Não me lembro muito bem, mas aquele beijo era tão gostoso. Não faltava nada porque era totalmente completo, todo incrementado com doçura, delicadeza, sabor, e um toque especial: eram os lábios do Ícaro. Suas mãos estavam trêmulas e geladas, e como estavam encostadas em minha cabeça, senti alguma coisa vindo delas. Não sei o que era de verdade, mas era algo como se fosse um desejo, um amor... Não me lembro bem.
E sobre o tempo: duraram uns dois minutos. Foi o beijo mais longo que eu dei. Achei, por um momento, que foi o do Ícaro também. Eu me senti especial por causa disso. A parte mais constrangedora foi quando o beijo terminou. Ícaro com o pau duro na cueca, sentado na beirada da cama, olhando pra mim... Eu não disse nada, tampouco olhei pra ele, diretamente. Seu corpo e seu pau marcando na cueca eram meus atrativos. Ele só se levantou e saiu do quarto, também não disse nada.
Olhei pra mim, pro meu corpo, vi meu pau já durasso. Tinha esquecido que meu pau estava à mostra, mas percebi também que o Ícaro nem tinha olhando pra isso.
Me levantei da cama, pus uma cueca e fiquei andando por ali. Me perguntava o porquê de tudo aquilo. Queria saber porque Ícaro tinha me beijado... Não, porque eu tinha beijado o Ícaro. Essa história estava cansativa demais. Eu só fazia pensar e pensar e pensar. Será que ele estava gostando de mim? Será que ele tinha virado gay? Pensei que não, porque ninguém vira gay, já nasce assim... Então... Uma coisa leva a outra, e... Presumi que ele já gostava de mim, e a sua “homofobia” era de fachada. Pronto: tinha descoberto esse “caso”. Mas eu não tinha coragem de falar com ele sobre isso. E como seria a nossa convivência? Afinal, ele morava comigo e a gente tinha que se falar uma hora ou outra. Como tudo seria a partir dali? Resposta: Maravilhoso. Ou não.
Sendo cauteloso, fechei a porta do quarto de chave, deitei novamente na cama e resolvi esquecer isso por algumas horas. Eu ainda estava com sono e também queria me esquecer da vida por um longo tempo.
Acordei de noite. Olhei no relógio e marcava 20h. Os meus olhos ainda estavam pesados, o quarto estava escuro e a luz da sala, que dava pra ver por debaixo da porta, também estava apagada. Limpei os olhos naquela escuridão, me levantei e acendi a luz. O quarto, não sei porque, estava bem largo, vazio. Senti uma diferença ali. Não faltava nada, mas senti.
Saí do quarto, acendi a luz da sala e fui à cozinha. Nem percebi, mas eu estava de cueca. Bebi uma água gelada, fiquei um pouco ali, esperando o Ícaro aparecer, mas nada. Na porta do quarto em que ele estava não se ouvia nada, nenhum barulho, nem sussurro, nem voz, muito menos o barulho do ventilador, ou ar condicionado, já que tinha os dois. Percebi, pela fechadura, que a porta não estava com tranca, então abri, bem lentamente, e ele não estava lá. Não fiquei impressionado nem assustado. Esperava isso mesmo. Só senti um pouco de saudade, sei lá...
Parecia que tudo aquilo era uma brincadeira boba de criança. Ele entrando no meu quarto, me beijando, eu indo ao quarto dele e olhando pela brecha se ele estava lá ou não... Tudo aquilo era um joguinho besta onde eu era o maior trouxa. Eu apaixonado por um cara e gostando de outro. Um me já tinha me batido, mas “se redimiu” me beijando. O outro era meio egoísta, não acreditava em mim nem em meus sentimentos, mas me amava de verdade e rolava um sexo gostoso. Mas espera: eu não podia escolher um dos dois, ainda mais se fosse por causa de sexo. Eu também não podia tomar uma decisão precipitada, afinal eu amava o Ícaro e não sabia o que sentia pelo Dan. Tudo era muito bom com o Dan, mas eu era preso ao Ícaro, não sei por qual motivo, mas eu era. Só era. Sei que é um pouco chato ficar falando Ícaro, Ícaro, Ícaro toda hora, mas era o que eu sentia. Alguém aí já controlou o coração? Era impossível não pensar nele, e é impossível não falar nele quando ele é um protagonista da minha vida toda.
