Parte 9 – Um novo mundo a ser desbravado.
O dia amanhecia, mas Ricardo não estava com sono, já Betão dormia. Ele se levantou, saiu pela janela, pulou o muro com uma terrível dificuldade e voltou para casa a pé. Caminhada longa, por isso chegou lá já passava das 6 da manhã. Comeu alguma coisa, beijou a avó e caiu na cama. Afinal estava cansado.
Acordou já passava do meio-dia. Após almoçar foi atrás de Dadinho, ele não estava mais nos Mattos, precisava de outro emprego. Mas Dadinho foi direto com ele:
Dadinho: -Sinto muito menino, mas seu Cristóvão me mandou não dá mais emprego pra tu.
Ele não sabia o que fazer. Decidiu voltar para casa e ficar com a avó. Assim foi tarde a dentro. Por volta das 20 horas a avó se preparava para ir dormir.
D. Mariana: -Vou dormir meu neto e você tome cuidado com o que vai fazer.
Beijou a testa dele e se recolheu. Era incrível como ela já percebia que algo estava acontecendo sem nada ter sido dito a ela.
Ele tomou banho, trocou de roupa e seguiu andando para encontrar com Betão novamente. Era por volta de 22:30 quando ele apareceu na janela e ele via televisão. Ao ver Ricardo na janela abriu um sorriso.
Betão: -Aê! Num esperava você de volta.
Ricardo: -Porque não viria? Posso entrar?
Betão assentiu com a cabeça.
Ricardo pulou e entrou no quarto e Betão fez uma força para se sentar na cama e com isso fez uma feição de dor.
Ricardo com ar preocupado: -Ei, não se mexe rapaz. Fica quietinho.
Betão: -Ta na boa, tem que se mexer né cara, ficar na mesma posição direto é foda.
Ricardo: -Ta se sentindo melhor?
Betão: -To sim, olha meu olho como desinchou.
Realmente. O olho havia desinchado bastante, mas ainda estava de um roxo profundo.
Ricardo: -Que bom, eu fico feliz.
Betão riu: -Fica mesmo?
Ricardo: -Claro que fico! Me preocupo com você.
Betão: -É, eu também me preocupo com você.
Ricardo riu e Betão parece ter se dado conta do que falou e ficou sem graça.
Ricardo: -É tão bom te ver rindo, você tem um riso bonito, e ultimamente só vejo você com cara seria ou triste ou de brabo, essas não combinam com você.
Betão: olhou sério para ele.
Ricardo: -Eu não vou te perguntar o que aconteceu ok? Mas você acha que fica mais quanto tempo aqui?
Betão: -Não sei, só até uma costela minha que ta partida untar, porque uma partiu as outras só fraturaram, dai essa que é problema, acho que mais uma semana aê posso ir pra casa terminar de me curar lá.
Ricardo olhava com interesse no que ele dizia, quando de repente Betão ficou calado e olhou para o lado. Ricardo achou melhor não falar nada, não entendeu mas por algum motivo parecia que Betão tinha ficado triste. Do nada ele decidiu se sentar na cama ao lado dele. Ficou assim um pouco e em um ato totalmente inocente e sem pensar porque o fazia ele pegou na perna de Betão sobre o lençol.
Betão virou o rosto para ele imediatamente ao toque. Ricardo por bem resolveu tirar a mão.
Betão com um olhar meio espantado: -Não, não, tá tudo bem.
Ricardo riu com a situação: -Desculpa, foi impensado.
Betão mantendo a cara de espanto: -Mas ta tranquilo, pode pegar de novo, não tem problema.
Ricardo ainda rindo: -Olha não fica oferecendo que eu pego mesmo hein?
Betão tentando se fazer que não se importava mas deixando transparente o seu nervosismo com a situação: -Que é isso cara, tem essa não, sei que você deve gostar de pegar. Ta de boa, pega aê.
Ricardo fazendo uma cara de graça: -Ei, você tá me tirando de que? De bixinha rameira?
Betão com ar assustado: -Nãaao! Que isso cara? Ta doido? Disse isso não.
Ricardo: -Calma, eu tô brincando com você.
Betão sem saber mais o que dizer ficou calado olhando para ele.
Ricardo tentando quebrar o climão: -Calma Betão, eu peguei no ato reflexo. Quando minha prima, minha avó, minha tia, seja lá quem for, esta deitado e eu deito na cama, eu costumo pegar na perna, é uma maneira de dizer que eu estou aqui do lado. Entendeu?
Betão totalmente sem graça: -Aah! Que legal. Bacana isso.
