PARA ALÉM DO VÉU - Capítulo 04 de 07

Um conto erótico de Alison T
Categoria: Homossexual
Contém 2504 palavras
Data: 06/01/2018 14:40:09
Última revisão: 06/01/2018 20:06:10

Advertência: este capítulo contém revelação atroz, extrema, pesada, terrível. Só leia se tiver estômago para digerir pedras incandescentes - dor em palavras. Se fosse ficção, doeria menos mas é real. E, por isto mesmo, é necessário que seja revelado. A sociedade precisa conhecer o nível de sofrimento que suportam pessoas trans, a quem tentam não apenas calar mas invisibilizar.

Todo o meu respeito e solidariedade a estes guerreiros e guerreiras, cujas batalhas conheço em carne, sangue, suor, lágrima e sorriso.

Fica aqui o meu carinho e a gratidão aos que têm lido. Mesmo que não comentem, analisem. O mundo humano muda quando há reflexão.

Beijos.

Alison.

Capítulo 04 de 07

* Em algum dia do segundo trimestre de 2007 *

-O que é que houve, cara?

-Preciso de ajuda, Felipão. Preciso encontrar alguém que possa fazer a minha viagem. Meu pai morreu...

-O que?! Seu pai? Onde? Quando?

-Me deixa terminar de falar, Felipão. Ele morreu num acidente, há meses. Eu não sabia. Os advogados dele me contactaram porque encontraram instruções nesse sentido, para abertura e cumprimento do seu testamento.

-E a sua mãe?

-Não estou falando do progenitor que contribuiu para me gerar mas do meu pai registral. Fugi de casa aos 17 anos, sem lenço e sem documento. Só levava a sacola com duas garrafas de refrigerante e, nos bolsos do vestido, dois véus brancos. Passei na Igreja e deixei um, para confundir as pistas que pudessem levar a mim. Não fui ao bar onde meu pai me mandou buscar os refrigerantes para o almoço. Levando a sacola com as garrafas, fui direto para a estrada, implorando a Deus que alguém aceitasse me ajudar na fuga. Foi aí que passou a Ieda e essa parte da história, você sabe - assumi a identidade masculina no mesmo dia, sem dificuldade. Eu era a "menina horrorosa e malfeita de corpo". Tinha quase tudo o que um rapaz precisava ter: voz grossa, ombro largo, queixo largo, sobrancelhas grossas, mais pelos que o comum, mãos e pés grandes, quadris estreitos, seios tão insignificantes que passavam batidos embaixo da camisa. Nos tempos em que fui obrigado a viver como menina, não faltavam suspeitas de que eu fosse hermafrodita ou, ao menos, pseudo hermafrodita. Sempre ouvi esses comentários, sempre sofri bullying como se tivesse escolhido minha aparência tendente ao masculino. Tanto que ao primeiro olhar, Ieda me identificou como um garoto vestido de mulher, julgou que fugia para assumir uma identidade feminina e ficou pasma diante da verdade. Ela me ajudou. No começo, não tive psicólogo nem médico. Tomei testosterona por minha total conta e risco. O trabalho pesado, carregando e descarregando caminhões logo fez brotar músculos por todo lado. Eu, que era magrinho, perdi toda a minha roupa. Pelos nasceram e engrossaram por todo o corpo. A barba não custou a vir. Ou custou, sei lá, eu trabalhava demais para reparar na passagem do tempo. A parte íntima, que sempre foi avantajada, mudou completamente e o clitóris cresceu até se parecer mais com um pênis mal formado que com parte de uma vulva. Um ano e tanto se passou. Eu não podia estudar, porque não tinha documentos. Rezava para não adoecer. Porque não tinha documentos. Tinha economias e queria tirar minha carteira de habilitação mas não podia. Porque não tinha documentos. Tudo esbarrava na maldita falta de documentos, até o dia em que a Ieda me levou à cidade de "YYYY" e lá, procurou um amigo seu, dono e oficial de cartório. Disse-lhe que eu tinha nascido em casa, trabalhava com ela e como não tinha documento algum, precisava começar do zero, com a certidão de nascimento. O homem me olhou de alto a baixo, numa investigação lenta e minuciosa. Jamais passaria pela sua cabeça que não nasci homem original de fábrica, logo, ele imaginou alguma história bem mais escusa que a real e, convidando Ieda para uma conversa reservada, lhe disse:

-Ieda, você sabe que o que está me pedindo é totalmente ilegal. Não sei se eu faria. Talvez, se você me contasse a verdade. Diga tudo. Qual é a história do rapaz? Tem anotações criminais? Já foi preso? Está muito na cara que analfabeto e desprovido de documentos, ele não é. Pode até ser chapa de caminhão, mas tem o olhar de uma pessoa instruída. Ele nem abriu a boca e percebi. Por que e para que precisa de uma nova identidade?