Uma amizade que se formou na escola, cresceu – de uma maneira legal – e só veio tomar corpo anos depois, a partir de um e-mail informando a sua volta. Eu pensei nisso quando estava na sala, sentado, tomando água. Olhei pro notebook e uma única coisa me deixou bem intrigado: Tudo tinha sido planejado por ele, a partir do e-mail, ou tudo era coisa do destino? Assim, falo só a parte dele na minha vida. O Dan aconteceu naturalmente, isso é fato. Mas fiquei intrigado mesmo com isso: será que ele queria que tudo isso acontecesse entre mim e ele? Ele tinha armado tudo igual a um teatro? Sei que ele já pretendia se casar com a Nina, mas porque tudo aquilo tava acontecendo de uma forma tão estranha? Lá nos meus pensamentos, o Ícaro podia ter armado tudo àquilo só pra conseguir ficar comigo, ou tudo aconteceu “estranhamente” mesmo. Era uma dúvida foda. Eu, depois de ter pensado nisso, fiquei louco querendo ter uma resposta, mas eu sabia que não ia conseguir isso.
Olhava pro telefone, desviava para o relógio... me prendi ao tempo e às coisas que me levavam ao meu destino. Seria esse meu destino? Eu viveria uma história boa com um homem – vulgo Dan – que gostava de mim de verdade, ou viveria uma história louca com quem eu não conhecia direito? Bem, na verdade, eu o conhecia, sim, mas não o reconhecia mais. Ora ele era um homofóbico, ora ele me beijava... Nada mais fazia sentido.
Voltei pro meu quarto depois de muito tempo parado, sentado, tentando decifrar minha louca vida. Comecei a ler um livro. Não lembro o nome, porque não é tão conhecido. Ele era velho, estava com a capa toda rasgada, com páginas sujas de poeira... Lembro de um trecho que me tocou bastante, era assim:
“Júlio, um menino, menino esse que respirava seus sonhos, era o mais poderoso de todos. Era poderoso porque não tinha poder. Era poderoso porque seu sonho o tornava tão invencível que nem o Hulk podia detê-lo. Mas, como todo super herói, Júlio tinha uma única fraqueza: suas dúvidas. Sim, era mais de uma, mas eram únicas, por isso o singular misturado com plural. Suas dúvidas o tornava fraco. Sabe o que ele fazia para se sentir forte novamente: apenas agia com o coração”.
Lembro-me disso até hoje. Eu me sentia um Júlio da vida. Me sentia forte por alguns motivos, mas minhas dúvidas me deixava pra baixo, fraco...
O remédio, no meu caso, não era agir com o coração, até porque o Dan tinha “acabado” comigo, eu não podia escolhê-lo, simplesmente. Eu tinha que fazer diversas coisas, inclusive achar o caminho certo para minha vida. E foi isso o que um beijo me causou naquela noite.
Não tava com saco pra ler o livro mais. Tinha lido uns quatro parágrafos e já me sentia tocado, imaginem se eu tivesse terminado? É, pois é!
Não tinha nada pra fazer. Eu não sentia mais sono, nem fome, tampouco sede ou frio. Meu apê estava um tédio total. Os joguinhos de celular já eram chatos, ver séries e filmes também, ver sexo na internet estava fora de cogitação. Eu só queria alguém do meu lado. Só alguém.
Resolvi, do nada, abrir um vinho, já que eu tinha tantos e nunca tomava. Ficar bêbado era a minha solução. Quando o álcool entrava em mim, não tinha ninguém que conseguisse apagar minha animação. À varanda do apê, eu curtia um vinho fortíssimo, com aquela vista bonita e o vento bem frio vindo a mim. Os goles eram fortes e rápidos. Eu não conseguia passar cinco segundos sem beber um pouco. Transformava-me quando estava ao lado do meu péssimo amigo álcool.
Comecei a ficar animado depois de duas taças. Coloquei umas músicas boas pra dar um pique legal e passei a dançar na sala. O volume não era alto, tinha que pensar nos vizinhos e nas reclamações que eles iam fazer caso eu colocasse músicas com palavras de baixo calão e altas. Imaginem a cena: um homem, de cueca, dançando funk na sala e bebendo vinho direto da garrafa, virando-a de segundo a segundo? Nem eu consigo me imaginar fazendo isso de novo.