Ricardo: -Eu sei que deve ser confuso na sua cabeça esse lance da minha sexualidade né?
Betão ainda sério e sem graça: -Não, eu tô tranquilo quanto a isso.
Ricardo rindo: -Eu tô vendo.
Betão ainda no mesmo ar sério e sem graça: -Então, pega aê, pra eu saber que tu ta aqui do meu lado.
Ricardo: Bem se é para isso, então eu pego.
E pegou novamente na perna dele sobre o lençol. Ricardo pensou consigo mesmo o quanto era engraçado que algo tão simples fosse tão estranho para Betão, o que fez ele rir consigo mesmo.
Betão desconfiado: -Qual a graça?
Ricardo: -Não é nada demais, mas sei que você vai ficar desconfiado se eu não contar, então lá vai, eu sei que você gosta de mim mas acho que para você, gostar de verdade de uma pessoa é algo tão novo que você não sabe como lidar com isso.
Betão baixou a cabeça e fez um olhar triste que cortou o coração de Ricardo.
Ricardo: -Mas isso não é culpa sua. A gente sabe disso.
Betão: -Eu tenho medo quando fico perto de você sabia?
Ricardo fazendo graça: -O que!? Você esta tirando uma com minha cara?
Betão levando a sério e com feição espantada: -Não, não, não, nunca, é real, não tô tirando não, sério.
Ricardo ainda rindo: -Eu sei, tô brincando com você. Você precisa relaxar. Mas que é estranho um homem que com um tapa pode me matar com medo de mim né?
Betão: -Mas é isso mesmo, eu fico o tempo todo sem saber se to falando merda, se posso machucar você sem querer, porque você é muito fraquinho, ou se sei lá você não vai voltar mais, eu sei lá, então não fica brabo comigo se eu fizer uma merda porque meu avô mesmo diz que eu só faço merda, e ele ta certo sabe? Eu faço muita merda, mas se eu fizer você não se chateia ta? É meio sem querer as vezes, eu sou meio burro daí posso fazer sem querer.
Ricardo abriu um sorriso nos lábios. Aquela tinha sido a coisa mais legal, talvez a mais linda que Betão falou para ele. Para alguém como Betão dizer isso era um evento, um acontecimento e uma coisa Ricardo viu e entendeu naquela noite. Aquele era Betão. Betão não era o garotão, rico, filhinho de papai, nem o monstro violento e brabo que pegou Carlos e fez o que fez, e nem o robô autómato quando estava em frente ao avô. Aquele era Betão. Um meninão, frágil (por dentro), inseguro e, sim, assustado. Aquele eu dele Betão nunca havia mostrado para ninguém.
Somente sozinho ele se permitia ser quem era. Sim quantas e quantas noites ele chorou deitado no chão com medo do castigo que viria. Quantas vezes tremeu ao estar só no quarto e ouvir a voz do avô, irritada, chamando por ele. Aquele eu, o puro eu dele, era algo tão escondido no fundo dele que nunca alguém teve a chance de ver antes. E agora ele mostrava a alguém.
Ali foi quando algo despertou em Ricardo. Até então ele achava Betão bonito sim, afinal quem não acharia um homem daquele bonito? Depois sentiu pena e isso o incentivou a ajuda-lo, mas agora ele enchergava por baixo daquela armadura de músculos e posturas cruéis, via algo tão frágil e assustado que fez uma chama acender no coração dele. Ali ele começou a gostar de Betão não mais como alguém que precisava de cuidado e nem como amigo. Ele se apaixonou pelo homem que viu, mesmo que ainda a nível subconsciente.
Era tudo tão novo, confuso e rápido se passando na cabeça de Ricardo que não percebeu que já estava a alguns minutos mudo e Betão continuava encarando ele aguardando uma resposta, com o olhar ansioso de uma criança.
Ricardo percebendo, finalmente, isso: -Você não precisa se preocupar com isso. Gostar é assim. A gente quando gosta, até que nos façam algo de mal, a gente perdoa. Você não tem que ter medo de eu simplesmente deixar de gostar de você. A gente pode eventualmente brigar, discutir, mas só isso.
Betão ansioso: -Não, por favor, não discute comigo. Olha você pode fazer como meu avô, se eu fizer algo errado você me bate! É melhor.
Ricardo espantado com a sugestão de Betão: -Jamais eu bateria em você! (Abriu um sorriso), até porque bater em você ia doer mais em minhas mãos do que em seu corpo né?
Betão a tantos anos apanhava de maneira tao freqüente e corriqueira que em sua mente isso era algo comum. E muitas vezes melhor ate mesmo que uma simples bronca.
