Não foi estupro. Ele só não sabia que eu era virgem. Não sei dizer quem desejou quem primeiro. Eu já o via de longe, com desejo, como também olhava para todos, todos os homens com quem eu cruzava na rua. No início do fogo dos hormônios, não é exagero dizer que eu já acordava pensando em sexo, exatamente como meus primos: eu sempre olhava para o meio da perna de homens, parentes, amigos, desconhecidos na rua, enquanto meus primos tentavam ver mulheres da família tomando banho. O mesmo fogo com alvos diferentes.
Tenho dificuldade de dizer se ele era o dono da reciclagem ou mecânico. Não nos tornamos amigos nem depois que ele passou a me comer. A conversa nunca foi uma conversa. Há muitos modos de se comunicar, e a gente se comunicava mais por gemidos e apertões do que com palavras. Ele sabia o que fazer e eu aceitava. Enquanto aceitei.
Sempre sujo, mas não com cara de descuidado, ele se sentava sobre pneus e ficava coçando o saco a tarde inteira. Carrocinhas de reciclagem vinham e iam o dia inteiro, e ele pagava por papéis e latinhas. E de vez em quando trocava um pneu. E eu o observava, até sem querer, pela janela do quinto andar do prédio.
Lembro que nessa época eu tinha desejo pelos dois porteiros de meu prédio. Ao menos um eu sabia que entendia que eu o queria dentro de mim. Me tratava com desdém quando havia outros moradores perto. Quando eu entrava sozinho, me olhava no fundo dos olhos, sem um único boa tarde. Eu me sentia pelado na frente do Vantuir. Ele sabia e eu sabia que ele sabia. Nessa época eu tinha mais medo e desejo do que determinação.
Foi com todo este tesão e ansiedade reprimidos que tudo passou a se desenrolar. Voltando da escola, ao passar pela frente da reciclagem, a cena repetida: ele com a mão coçando o saco. Meus olhos sempre me traíam. Cheguei a imaginar o cheiro daqueles dedos. Vestia cueca? Sem cueca? Suado? Sujo de graxa, como suas mãos?
Ele me contou muito depois que os meninos da escola disseram a ele que já haviam me comido. Era mentira. Ele acreditou. Bastou isso para não se sentir culpado de seguir adiante e me usar.
Não o estou desculpando. Nem culpando. Eu queria. Ele sabia, e aguardou a hora certa para começar a abordagem. Primeiro com comentários vazios sobre como estava quente o dia. Depois fazendo questão de mostrar que sabia meu nome e de minha mãe. Depois a aproximação, fazendo questão de eu apertasse sua mão ao passar em frente às lojas: 'não dá boa tarde pros amigos?'
Ofereceu-me cerveja num dia em que passei mais à tarde e ele estava com uma latinha. Dois outros garotos (não sei se recicladores) bebiam com ele. Não aceitei.
__ Tá louco? Não posso.
Todos riram. Existe um código masculino que deixa bastante claro quando você não satisfez os critérios para ser considerado macho. Eles todos me tratavam assim: menos do que homem. Quem não bebia cerveja. Quem ficava com olhos arregalados sempre que fingiam coçar o saco ou fazer xixi ao lado dos pneus. Talvez nem fizessem xixi. Eu era um joguete e eles se sentiam certamente mais importantes quando eu dava a seus pintos a atenção que as mulheres certamente não dariam a homens sujos de graxa. Tolas.
__ 'Criança que faz criança não é mais criança e já pode beber', ele disse, e riu, segurando a pica com uma mão e a lata com a outra.
Um dos meninos batendo o pé no chão – nunca esquecerei – e rindo, repetia: ele quer fazer bebê no bebê, fazer bebê no bebê.
Lembro de meu coração acelerar, de não saber como reagir, de seguir adiante e só me acalmar depois de fechar a porta de casa. Incapaz de reagir.
O primeiro dia foi mais tarde do que de costume. Passei pela frente das lojas e imaginei que ninguém lá estaria. Portas fechadas. Assim que olhei pra trás ouvi a porta de ferro se erguendo e a cena repetida: “nem dá boa tarde pros amigos”.
Estava sozinho. Sozinho com ele eu ficava mais seguro do que quando havia mais homens nos observando. Voltei alguns passos e estiquei a mão, dizendo que nem sabia que havia gente lá nesse horário. Me contou que estava dormindo lá já tinha mais de um mês, mas que fechava a porta para não ter que ficar atendendo clientes na hora de descansar.
Ele dizia isso e não soltava minha mão. Uma mão segurando minha mão, num aperto de mão eterno, e a outra mão enfim em meu ombro.
Carinho em meu ombro. Eu tentando entender até quando aquele aperto de mão poderia durar.
A mão na minha nuca, dizendo que gostava quando eu passava lá na frente. Que eu lembrava ele de um amigo que ele tinha quando também era garoto. Perguntou meu sobrenome, como que pra saber se eu por acaso não seria parente desse amigo dele de infância. Não era.
Soltei minha mão quase à força. Voltei para casa. Fui à janela e ele olhava para cima. Fez sinal com a mão pra eu voltar. Eu sabia. Ele sabia que eu ia voltar.
Caminhei até ele depois de mentir à minha mãe que iria à praça. Ele não achou que tinha que fingir mais nada, e ergueu a porta me mandando entrar rápido.
Fechou a porta atrás de nós e esvaziou a mesa de trabalho enquanto ia tirando a própria roupa. Quando me deitei sobre a mesa o ouvi pela primeira vez: não vou me deitar em você.
Viu que eu não sabia reagir e me posicionou de pernas abertas e as mãos sobre a mesa. Veio por trás e eu fugia sempre que ele investia contra minha bunda, que ele mesmo fez ficar nua, abaixando meu short.
Reclamou, bastante. “não quer dar, caralho”.
Abriu a porta. Achei que não o havia satisfeito. Voltou a insistir que eu esperasse e me levou para as escadas do predinho de apartamentos e lojas. Voltou a forçar meu short pra baixo. Entendi que me comeria nas escadas. Fiquei de quatro, desta vez sem espaço para fugir pra frente, com os joelhos presos pelos degraus.
Ele se enfiou em mim de uma vez. Não chorei porque havia apartamentos e portas. Lembro bem das portas, que eu temia que se abrissem enquanto ele continuava a se enfiar e sair de mim, sem dó, porque achava que eu já era da vida.
Meteu pouco, mas vigorosamente. Depois me contou que machucou seu pinto na penetração. Quando falei que eu também voltei para casa sangrando, não acreditou que eu era então virgem. Foi quando revelou que os amigos da escola diziam que eu já sabia dar.
“por isso meu pinto ficou em carne viva”.
E eu dizia para ele que não queria de novo. Estava convencido de que nunca mais ia querer aquela tortura.
Quinze dias depois minha determinação não era tão grande, e ele conseguiu novamente, mas desta vez aceitou deitar-se sobre mim. Acho que era um prêmio por eu não ter dado nunca para outro. Gozava dentro de mim e me mandava embora, olhando pros dois lados da rua antes de me deixar sair.
E depois disso quando eu ia à janela do apartamento sempre havia a vontade e o medo de que ele estivesse lá, me esperando. Preferia quando ele estava só. Quando havia outros eu sabia que eles sabiam que eu sabia que eles sabiam.
Eles sempre sabem.