O dia seguinte era um domingo e os pedreiros não iriam para o casarão. Pedro acordou com a leveza de quem conseguiu tirar um peso das costas. Dormir e sentir que Igor não estava presente era um alívio, era como se tudo voltasse a ser como era antes de se conhecerem. Mas ao ver a cama ao lado vazia, se perguntou pelo companheiro de quarto. Desenrolou-se do lençol as pressas e abriu a porta, desceu as escadas e foi conferir a porta principal. Ao perceber que estava trancada, virou-se para o salão principal. Havia pouca luz e Pedro teve que dar dois passos a frente para conseguir enxergar com nitidez que havia um corpo estranho deitado em um banco de madeira. Era Igor.
Pedro então suavizou os passos a fim de não acordá-lo e seguiu para a cozinha. Não o acordaria, obviamente. Ao chegar naquele cômodo imundo, pensou no que iria comer. Mas tudo ali precisava ser preparado antes, exceto as bolachas e biscoitos. Mas não comeria isso. Abriu então a geladeira e de lá retirou dois ovos. Procurou por uma frigideira e, ao pegá-la, viu que estava coberta por uma camada de poeira. Ele poderia sentir aqueles finos grãos entrando em seus pulmões por meio do nariz. Seguiu para a pia e deixou que a água retirasse aquelas impurezas. Voltou-se para o fogão e o acendeu, pondo a frigideira em cima de uma das bocas. Precisava então de óleo, mas não conseguiu achá-lo.
“Margarina!”. Mas ao pegar uma faca para retirar um pouco de margarina, percebeu que o talher também estava sujo. Teve que lavá-lo e a panela já estava mais que aquecida. Quando a margarina caiu na frigideira, os estalos provocados pela fritura queimaram a mão de Pedro, que deixou o pote de margarina cair no chão, inutilizando todo o produto. Na verdade, a margarina já estava um pouco derretida, pois o armário era fixo numa das paredes mais superaquecidas da cozinha e seria necessário revezar a margarina: ora no armário, ora na geladeira. Mas Pedro não fazia ideia. Quando ela caiu no chão, metade de seu pote escorreu pela poeira, deixando uma camada pastosa e suja. Pedro a pegou e jogou no lixo. Ao voltar para o fogão, toda a margarina que lá tinha posto, havia sido consumida pela alta temperatura. Restou-lhe, então, pegar outro pote e repetir o processo.
Fritou os dois ovos e os comeu com bolachas. Não fez o café, pois a cafeteira também estava suja e teve preguiça de lavá-la. Igor, enquanto isso, acordou com o pescoço moído pelo desconforto da noite. Ao perceber alguns ruídos vindos da cozinha, subiu para o quarto e, finalmente, pode se deitar em sua cama. Foi quase instantâneo: seu sono voltou assim que ganhou conforto no colchão e se agasalhou no lençol. Pois precisava se aquecer. Além de dura, a madeira era fria e estava em um local muito aberto, sem proteção térmica.
Pedro decidiu subir para tomar um banho e passar o dia fora do casarão. Ao chegar no quarto, viu Igor deitado e a primeira coisa que pensou foi em retirar a chave da porta do quarto e escondê-la. Teve medo que ele desse o troco. Vestiu uma roupa e saiu com a van.
Horas depois Igor, Rafael e Melissa se encontraram no shopping e passaram uma tarde divertida na companhia de pizzas, sorvetes e conversas sobre rapazes. Era quando Igor sentia que poderia ter uma vida diferente da que tinha. E isso não se relacionava a Pedro, mas sim a tudo. Poderia ser gay e feliz. Era possível, bastava sair. Quando chegou a segunda-feira, uma rotina construiu uma nova atmosfera no casarão. Pedro e Igor acordaram mais cedo, cada um tomava o seu café como podia, esperavam chegar a hora certa de se arrumar e partiam para a universidade. Igor de ônibus, demorando uma hora exatamente para chegar, e Pedro de automóvel, levando apenas trinta e cinco minutos para estar na sala de aula. E assim se seguiu a semana até que na sexta-feira, quando Igor chegou ao casarão, pode finalmente desfrutar do quarto sozinho. Fazia figa para que tudo desse certo.