Betão: -Eu tenho soco inglês em casa, eu dou pra você! Você usa pra me bater quando eu fizer algo errado.
Ricardo: -Você não ta entendendo. Ok eu prometo tentar de tudo para não te dar bronca, pelo que estou vendo te dói mais uma bronca que uma surra. Mas eu nunca bateria em você mesmo você me pedindo.
Betão com ar de quem não esta entendendo o que lhe é dito: -Mas porque?
Ricardo: -Porque a gente não deve bater nas pessoas, principalmente nas que a gente ama.
Ao dizer isso se tocou que Betão poderia interpretar errado o que ele falou, mas ao olhar para Betão viu pela primeira vez um sorriso bobo no rosto de Betão. Ele relaxou e devolveu o sorriso. Foi quando do nada, algo que mais parecia um braço mecânico agarrou a cabeça de Ricardo, a puxou para perto de Betão e o mais inesperado aconteceu.
Betão beijou Ricardo, e sim, de língua.
A verdade é que foi tão bruto, forte, revolto, e acima de tudo inesperado, que Ricardo não conseguiu relaxar ao beijo. A barba de Betão que estava muito curta feriam o rosto de Ricardo como se fossem estilhaços de vidro, a mão empurrava a cabeça dele com tanta força que ele estava na limite da tensão do pescoço para manter a cabeça inutilmente afastada do rosto dele, e a boca parecia ter fome e não vontade de beijar.
Ricardo começou a falar durante o beijo e Betão o soltou. Ricardo se levantou da cama e se afastou dele passando a mão na boca.
Betão assustado: -Fiz merda.
Ricardo: -Porque você fez isso!?!
O que passou na cabeça de Ricardo foi que aquela tinha sido a única maneira que Betão encontrou para mante-los próximos. Ou porque queria agradecer de alguma maneira ou fosse lá o que fosse, ele só o havia feito por que Ricardo era gay.
Mas Betão deu a resposta certa: -Porque eu gosto de você e me deu vontade de fazer. Mas já vi que fiz merda. Tu já deve ter alguém. E eu estraguei nossa amizade.
A raiva momentânea de Ricardo se dissipou por completo.
Ricardo: -Você tem ideia do que você ta me dizendo Betão?
Betão com ar de choro: -A dias eu só penso nisso, eu só penso em você, a maneira que você me trata, as coisas que você me diz, tudo cara, eu gosto de você, me desculpa. Não vai embora por favor.
Ricardo voltou a se sentar novamente na cama e passou a mão no rosto de Betão: -A culpa foi minha de novo que falei “quem a gente ama”. Tenho que ter cuidado no que digo para você.
Betão abaixou a cabeça.
Ricardo: -Você não pode forçar as pessoas a te beijar. Você tem que buscar esse beijo, mas não desse jeito.
Betão ainda com cabeça baixa: -Desculpa.
Ricardo: -Eu vou ter muito o que te ensinar.
Betão levantou a cabeça e olhou para ele.
Ricardo: -Você real noção de que isso significa não é? Beijar um homem? Estar com um homem?
Betão: -Eu não quero saber o que significa, eu só quero estar com você. Não me importo se tu é homem ou mulher.
Ricardo sabia que Betão não tinha exata noção do que estava acontecendo ali. E ele estava certo. Betão não tinha mesmo ideia das implicações que esse novo relacionamento trariam para vida dele. Ele apenas pensava que Ricardo era “moça” e que assim as coisas se resolveria, Ricardo sendo a “moça” dele. E Ricardo já sabia disso. Mas tudo aconteceria a seu tempo.
Ricardo: -Você tem certeza disso não tem?
Betão apenas assentiu com a cabeça.
Ricardo se virou sobre o corpo dele. Embora muito menor e mais leve que comparada a Betão, este estava com as costelas muito feridas, assim como também o corpo muito machucado, e mesmo o frágil corpo de Ricardo sobre o dele causou dores quase lacerantes em Betão. Lembrando-se rapidamente disso ele olhou para Betão e perguntou: -Ta doendo cara?
Mas Betão riu de canto de boca e disse: -Nadinha cara.
Ricardo devolveu o sorriso e acreditou nele: -Deixa eu te mostrar como faz ta?
E dessa vez Ricardo beijou Betão. De verdade, da maneira certa, durante o tempo certo.
Aquele, mesmo envolto pela dor causada pelo peso do corpo de Ricardo sobre o dele, ao fechar os olhos e se entregar a boca de Ricardo, era o melhor beijo e o melhor momento da vida de Betão.