PARTE 4
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Acordei perto de meio-dia com a cabeça girando, mesmo não tendo bebido uma gota de álcool no dia anterior. Fazia tempo que meus pensamentos não entravam em rota de colisão daquele jeito. Foi só quando sentei na cama, esfreguei o rosto com as mãos e olhei lá fora, pela janela, que me lembrei da minha mãe entrando no quarto mais cedo.
Pouco depois de ter conseguido dormir, quase sete da manhã, ela abriu a porta e deu umas batidinhas no armário ao lado pra me acordar: “Dudu, vou pro culto das nove. Me acompanha?”. A resposta: coloquei o travesseiro em cima da minha cara, segurando as extremidades com as mãos para mantê-lo firme contra o rosto. Alguns segundos depois, escutei a porta se fechando e, ao longe, ela falando “Está em dívida com Deus, você sabe”. Mais uma pra conta.
Levantei-me e fui ao banheiro com o celular na mão. Enquanto me concentrava em ler as mensagens e não mijar pra fora do vaso, pensava no dia anterior. Não entendia como alguém conseguia segurar uma bola de boliche para fazer uma jogada de modo tão sexy quanto o Leandro. E se fosse só isso... Durante toda aquela história da fonte, não pude desgrudar os olhos dos lábios dele. Só queria puxá-lo contra mim e beijá-lo, ali mesmo.
Voltando à realidade, li a última mensagem da Alexia e quase derrubei o celular na privada. “Bem, cadê vc? Vem! Daqui a pouco o jogo começa e já tá quase todo mundo aki! Pq você ainda tá lendo essa msg? rs Larga o cel e vem logooo!!! Bjs” Como podia ter esquecido do horário? Era o sábado da despedida! Escovei os dentes apressado, ao mesmo tempo em que trocava de roupa com a escova ainda na boca. A parte mais difícil foi encontrar as chuteiras. Procurei no balaio de roupa suja, debaixo da cama, em cima do armário. Nada. A empregada nova parecia, a cada dia, se esforçar para encontrar lugares diferentes onde colocar coisas que não deveriam estar lá. Era inevitável, teria de perguntar pra mamãe (tudo o que eu não queria, após combinar de irmos juntos à igreja e deixá-la a ver navios). Abri uma fresta na porta do quarto e gritei:
- Mããããeee! Você viu as minhas chuteiras? Acho que a Vani deixou nas suas coisas, porque não tá no quarto...
Ela demorou um bom tempo pra se manifestar. Pelo tom de urgência em minha voz, atrasar a resposta era seu jeito de mostrar que estava chateada pelo ocorrido na manhã.
- Na área de serviço. Lavei suas chuteiras, Eduardo. Como queria usá-las depois daquele barro todo? – disse ela, da mesa da cozinha.
“Eduardo”. Mau sinal.
- Ah, tá. Valeu.
Já de meias, dei um beijo no alto da cabeça dela ao passar pela cozinha e segui para o tanque da área de serviço. Voltando, sentei na cadeira em frente à dela para calçar as chuteiras. Fazer companhia era minha maneira de pedir desculpas.
- Não fiz almoço... Já ia preparando, sabe, mas daí me lembrei do nervosismo no último jogo. – disse ela me olhando por sobre os óculos de grau – Mas ainda acho que você precisa comer direito antes de jogar. Algo que te dê sustância sem desarranjar o intestino.
- E passar a meia hora antes da partida no banheiro? Não, obrigado. E hoje não tenho nem dez minutos pra perder, pelo visto... – respondi, olhando as horas no celular e vendo que já havia três novas mensagens da Alexia – eu levo uma banana e uma maçã pra comer no caminho.
Assim que falei “caminho”, o pânico atingiu minhas tripas. Estava ultra-atrasado e pegar ônibus em dia de sábado era um parto. Devo ter transparecido a preocupação no rosto, porque minha mãe me olhou de modo compreensivo, largou o gorro que estava tricotando e falou:
- Quer carona? Posso te levar...
Sorri, aliviado. Ela já havia me desculpado, afinal.