Pedro estava na van, rumo a Aracaju, para enfrentar os seus medos sobre os estranhos. Só!
Aracaju era muito mais perto que João Pessoa. Cerca de duzentos e noventa quilômetros. Mas seria uma viagem muito mais longa na cabeça de Pedro, que já demonstrava o seu medo apenas por segurar o volante. Ora tremiam, ora suavam, ora tremiam e suavam, as mãos. Não havia como não pensar no seu fracasso e assim foi inicio de sua jornada, onde quanto menos ele via a civilização pelas janelas do carro, mais ele se aterrorizava. Significava, portanto, que se afastava de Maceió e adentrava o interior.
As palavras lhe fugiam quando pensava no que dizer, como se apresentar, como se comportar e como vender os pisos de fato, como apresentá-los. Não tinha um repertório de palavras para isso, faltava-lhe vocabulário. Aliás, faltava-lhe muito mais. Faltava calma e paciência. Faltava coragem. Faltava macheza. Faltava alma, pois parecia um corpo abandonado, sem vida, procurando uma utilidade para a sua carcaça suada.
Já próximo da hora do almoço, parou em um posto de gasolina e decidiu dar uma volta naquele vazio da estrada. Não havia casas por perto, apenas um restaurante quase abandonado, anexado ao posto. Com as duas mãos no bolso, sentou-se em uma mesa e esperou que um garçom o servisse, mas, com a demora, olhou para o caixa e percebeu que teria que ir até lá fazer o pedido. Definitivamente não estava mais na cidade grande. Enquanto tentava engolir a comida, que parecia um pouco fria, começou a analisar o que sentia naquele momento e tentou se entender. Já havia passado da hora de mudar. Era homem, caminhava para isso, sua idade e suas responsabilidades aumentavam. Tinha um futuro negócio para construir e era algo referente a pessoas. Pessoas estranhas, de todas as partes, onde ele acolheria no casarão. Não poderia continuar sendo o Pedro de sempre: o Pedro que foge!
Ele era o único no restaurante e, após pagar a conta, escondeu novamente as mãos no bolso da bermuda e saiu em direção a van dando pequenos passos lentos. Olhava para o chão e, sem sentir em seus olhos, viu uma gota caindo no asfalto. Era uma lágrima que ganhava vida própria. Parou diante da gota, impressionado com sua sensibilidade aflorada. Poderia contar nos dedos as vezes em que chorou e nunca se sentiu tão fragilizado como naquele momento. Ela começou a se evaporar e desaparecer naquele calor, mas enquanto não sumia, Pedro a encarava com raiva e franzia a testa.
Sem perceber novamente, outra gota surgiu no asfalto, e depois outra e mais outra. Quando ergueu um pouco a face, sentiu um líquido umedecendo as maçãs do rosto e já chegavam ao pescoço. Foi quase instantâneo, bastou levantar a cabeça para que as lágrimas começassem a escorrer em sua pele. Por sorte, não havia ninguém para vê-lo naquele instante, mas ele sabia que chorava e isso já bastava para ter vergonha de si mesmo. “O que está acontecendo comigo?”.
Não conseguiu enxugar as lágrimas. Na verdade, nem tentou. Até porque ele só conseguiria molhar as mãos e não secaria o rosto. Na frente do volante, deu a partida e seguiu viagem. Era quase um milagre o que ele operava, pois chorava descontroladamente e conseguia, mesmo assim, olhar as placas e se situar. O choro já não era mais silencioso, ele soluçava, a garganta secava e depois voltava a ser inundada pelas lágrimas que lhe entravam pela boca.
Enquanto seu coração era martelado, Pedro olhava as placas com dificuldade, pois as lágrimas lhe incomodavam a visão. Era esse senso racional de procurar saber onde estava e para onde ir que mais o machucava, pois não poderia parar tudo e simplesmente se deixar ser quem é, ou pelo menos se deixar ser como estava. Afinal, ele ainda não sabia quem era. Então ele sangrava por dentro e, mesmo só, tentava não se preocupar com isso e procurava enganar a si mesmo sobre a gravidade daquele momento.
