A minha curiosidade só aumentou quando eu escutei o Ícaro chorando em seu quarto. Foi a coisa mais estranha que eu vi/ouvi. Ele era aqueles machões, sabe, aqueles que não choram, nem demonstram as suas emoções... A minha certeza tinha se confirmado por inteiro: Tinha rolado alguma coisa. Bati na porta, mas ele não respondia. Continuei ali de pé por uns dois minutos, chamando-o, mas tudo sem sucesso. Ele, porem, ia ter de sair pra fazer alguma coisa.
Arrumei algumas coisas bagunçadas por ali e me sentei à mesa. Esperei, esperei... nada dele aparecer! O sono subiu pela cabeça e decidi tomar um banho pra ir dormir.
Acordei bem cedo, umas seis horas da manhã. Preparei um café da manhã e tomei-o. Depois de um tempo, o Ícaro tinha acordado. Veio até a cozinha, tomou água e se sentou comigo.
– E aí, mano. Dormiu bem essa noite?
– Não muito bem.
– E cadê a Nina? Não vi compras por aqui e não escutei ela voltar.
– Cê continua a mesma coisa de antes, mesmo...
– Mano, não sei de onde você tirou isso. Minha aparência mudou, cara. Não tenho nada a ver com o Théo do passado. Sou adulto, agora.
– Continua sem entender as coisas, mano. Você não percebeu ou não quis perceber? Ontem, eu e a\ (ele pausou e logo voltou)... Nina brigamos!
– Ah... Eu sabia que tinha rolado alguma coisa. Por que você não me contou? Ou por que não veio falar comigo quando eu bati umas cem vezes na sua porta?
– Não queria falar com ninguém.
– Ela te chateou ou fez alguma coisa que você não gostou?
– É melhor esquecermos isso.
– Esquecer isso? Ícaro, cê tá doido, mano? Você vai se casar com ela. Você vai mesmo esquecer esse tipo de coisa? É melhor conversar antes. Depois pode ser tarde demais.
– Você continua o mesmo certinho de antes, Théo. Para de ser assim, cara.
– Se você não quer que eu te ajude, pode dizer.
– Eu só não quero mais falar nisso. Tudo bem?
Não respondi. Me levantei com o meu prato e coloquei na pia. Ele tentou se desculpar (achou que tinha feito algo de errado) e eu expliquei que só queria ajudar, e ele entendeu.
Mais tarde, já de tarde, depois do almoço, eu tentei ver TV na sala, mas meu cérebro não tava querendo deixar, fazendo-me ter três pensamentos na mesma hora. Pensava no Ícaro, em como ele tinha ficado estranho de um dia pro outro; na noiva dele, que não tinha dado as caras desde o dia anterior; e no Dan, o cara lindo que eu tinha conhecido em um banheiro público. Eu tinha dado o meu número à ele, e ele ainda não tinha me ligado. E será que eu queria que ele me ligasse? E o Ícaro? E o que eu “sentia” por ele? E a vontade de ver o que ele guardava na calça? E o fato da minha homossexualidade? Botava tudo isso onde? Sim, eu sabia que depois do casamento do Ícaro, ele ia se mudar, mas ia continuar me visitando. E se eu aprofundasse a relação com “o-cara-misterioso” e o Ícaro me visse com ele? Do jeito que ele era preconceituoso, era capaz de me matar ou quebrar a minha cara, como fazem esses homofóbicos na rua hoje em dia: não podem ver um gay que partem pra cima.
Ainda vendo TV e refletindo essas três coisas, eu decidi desligá-la e fazer alguma coisa que servisse pro meu bem, mas Ícaro chegou ali na sala e quebrou meus planos. Ele estava sério, nervoso, suando. Fiquei curioso e preocupado. Ele andava pra lá e pra cá, querendo falar alguma coisa.
– O quê que você tem, mano?
– Tá... Eu não agüento mais esconder isso. Tenho que te falar uma parada.
– Você tá pálido. Tem certeza de que tá bem?
– Eu menti pra você... Aquela lá não é a Nina. Eu menti, eu menti!
Não entendi nada.
– Cara, fala com calma, com paciência. Como assim ela não é a Nina?
– Essa mulher é desconhecida... Ela não é a minha noiva!
– E quem é, então?
– Não sei. Não sei direito. Eu só queria me convencer de uma coisa...
– Ícaro, do que é que você tá falando? Eu tô todo confuso aqui.
– Lembra da nossa conversa da semana passada, né? Eu falei que me sentia inseguro... Falei que não queria que nada estragasse isso...
– E o que é que isso tem a ver com essa mulher aí?
– Ela é uma prostituta. Contratei ela pra dormir comigo por uma noite pra experimentar uma vida de casado?
– Cara, você é louco? Você quer comparar uma vida com uma noite? E outra: Você nunca dormiu com a sua noiva? Ela existe?