Fiquei uma hora só ali fazendo aquilo. Na verdade, eu tive vontade de fazer, mas pra ser mais sincero, eu fiz na esperança que o Ícaro chegasse em casa e me visse fazendo aquilo tudo, mas não foi possível. Ele não chegou a tempo de me ver fazendo, porque eu parei, se não ia ficar mais bêbado do que já tava. Com dificuldades, arrumei a bagunça que tinha feito na sala e me joguei no sofá. Dormi ali mesmo. O sono tinha reaparecido por causa da bebida, daí não vi outra solução.
No outro dia, acordei em minha cama. Estava com uma camisa branca, de meias, com um calção e todo coberto. Não me lembrava de muita coisa da noite passada, mas eu me lembrava que tinha dormido no sofá e que estava só de cueca. Uma dor de cabeça tremenda me consumia e eu não podia fazer nada pra parar. Nunca guardei remédios ou analgésicos para dores. Levantei-me com muita dificuldade e fui ao banheiro. Lá, vomitei muito. Eu estava passando mal por causa da dor de cabeça, e por causa da ressaca também. Tinha bebido a quantidade exata para que essas coisas acontecessem. Ícaro me viu na porta e saiu. Também nem liguei pra ele. A bacia era minha melhor amiga no momento.
Após horas ali sentado no chão e apoiado à bacia, saí do banheiro e tomei umas duas garrafas de água bem gelada pra tentar passar aquela sensação ruim que ficava na minha garganta. Meus olhos estavam meios vermelhos, lacrimejando muito e coçando também. Eu não entendia.
Deitei na minha cama de novo e só queria dormir mais. Eu estava péssimo e não conseguia nem andar direito. O meu celular começou a tocar e eu não atendi. Tocou outra vez e eu continuava sem atender. Aquilo tocou tanto que eu, já de saco cheio, resolvi atender.
– (falei sem disposição nenhuma) Alô?
– É o Dan. Olha, vou ser direto: me arrependo demais das coisas que falei ontem pra você. Quero que você esqueça tudo... Fui burro demais em falar aquelas asneiras. Nunca quis duvidar do seu amor, cara!
Sério? Sério isso? Desliguei o telefone na cara dele e coloquei no mudo. Pelo amor de Deus, né? Sim, eu pensava nele, curtia muito ele, mas depois de tudo o que ele tinha me dito? Eu de ressaca ouvindo “me desculpa”... Pelo amor de Deus, mesmo! Só desliguei o telefone e afundei a cara no travesseiro. Minha cabeça estava explodindo e tinha o Dan ainda me deixando mais nervoso. Como ele falava tudo aquilo e me pedia desculpa? Só não mandei ele ir tomar no cu porque eu sabia que isso não seria nenhum tipo de xingamento...
Eu havia dormido demais no dia anterior. Não existia mais sono em mim. As dores ficaram sérias e meu corpo todo começou a doer mais forte e foi em todas as partes. Ia me levantar pra pedir ajuda do Ícaro pra ele me levar ao médico, mas não foi preciso. Ele apareceu na porta do meu quarto. Ficou me olhando, e eu também o olhei.
– Cê tá precisando de alguma ajuda, ou alguma coisa?
– Tô!
Ele me olhou mais. Veio se aproximando de mim, me ajudando a ficar sentado na cama, e logo voltou a me olhar. Era um olhar desafiador, e desta vez ele não estava brincando ou algo do tipo. Era um olhar desafiador mesmo, que dizia: “você vai conseguir sem mim?”... E isso me deixava excitado, só que por dentro.
Ele tocava no meu corpo, massageando-o todo, e me perguntava onde doía. Eu dizia, mas, às vezes, ele não entendia, porque eu falava com dificuldade. Ele me deitou na cama.
– (falou saindo do quarto) Vou ligar pra algum médico!
– Ícaro, vem aqui, por favor!
Ele veio. Ele veio bem tenso, mas veio. Se aproximou de mim, sentando-se à cama, olhando pra mim com outro olhar: agora um mais tenso.
– Cê quem colocou essas roupas em mim, né? Eu me lembro que eu tava só de cueca no sofá...
– É que você tava todo gelado, com frio...
– Tá tudo bem, não precisa dizer nada. Por favor, liga pra um médico! Tá doendo tudo por aqui!
– Só me desculpa por tudo o que rolou! Só me desculpa!
Ele falou isso e saiu do quarto. Vi outra pessoa habitando nele.