, não, não Meu Deus... Por favor, não! Minha voz alteava e mais lágrimas rolavam pelo meu rosto. – Abracei o corpo inativo da menina que tanto sofreu e me perdi nesse abraço. Meus braços travaram ao redor do cadáver dela e apesar de sentir que mãos me puxavam eu me recusei a sair daquele abraço... Sabia que no fundo, alguém me pedia pra ir, mas não queria. Então senti alguém me abraçando por trás e soube que era o Jean – Naquele momento, aquele sentimento indefinido que eu tinha por ele se tornou claro. Eu estava apaixonado. Sorri e deitei minha cabeça no peito de Clarita. Como eu queria ter estado ali pra me despedir. Sussurrei pra ela – Por favor... Me perdoa por não ter estado aqui meu amorzinho.
- FAÇA ALGUMA COISA! – Jean gritou pra enfermeira ou as enfermeiras que estavam no quarto... Não sei dizer e pouco tempo depois senti uma picada no braço. Por causa da dor, olhei pra cima e percebi que haviam me aplicado uma injeção... Se a dor daquela picada tivesse sido maior que a dor que eu estava sentindo naquele momento... Ahhh, como teria sido bom... Poder se concentrar em outra coisa, pra variar!
Foi então que percebi outra coisa... Eu era um traste quando se referia a lidar com a morte. Eu não lidava bem com ela e nem com suas consequências. Foi então que eu soube que jamais seria médico, atendente de hospital, enfermeiro ou qualquer outra coisa ligada a saúde humana. Também jamais voltaria naquele hospital para fazer visitas... Por mais que gostasse das outras crianças. Eu não queria ter que passar por isso outra vez. Eu sabia que era uma decisão egoísta, mas eu simplesmente não era capaz... Lamento.
Lentamente perdi a consciência e deixei que a inércia trouxesse a paz que ela geralmente nos promete.