Por que ele não poderia se doar o tempo? Precisava tanto ele disso... Por que odiava as pessoas e de se aproximar delas? Por que não conseguia demonstrar afeto para ninguém? Por que pensava tanto em garantir o futuro se ainda tinha tanta juventude para viver? Por que Igor poderia simplesmente não existir? Mas a estrada o chamava a todo momento. No posto de gasolina seguinte, parou para se permitir tomar fôlego. Repousou sua cabeça no encosto do banco e olhou para seus próprios olhos por meio do retrovisor. Estavam vermelhos. Então, em um gesto infantil, Pedro fechou o punho e esfregou um dos olhos com suavidade, enquanto seu lábio inferior era projetado para frente, formando uma pequena careta, como se fosse um bebê fazendo birra.
Voltou sua mão para o seu colo e olhou as lágrimas que ali brilhavam. Segundos depois, um barulho no vidro da janela lhe rouba a atenção. Era um rapaz que batia os dedos no carro para conversar com Pedro. Na pressa, o motorista se virou ao contrário e tentou enxugar o mais rápido possível o seu rosto. Depois se voltou para o intruso e baixou o vidro da janela. Olhou-o com uma das sobrancelhas levantadas e esperou pelo o que vinha.
- Oi, cara, beleza?
- Oi.
- Você está indo pra Aracaju?
- Por quê?
- Porque eu estou procurando uma carona.
O rapaz parecia simpático, embora fosse um pouco tímido e aparentava ter a mesma idade de Pedro. Seu jeito denunciava que era do interior, não se sabe se de Sergipe ou de Alagoas. Vestia uma calça e uma camisa de botão, ambas em jeans, e segurava uma mochila por uma das alças nas costas. Era um rapaz bonito, mas de beleza muito simples, daquelas que se confundiriam com qualquer outra. Tinha cabelos castanhos claros e os fios eram ondulados, já a pele era bronzeada. Pedro não gostou do pedido, mas pensou que uma companhia poderia inibi-lo de chorar ainda mais. Isso era bom.
- Abra a mochila!
- Abrir a mochila?
- Sim.
Pedro foi firme na ordem, intimidando-o bastante. Mas o rapaz entendeu que era preciso, pois estava ele apenas prezando pela sua segurança. Além do mais, precisava da carona. Abriu então a bolsa e tirou todas as roupas ali mesmo no chão do posto de gasolina, enquanto Pedro assistia tudo dentro do carro. O rapaz continuava agachado e mostrando seus pertences. Era sem dúvida uma situação constrangedora e humilhante, mas na cabeça de ambos, era uma coisa necessária. Após a revista, ele fechou a bolsa, levantou-se e sorriu para Pedro na esperança de que obtivesse um resultado positivo.
- Aracaju?
- É, estou indo visitar umas tias, irmãs do meu pai.
- Entra.
- Poxa, cara, valeu!
Com enorme alegria, ele deu a volta na frente da van e entrou.
- Obrigado mesmo, mesmo, mesmo. Eu estava aqui suando para conseguir uma carona, mas alguns não eram motoristas de confiança e outros achavam que eu é que não era de confiança.
- Certo, certo, a coisa é bem simples. Durante toda a viagem você vai ficar calado, não estou afim de papo e qualquer coisa esquisita que você fizer, desce. Certo?
- Certo. – disse meio triste.
- E quando chegarmos a Aracaju, me diga logo onde eu posso te deixar, porque eu não vou rodar a cidade com você.
- Ah, quanto a isso não se preocupe. Basta chegar lá que eu me viro.
- Ótimo.
- Só uma coisa. Como é seu nome mesmo?
- João.
- João, eu sou Ulisses. Nem sei como pagar essa gentileza.
- Sabe sim.
Ulisses se sentou ao lado de Pedro, pôs a mochila em cima dos pés e se prendeu na cadeira com o cinto de segurança. Ao voltar a cabeça para cima, sorriu para o motorista em sinal de alegria pela carona. Há horas estava naquele posto de gasolina, sozinho, com fome e sem expectativas de sair dali. Aquele sorriso generoso era de alguém muito humilde, que agradeceria dez vezes por ter ganho um simples grão de arroz.