– Ela tá la nos EUA. Queria saber como era dormir com alguém, mas não consegui e mandei ela ir embora daqui. Desculpa aí pela mentira, mano, mas não deu.
– E o que rola se a sua noiva descobrir tudo isso aqui?
– Ela não vai.
– Como vai saber?
– Se ela ficar sabendo?
– Não vai acontecer. Só quem sabe disso sou eu e você. Espero que voce não conte nada. E outra, eu já traí a Nina algumas vezes.
Fiquei feliz quando ele disse isso. Aquela conversa tinha trazido o velho Ícaro de volta. Lembrei-me da conversa que tivemos semana passada e ele me disse que ela o tinha colocado no caminho certo... Bom, parece que rolou alguma coisa, uma virada, sei lá!!! Eu não baixei a bola.
– Meu Deus, mano. Haja coragem! Coitada dessa Nina aí. Você vai mesmo se casar depois disso?
Eu o encarei. Ele abaixou a cabeça e vi que ele ficou triste pra valer. Eu percebi o que falei e decidi não pedir desculpas. Afinal, ele precisava ouvir umas coisas. Levantei-me e saí de casa. Eu já estava planejando isso e não queria mais olhar pra ele depois da conversa.
Passeei muito pelo condomínio e esfriei a cabeça. Andei por ali por uma hora. Era muito grande, parecia um “bairro” aquilo lá. Voltei pra casa e ele não estava por ali; ele tava em seu quarto.
Nos dias seguintes, o clima foi normal, e esquecemos totalmente daquele assunto. O mês se passou e o dia do casamento dele com a Nina, que realmente existia e eu a conheci, estava chegando. Voltando um pouco aos dias que tinham passado, a Nina realmente existia e era uma graça de pessoa. Super gentil e não merecia os conflitos que...\ Bom, isso vem depois.
Depois de um tempo convivendo comigo, percebi que meu amigo Ícaro não estava pronto pra se casar, mas mesmo assim eu não disse nada a ele para evitar problemas.
O grande dia havia chegado. Era eu quem estava ansioso pra saber o que iria rolar naquele dia. Fui um dos primeiros a chegar na igreja, e lá só tinha gente bonita, rica... A família dela era toda assim. Mais pessoas convidadas iam chegando e a minha tensão ia aumentando. Pelas minhas palavras dá a entender que era eu quem ia subir ao altar. O Ícaro me chamou lá trás para conversarmos. E eu fui. Na sala, a nossa ansiedade estava à mostra.
– E aí, cara, tá preparado pra hoje?
– Tô. Tô, sim. Nesse tempo que morei lá no seu apê, aprendi algumas coisas com as suas palavras e eu vou botá-las em prática na minha vida. Hoje, quando o padre me perguntar se eu aceito a Nina como minha mulher, direi que sim, com toda a certeza do mundo.
– Então nesse tempo que você passou lá comigo, você aprendeu a gostar dela ou isso já existia dentro de você?
Ele não respondeu a minha pergunta. Tossiu para descontrair e logo mudou a conversa, de sorriso no rosto.
– Valeu por tudo, Théo. Cê me ajudou em algumas coisas. Valeu!
– Que nada, mano. Se precisar de mim, se precisar de ajuda, pode ir lá na minha casa pedir.
– Ih, sai fora, viado. Que palavras são essas? Cê tá rebolando agora é?
– (ri e falei) Para com isso, seu baitola. Agora vai, cê tem que casar.
Ele saiu dali e eu fiquei sozinho. A igreja tava de festa e a lista de casados também, mas, por algum motivo, eu não. A ansiedade se misturou com a tensão e foi se criando uma tempestade dentro de mim. Não sabia o que era, mas ao mesmo tempo eu tava feliz por estar do lado de um amigo no dia mais importante pra ele. Ou não.
Ao banco, eu não tirava os olhos da entrada. Queria ver a verdadeira Nina entrar ali de branco e queria olhar pro meu amigo, queria ver se ele ia abrir um sorriso e se ia mostrar confiança. A marcha nupcial tocou e a Nina entrou lindamente com o seu pai. Fiz o que queria e olhei pro Ícaro, que não abriu sorriso algum. Seu rosto estava escorrendo gotas de suor e sua expressão facial não era uma das melhores.
Como eu gosto de encurtar as coisas, digo logo que eles se uniram. O casamento foi lindo demais. Na parte do “sim e do não”, eu gelei, pois tava curioso à beça pra saber o que ele ia dizer, e ele disse sim, e olhou pra mim logo em seguida. Não entendi, mas ele olhou e virou o rosto. Enfim, eles estavam, finalmente, casados.
No fundo eu sabia que algo ia dar errado, mas mal sabia eu que quem ia se dar mal nessa história seria eu. Eu.