-Gutão... Se você vai acreditar em mim, não sei, mas a verdade é bizarra: José Mário nasceu Talita, se é que me entende. Fugiu de casa há um ano e meio. Eu o acolhi. Ele mora comigo, não trouxe consigo nenhum documento e concluí que só você pode me ajudar. Se existe alguém que tem peito e influência para dar um basta nessa confusão, é você.

-Tá louca, mulher? Imagine a minha situação: resolvo o problema dos documentos do garoto, ele adoece, é internado e no hospital, descobrem que tem o genital feminino. E aí, quem foi que o registrou tardiamente? Fui eu!

-Não fale do que você nunca viu, Gutão. Se soubesse o que esse menino tem no meio das pernas, nunca diria isso. Você já viu um grelo de macho? Sabe como é que a coisa fica quando se toma testosterona? Não sabe!

-Puta que pariu, Ieda, você está tendo um caso com o garoto? Está transando com ele? Olha o Conselho Tutelar, hem!

-Rsrsrs, não, seu bobo. Tadinho do José Mário, ele é virgem. Ele ainda tem medo de tentar namorar e ser rejeitado, além de ser completamente apaixonado por uma menina que deixou para trás. Parece que ele e a menina eram namoradinhos. Foram vistos uma vez, andando de mãos dadas. A menina tinha uma flor na outra mão. Cada um ganhou uma surra dos respectivos pais, além da fama de serem lésbicas. Cidade pequena é o inferno, Gutão. A família obrigou esse garoto a viver como mulher durante praticamente dezoito anos. Ele sempre se percebeu como homem e quando entrou na pré-adolescência, descobriu que só sentia atração por meninas. Eu não tinha que "deixar" ele ser quem era. Essa questão é só dele.

-Por que José Mário?

-É o nome do avô materno dele, o homem com quem mais se identifica. A verdade está dita, Gutão. Sei que vai fazer. E acho que sei o que quer, para fazer. Concordo e te dou tudo, frente e verso. Onde?

-Em lugar nenhum. Não vou comer você, embora seja a melhor, a que desejo há tanto tempo. Eu quero, mas não assim, como parte de um acordo. Quanto ao que me expôs, eu faço mas a condição é que vou comer seu filho do coração.

-Absurdo, Gutão, o menino é virgem e hétero, isso é totalmente injusto!

-Ieda, Ieda... Você me apareceu na pior hora. A Selma está doente. Tem meses de vida, se tanto. Há quase um ano não sei o que é sexo. Vivo para trabalhar e cuidar da minha mulher. Tenho levado uma vida triste, daí, você me aparece, fala sobre um grelo de macho e o tesão esquecido durante todo esse tempo veio à tona. Nunca transei com um homem. Será que é bom? Quero saber qual é a de beijar um cara, de sentir a barba roçando em lugares bem escondidos. Faço até mais do que você me pediu. Sem o garoto dar um passo, consigo todos os seus documentos, certificado de reservista incluso. Ele vai voltar a ter dezoito anos. Vai ser preciso mais que alterar seu nome e sexo. Sou um homem de palavra. Vou fazer barba, cabelo e bigode, mas, em troca, quero descabaçar o seu garoto. Nunca comi nenhuma pessoa virgem, principalmente sendo macho e estou morrendo de tesão nisso. O que me diz? Porra, mulher, não chore! Você queria uma solução e eu te dei.

-Eu jamais diria isso a ele. É infame!

-Pois bem, eu direi. Deixe-nos negociar de homem para homem.