- Sim, eu poderia fazer muitas coisas para agradecer.
- Uma delas seria se calar. Podemos ir?
- Sim.
As lágrimas secaram nos olhos de Pedro, deixando-os um pouco ardidos, incomodando a visão da estrada, mas nada que o impossibilitasse de dirigir. Alguns minutos depois, o motorista começou a sentir um cheiro diferente no ar, era o perfume de Ulisses, um aroma adocicado, como se fosse uma simples colônia de alfazema. Só aquilo já o fazia ficar irritado, pois mesmo tendo consciência de que não estava sozinho, o cheiro o fazia lembrar o tempo todo disso. Pedro queria mudar, mas não fazia tantos esforços para deixar de odiar as pessoas. A cada respiração o cheiro retornava e isso já estava tirando-o do sério. Mas não poderia fazer nada.
Ulisses encolheu-se no banco e só pensava em incomodar o mínimo possível, pois, pelo o humor de João – o motorista – ele poderia atirá-lo pela janela se não estivesse mais afim de dar a carona. Juntou as duas mãos, entrelaçando os dedos, e as pôs entre as pernas. Em seguida, inclinou todo o corpo para a janela ao seu lado e se encostou nela. Foi inevitável não se lembrar de Igor naquele momento, pois o garoto se acomodava da mesma forma naquela van. Pedro o olhou rápido e não acreditou que aquele rapaz pudesse trazer lembranças tão específicas.
Porém Ulisses buscava mais que não incomodar, estava tentando descansar também, talvez cochilar um pouco. O rapaz merecia, afinal ele estava andando na estrada desde as quatro horas da manhã, correndo grandes riscos, sem ter posto nada no estômago além de um pão borrachudo com mortadela. Apesar de feliz pela carona, pensava em suas tias. Aliás, uma em especial, era já idosa e aparentemente não havia mais muitos dias de vida para a pobre velha. O carinho que Ulisses devotava a ela era semelhante a de um neto, ou até mesmo de um filho, já que ela foi quem o criou e o sustentou desde o nascimento até os quatorze anos, quando teve que voltar para casa, no interior, e ajudar a família com a pequena plantação de subsistência.
Mas todo o encolhimento no canto também se devia pela fome que passava. Achou que quanto menos se mexesse, menos fome sentiria. Era um pensamento bobo, mas não se pode cobrar razão de alguém que não comia há mais de sete horas. Mas foi impossível ficar quieto. A sua barriga começou a roncar e os ruídos se tornaram constantes. Pedro então percebeu o que estava acontecendo e estendeu a mão para o porta-luvas, assustando Ulisses, que não esperava por aquele movimento tão rápido. Ao abrir, um pacote de bolachas doces caiu em cima da bolsa de Ulisses.
- Come!
- Poxa, obrigado...
- Só come, não fala!
- Ta.
Ulisses ficou ainda mais encantado com João. Sem querer parecer um esfomeado, embora sua barriga denunciasse justamente o contrário, o rapaz pegou o saco com muita parcimônia e o abriu. Começou a comer uma bolacha por vez, saciando a fome de maneira desesperadora, pois sua vontade era de comer cinco bolachas de uma vez só. Todas na boca. Na terceira bolacha, olhou de novo para João – o motorista – e sorriu, mas Pedro não viu. Pensou em oferecer, mas depois se lembrou da regra imposta. Decidiu apenas se contentar com a sua segunda refeição do dia e se deu por satisfeito.
Quando já estava na metade do pacote, pensou “Se eu comer tudo, ele pode achar que eu sou um mal educado. E eu nem sei se ele já comeu hoje...”. Ulisses ainda poderia sentir sua barriga se contraindo de fome, provocando-lhe muito mais dor que antes, pois agora ele sabia como era bom comer, mas não poderia se satisfazer. Mesmo assim, era muita sorte ter conseguido uma carona segura e não queria abusar. Começou então a enrolar o saco na ponta e o guardou no porta-luvas. Juntou mais uma vez as suas mãos entre as pernas e se encolheu no banco. Estava feliz, mesmo com tão pouco.