- Ok. Só vou pegar a carteira e o casaco que a Alexia esqueceu aqui naquele dia da pizza, rapidão. – Levantei-me e andei depressa até o quarto, me virando para ela ao chegar à porta. – Ah, mãe... Obrigado. A senhora é foda.
- Olha o palavreado, Dudu. E não se esqueça das frutas.
***
Como já havíamos concluído o ensino médio (pelo menos na teoria, já que eu e Alexia ainda precisávamos fazer uma recuperação de Português antes da formatura), esse último jogo de futebol, marcado como uma despedida da turma, não pôde acontecer no colégio. Os alunos em período letivo já estavam usando o campo de lá, construindo novas lembranças onde outrora era nosso cantinho para esquecer-se do mundo. Por isso, o jogo foi marcado num clube perto do lago Paranoá, onde o pai do Fabiano era sócio e arranjou uns convites pro pessoal da sala.
Saí do carro na entrada do local após me despedir de mamãe (“Bom jogo, filho! Orei por você essa manhã, Deus queira que você faça um gol por mim e outro pela Alexia!”), entreguei o convite na recepção e apresentei minha identidade ao passar pela catraca de acesso do setor de quadras esportivas. Quase correndo, segui o trajeto até a quadra onde seria o jogo e, durante o caminho, pensei no que aquilo significava pra mim.
A motivação para praticar esportes nunca teve relação com um espírito competitivo ou vontade de superar meus limites. O futebol é minha válvula de escape. Eu sinto que quando estou em jogo, correndo e suando, posso desligar minha cabeça dos problemas. Por um momento, mesmo que curto, tudo se resume a disputar a bola, driblar os adversários e alterar o placar com meus gols. É um instante em que não preciso pensar nas decisões erradas que tomei na vida – e nas pessoas que são enganadas e machucadas por elas. Há paz de espírito. Momentânea, mas ainda assim, paz.
Esse devaneio foi cessando à medida que ia me aproximando da quadra e ouvia o barulho da torcida inflamada. Palmas, gritos, algazarra. O inconfundível som da multidão que explode diante de um evento há muito esperado e que finalmente acontece. Não havia dúvidas. O jogo havia começado, sem mim.
Sentei em um banco de ferro nas proximidades da quadra coberta, na parte exterior, com o casaco da Alexia nas mãos. Fiquei ali do lado de fora, ouvindo, ao longe, as instruções que o nosso professor de educação física berrava para os meus colegas. Não pude deixar de imaginar quem haviam escolhido para me substituir. E logo na posição de capitão do time, aquele que deveria motivar e estar lá pelos companheiros.
E então, chorei. Embolei o casaco com as duas mãos e o pressionei contra o rosto, a cabeça baixa e os cotovelos apoiados nos joelhos. Eram lágrimas de decepção, raiva e culpa por não ter chegado a tempo, frustrando o time e as pessoas que estavam lá para me ver. Mas não era só por isso. Chorava por não conseguir me abrir com a pessoa que havia me criado e que mais se importava comigo no mundo. Chorava por fazer outra pessoa acreditar que o que tínhamos era um sentimento recíproco e sem prazo de validade. Acima de tudo, chorava por mim. Por não conseguir ser quem eu era no mundo de negações que eu mesmo havia criado e do qual só conseguia fugir quando sonhava. E o sonho era uma miragem, cada vez mais desfocada.
Erguendo a cabeça, olhos ainda marejados, escutei o apito soar estridente, talvez marcando um pênalti. O som de protesto das torcidas foi tamanho que abafou os passos que vinham logo atrás de mim. Só percebi que havia alguém ali comigo quando uma mão pousou no meu ombro.
A Alexia me conhecia muito bem mesmo. Sabia que eu não teria coragem de entrar após perder a hora e vinha checar como eu estava. Talvez até sugerisse que saíssemos dali para irmos a um lugar que fosse só nosso. Que fugíssemos.
Mas não. Não era a Alexia que segurava meu ombro e agora se abaixava para me olhar nos olhos, o rosto estampando a mais genuína preocupação. Era o Leandro.
- Ei, cara. Não chora, não... – Foi só o que ele falou, antes de se sentar ao meu lado e eu começar a soluçar.
(FIM DA PARTE 4)