Nesse instante, ele me chamou. Ieda saiu da sala, aos prantos. Augusto era um homem bonito, cheiroso e bem vestido, do tipo que a mulherada dá nota onze numa escala de zero a dez. Tinha cara de gringo, olhos verdes como folhas de árvore, cabelos loiros, algumas sardas e quase dois metros de imponência. Ia fazer cinquenta anos com tudo em cima. E para o meu azar, me queria. Tive náuseas e sensação de desmaio só em imaginar outro macho em cima de mim, me furando. Impassível, ouvi toda a sua proposta indecente. Ali, minha vontade foi estuprada. Eu não tinha alternativa. Não podia não querer porque abrir um processo seria o mesmo que me submeter não a um mas a uma sucessão de estupros. Pesei os prós, os contras e aceitei, afinal, nada garantia que um Juiz decretaria a procedência do meu pedido, determinando a retificação dos documentos. O encontro seria na semana seguinte. Mantive-me firme na presença de Augusto. Em casa, desabei. Chorei tudo o que tinha para chorar sobre perder a virgindade com um homem mas se eu te dissesse que foi de todo ruim, seria mentira. O cara me tratou como homem, foi atencioso, fez questão absoluta de me dar prazer e sabia como. Não me levou para um motel. Não me expôs. Levou-me à sua casa de praia. Esforçou-se para me proporcionar um bom dia e cuidou de mim. A mancha do meu sangue ficou na sua cama. Ele era bem dotado, a dor beirou o inexplicável e eu não emiti um "ai", porque ser condenado a viver como mulher doía escandalosamente mais. Doeu muito mais na frente mas também sangrei por trás. Paguei meus documentos com o sangue dos dois buracos, Felipão. Em menos de noventa dias, eu tinha tudo: certidão de nascimento, RG, CPF, Título de Eleitor e Certificado de Reservista. Passei de Talita M. S. a José Mário D. G. V., quase dois anos mais novo. Tinha outra data de nascimento. Outros pais. Nasci outra vez. Mas minha maior surpresa foi observar que Augusto me deu seu sobrenome. Ele não tinha filhos. Nunca os teve e me registrou como seu. Tornei-me seu filho com uma ex amante. Perguntei-lhe o motivo. Respondeu-me: "-O desejo me cegou, José Mário. Quando meus olhos se abriram, entendi que eu jamais poderia devolver o que tirei de você. É mais do que justo. Sei lá o que há comigo. Vai ver, sou oco. Nunca engravidei ninguém e isso foi uma sorte porque jamais me achei com jeito para lidar com crianças. Meu filho veio do jeito mais errado, porém, na hora certa. Você é meu filho e meu herdeiro, José Mário. Um dia..."

-Não diga besteira, Augusto. Você tem mais saúde que eu. Vai viver mais de cem anos. Mas não posso aceitar nada material. Não o ajudei a construir nada do que tem. Não seria correto nem honesto da minha parte - respondi.

-Ah, é? Então me diga se acha viável que o fruto do meu trabalho fique para o governo! O que tirei de você não se paga nem com todo o dinheiro do mundo porque é insubstituível mas tenho certeza de que você vai saber usar o que eu deixar. Quando chegar a hora, ajude-se e ajude a quem precisar.

Pois é, Felipão... Ele não viveu mais de cem anos. Nem chegou aos 60. Apesar da gratidão eterna, eu era discreto em relação a ele. Não assumi uma identidade pública como seu filho mas continuei morando noutra cidade. Às vezes, ligava para saber notícias. Às vezes, ele me ligava. Depois que ficou viúvo, Augusto viajava em todas as oportunidades possíveis. Corria de forma que parecia querer testar se o carro voava. Ele viveu o suficiente para me ver passar de legalmente analfabeto a formando do segundo grau. Dado aos novos documentos, eu não tinha nenhuma escolarização quando, na verdade, tinha abandonado as salas de aula no terceiro ano do ensino médio. Meti-me no CES, estudei como um condenado e recuperei meu grau de escolaridade. Consegui tirar minha carteira de habilitação. Embora continuasse apaixonado pela Laura, a única noite de sexo da minha vida fez despontarem vontades novas. Quando passei a saber o que era sexo, passei a querer. Era uma merda, Felipão. Deus me deu a melhor mãe do coração, mas também a mais sensual. Eu via a Ieda dormindo de camisolinha curta e sem calcinha. Era uma tortura. Ela era a minha mãe, minha benfeitora, minha razão para acreditar que existe bondade no mundo, mas os pensamentos lascivos eram inevitáveis. Para deixar de pensar o que não devia com a mãe que me gerou na alma, arrisquei-me a chegar numa garota que conheci na autoescola. Depois da primeira, perdi o medo. Nenhuma nunca reclamou. Lá pela quinta ou sexta ficada, fui para a cama e tive a minha primeira vez com mulher, muito além de toda e qualquer expectativa. De lá para cá, fiz muito sexo. Só nunca fiz amor. Laura está casada. Antes que eu fugisse, seus pais lhe arranjaram um noivo, afinal, sua filha não podia ficar com a fama de sapatão. Eu sei que o homem a maltrata, Felipão. Essa é a maior tristeza da minha vida. Eu ainda a amo. Eu ainda espero a hora certa de voltar. Ainda sonho que vou me casar com ela. Nesse dia, cobrirei seus cabelos com o véu branco que guardo com todo carinho. Era o véu com que eu ia me colocar frente ao altar, em lágrimas por um amor que não podia viver. E... e meu pai morreu. Conscientemente, eu não soube. Pudera, ninguém sabia que ele tinha um filho, ainda que apenas registral, para avisar sobre seu falecimento... Sem ele, eu não sei quem seria, Felipão. Também não sei quem serei, após entrar na posse dos bens mas estou consciente de que isso vai mudar a minha vida. Talvez seja forçado a abandonar as estradas... Você se lembra daquela manhã em que tive o sangramento? Pois então, fui ao médico, não havia nada errado nem voltou a acontecer. Mas ao associar os fatos, soube que naquela data, meu pai morreu. Só duas vezes na vida, manchei a cama daquele jeito. Na primeira vez, ele entrou na minha vida. Na segunda, partiu. E meu corpo, dando-se conta do corte abrupto, tratou de me avisar como pôde...