Pedro entendeu que ele estava tentando ser educado e abriu, com a mesma agressividade de antes, o porta-luvas. Dessa vez o pacote não caiu, pois tinha sido muito bem guardado e estava um pouco vazio.
- Anda, cara, come!
O rapaz então não soube nem mesmo o que pensar de João. “Que cara incrível. Quem será que foi a pessoa que deixou esse anjo assim tão chateado hoje?”. Começou a comer as bolachas e a observar as árvores no caminho. Parecia um dia bom. A fome foi desaparecendo e as bochechas ficaram um pouco sujas de farelo. Parecia uma criança no recreio da escola. Já Pedro começava a se acostumar com aquele cheiro, que antes era insuportável. Ulisses terminou a refeição e guardou o plástico na mochila, pois não deixaria lixo sequer no carro de João.
Agora um pouco mais animado, ficou com o corpo ereto na cadeira e olhava para frente. Abriu um botão da camisa para se refrescar mais um pouco e mais uma vez juntou suas mãos. Não conseguiu não pensar em João. Mesmo olhando para frente, queria olhar para o rosto do rapaz que havia lhe estendido a mão. Havia um fôlego em seu peito, um desejo de conversar com o motorista, saber sua idade, de onde vinha, o que fazia. Talvez até, quem sabe, saber o motivo de estar chateado e poder consolá-lo, fazer algo que melhorasse aquela situação. Afinal tinha uma dívida com ele.
Aracaju foi se aproximando, pois não era muito distante. Ulisses já se preparava então para deixar João para trás, mas essa ideia o entristecia. Nunca mais o veria de novo. A vontade de lhe falar crescia a cada segundo, mas não poderia dizer nenhuma palavra. Pedro então começou a entrar em algumas ruas, saindo da rodovia. Ulisses teve dúvidas se deveria falar que ali já estava bom para ele, mas um desejo inconsciente de permanecer na van o impedia de falar.
Após mais algumas voltas, aqueles dois não estavam ainda no centro da cidade e Pedro então parou em um terreno baldio, mas deixou o motor ligado. Ulisses entendeu que era hora de partir, mas João tinha outros planos.
- Você disse que qualquer lugar estava bom pra você...
- É.
- Aqui está?
- Está sim.
- Ótimo. Agora... você disse que nem sabia como pagar a minha gentileza...
- Eu não tenho dinheiro. – disse ingenuamente.
- Não quero dinheiro. Põe pra fora que eu quero ver.
- Como assim?
- O seu pau. Põe pra fora. Eu quero ver você batendo uma pra mim.
Ulisses sentiu o seu coração tremer dentro do peito, começou a respirar fundo e aceleradamente. Ele olhava para João e não conseguia acreditar que aquele belo rapaz o desejava. Era motivo de felicidade, mas não poderia demonstrar, mesmo que quisesse. O momento era de tensão. Suas mãos, que ainda estavam juntas uma da outra, começaram a deslizar para o botão da calça. Quando esta se abriu, os corações naquela van deram um salto juntos. Mas o pênis de Pedro começou a ficar ereto primeiro, enquanto que o de Ulisses ainda estava amolecido. A cueca já estava toda exposta e, em seguida, ele começou a pôr seu pênis para fora e o pegou com a mão direita. Ele olhou para João.
- Não me olha, cara. Vai, bate que eu quero ver!
Ulisses então ficou bastante excitado com o interesse de João pelo seu corpo. Seu pênis começou a se encher de sangue e sua cabeçinha ganhou uma cor avermelhada. Pedro pode sentir sua língua se mexendo dentro da boca, mas não se importou com isso e nem soube interpretar aquele sinal. O rapaz começou a apertar seu pênis e a esticar a pele para cima e para baixo, em movimentos leves. Sua boca ficou entreaberta e ofegou. Ulisses fechou os olhos e encostou-se totalmente no banco, deixando seu corpo relaxar, jogando a cabeça para trás. Ele estava em transe naquele momento e ofegava com mais intensidade a cada movimento.
- Vai, cara, mais rápido. Anda, mais rápido!
Ulisses apertou ainda mais seu pênis duro e acelerou sua mão para cima e para baixo. Seus suspiros passaram a ser gemidos e Pedro finalmente o olhou no rosto. Mas o rapaz estava de olhos fechados, apenas sentindo seu corpo flutuar dentro daquele automóvel. O motorista começou a passar a mão levemente em cima de sua virilha, massageando-se. Era inconscientemente que agia daquela forma.
- Vai, cara, goza, goza!
Ele intensificou os movimentos e fechou com mais força os olhos. Seus dentes superiores mordiam os lábios inferiores e os gemidos ficaram mais altos. Ele conhecia seu corpo e sabia como antecipar a sua ejaculação. Perto de ter o orgasmo, Ulisses abriu os olhos e inclinou a cabeça para o meio das pernas. Chegou a hora! O esperma começou a escorrer entre seus dedos e o suor por sua pele. A cabecinha do pênis estava vermelha como o sangue, mas pouco se via dela com todo aquele líquido branco. Ulisses começou a respirar mais fundo com a boca aberta e tentou recobrar os sentidos.
Pedro então, em um novo movimento rápido, pegou a mochila do seu carona e a atirou para fora da van pela janela próxima a Ulisses. Ele não entendeu o que acontecia, seu cérebro demorou a interpretar aquele gesto. Olhou então para João e, antes de perguntá-lo sobre o ato, Pedro ordenou.
- Sai do carro, Hugo!
- Hugo?
- Anda, sai, sai, sai...
- Mas...
- Sai, cara, anda, sai do carro, vaza, vaza!
Ulisses não conseguia crer naquilo e demorou para atender as ordens de João. Mas Pedro não estava pronto para esperar. Lançou a mão para maçaneta da porta, abrindo-a, e berrou mais uma vez.
- Desce do carro agora!
Com medo daquele estranho e com as lágrimas brotando em seus olhos, Ulisses desceu da van e nem mesmo conseguiu fechar a porta. Pedro saiu em disparada, deixando o pobre rapaz sem entender o que havia acontecido e com um trauma difícil de superar. Pedro havia mais uma vez estuprado outra pessoa. Outro homem!
Enquanto seu pênis ainda estava rijo dentro da bermuda, seus olhos também começaram a expelir lágrimas. Aquele choro era ainda mais barulhento que o do inicio da viajem. Pedro agora não tinha mais dúvidas: gostava de meninos. Seu desespero lhe atacava a cabeça ainda mais rápido que a velocidade da van. Quando sentiu que estava longe de Ulisses o bastante, freou bruscamente e se atirou de costas para o encosto do banco. Levou as duas mãos aos cabelos e berrou para o mundo a sua tristeza.
Gritou. O que mais poderia fazer? Após muito barulho, pôs a mão esquerda sobre o cotovelo direito, e vice-e-versa, e apoiou-se em cima do volante, deitando sua cabeça por sobre os braços. Continuou a chorar sem intervalos e as lágrimas caiam sobre o seu pé descalço. Tentou respirar para voltar à razão e desligou o automóvel. Passou por entre os bancos da frente e se deitou no colchão. O mesmo onde transou com Igor há duas semanas. Deixou que os minutos passassem para que chegasse a conclusão de que não era capaz de ser o macho que tanto quis ser. Era gay e, além disso, incompetente para se relacionar com pessoas estranhas. Não havia como escapar disso.
- Pai?
- Oi, Pedro, tudo bem por aí?
- Pai, eu preciso do Igor aqui.
- Do Igor? Por quê? O que houve?
- Eu não vou conseguir sozinho.
- Mas...
- Pai, o Igor mentiu sobre João Pessoa. Eu não sei porquê ele fez isso, mas eu não vendi porcaria nenhuma. Foi ele quem vendeu, eu só fiquei lá parado e ouvindo.
- Pedro, calma...
- Manda o Igor pra cá, pai, urgente!
- Onde você está?
- No carro.
- Tá, mas onde? Em Aracaju?
- É, sim... Manda o Igor!
- Pedro, mas o que aconteceu?
- NADA, PAI, EU ESTOU BEM. AGORA CHAMA O IGOR!