- Desculpe-me pelo que vou falar, Zé Mário, mas... Como pode amá-lo? Sentir sua morte? Sentir saudade? Gratidão? Como pode considerá-lo seu pai?

- Ele fez por mim o que meu progenitor jamais faria.

- Ele também fez A VOCÊ o que o seu pai JAMAIS FARIA.

- O ser humano é complexo, Felipão...

- Meu cu, porra! Complexo é o meu pau! Tenha certeza de que no dia em que acordei e me deparei com você sangrando, se soubesse de tudo o que me contou, em vez de revirar meu caminhão atrás de remédio e absorvente da minha mulher, tinha deixado o sangue escorrer no seu pé!

- Tinha nada, Felipão. Você me ama, rs.

(Meu cu, Zé Mario, MEU CU, se ligue! Não tinha, mesmo. É mais forte que meu senso de dever... Eu te amo tanto... - pensou Felipe.)

Silêncio. Esperança.


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Comentários

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Cadê você, mulher? Perdoe-me pela cobrança mas Sofia e eu queremos muito saber o fim da história. Volta logo, Alison! Abração.

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Pessoas queridas que estavam acompanhando a série, peço perdão por não ter deixado um aviso antes. Viajei com a família porque a princesinha da casa vai começar a estudar, então, a hora de dar um passeio era essa. Semana que vem volto para postar os capítulos que faltam. Beijos!

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Coroa, do fundo do coração eu peço que me desculpe porque não tive a intenção de fazer nenhum leitor se sentir mal ou se sentir pior. No primeiro conto me apresento e explico o que me trouxe aqui. Escrever os contos significa muito para mim. Eu acho que a gente deve ser capaz de se colocar no lugar do outro, senão a nossa humanidade perde o sentido. Não é possível aceitarmos nos tornar tão mecânicos a ponto de rejeitar ou ignorar o diferente só porque é diferente. Eu acho que o diferente tem que ser mostrado. Eu acho que o mundo está padecendo de falta de opção. Por exemplo: o sertanejo tá em alta. Espera aí que eu vou ali fingir que a mídia oferece opções para alguém escolher. Se só tem sertanejo para escutar, quem tá preferindo o que? Mas as pessoas nem questionam, aceitam a mesma coisa todo dia na maior acomodação. Depois ninguém sabe porque o mundo humano caminha para a depressão. É a falta. Sem o diferente nada se acrescenta. É isso, Coroa, eu espero que se sinta bem vindo aqui. Beijos!

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Gostei do que li. Me fez refletir sobre os dramas das pessoas que fogem do tal ¨padrão social¨. Vai muito além do preconceito, tão apregoado. Me fez sentir ainda pior, por algo que fiz na minha primeira vez com uma trans. Narrei aqui e quando puder, vai lá e me dá umas merecidas pauladas. Beijos.

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Muito obrigada, moço. Obrigada pela sensibilidade e gentileza. Beijos!

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Putz, Alison, achei que eu tinha o tal estômago misto entre britadeira e fornalha, acabando por descobrir que não tenho. Misericórdia! Pelo amor de Dadá, alivie no próximo, inclusive por você mesma. Escrever pode doer intensamente.Que coragem e resiliência! Mais uma vez, dou-te nota máxima. Abraço apertado, para o caso de o coração estar dolorido da escrita.

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