Pedro desligou o celular e decidiu esperar ali, sem se mexer. Nem mesmo sabia em que parte da cidade estava, se era perigoso, se estava perto ou longe do cliente. Não se importou. Finalmente Pedro se deu o tempo que precisava e decidiu fazer os “por quês” que todos nós nos fazemos quando não nos achamos no mundo. E definitivamente Pedro tinha se perdido de si mesmo.
Silveira então ligou para Igor, conferindo se ele ainda estava no casarão. Partiu então para vê-lo e realizar a conversa pessoalmente. Igor o esperava sentado nos degraus da entrada. Quando o carro de Silveira chegou, o garoto foi até o portão abri-lo, deixando-o entrar. Trancou o portão e seguiu em direção ao automóvel do tio de consideração. Quando ele desceu, Igor o olhou com preocupação.
- Tio, você estava tão agoniado no telefone...
- Grande, eu não queria mesmo ter que pedir isso. Mas de qualquer forma, ainda assim, é um pedido. Você pode aceitar ou não.
- O que, tio? Fala!
- Eu não sei o que houve, mas Pedro me ligou apressado, pedindo que você fosse a Aracaju. Ele me contou que você mentiu pra mim.
- Contou? – perguntou surpreso.
- Sim.
- Tio, me desculpa por isso...
- Não tem porquê você me pedir desculpas por uma coisa boa que você fez, você vendeu os pisos e isso é maravilhoso.
- Ele já falou com o cliente em Aracaju?
- Acho que não.
- E como eu vou pra lá?
- Vamos na rodoviária comprar uma passagem. Eu já liguei para o seu pai, não se preocupe.
- Tudo bem.
- Grande, me perdoe por fazer esse pedido.
- Tudo bem.
Igor seguiu para o casarão arrumar sua mochila com uma decepção que lhe espremia o coração dentro do peito. Era o fim de tudo. Não conseguiria nunca mais se livrar do destino de ter que cuidar de um hotel junto com Pedro. Era um soluço que sussurrava: inicio de um futuro indesejado.
Quando Igor chegou ao quarto, sentou-se em sua cama e apoiou o rosto em suas mãos. Chorou por uma oportunidade perdida. Agora ficaria claro que aquela sociedade não seria possível sem sua presença e isso era algo muito importante a ser considerado. Silveira e Breno estavam investindo tudo o que podiam para que isso desse certo e não poderia o menino simplesmente se isentar dessa situação. Ele não se sentiria confortável se abandonasse esse grandioso projeto, se auto-acusaria de covarde e egoísta e não conseguiria viver com isso em sua consciência. Chorou, então.
- Pedro, eu te odeio!
E odiava com convicção. Odiava com verdade. Agora era pra valer. Se antes era apenas indiferença, agora não mais. Não mais, apenas. Enquanto as lágrimas escorriam silenciosamente em seu rosto, pegou a mochila e pôs algumas peças de roupa, especialmente a que usaria na venda, diante do cliente. Mas enquanto se arrumava, sua cabeça fervilhava de ideias. Não seria uma simples ida e volta. Pedro deveria estar preparado para o novo Igor: aquele que chora por ódio.
Pela primeira vez Silveira teve medo daquele menino, que se mostrava tão firme em sua decisão e tão agressivo com palavras. Não restou dúvidas, então, em voltar e pegar os catálogos. Igor ficou no carro enquanto seu tio entrou em casa para buscá-los. Melissa, nesse meio tempo, foi falar com o amigo.
- E ai, Grande?
- Ah, olá.
- Tudo bem?
- Mais ou menos. Não estava muito afim de ir para Aracaju, mas sabe como é né? Seu irmão não vive sem mim.
- É, vocês formam um belo casal.
- Aham. – riram um pouco.
- Mas é sério, se Pedro fosse gay e vocês pudessem engravidar, teriam belos filhos juntos.
- Mesmo que isso fosse possível, eu nunca casaria com Pedro.
- Por que não?
- Porque não gosto dele, simples assim.
- Acordou com o pé direito?
- Os dois pés direitos, amiga.
Despediram-se carinhosamente e Silveira começou a dirigir o automóvel. No caminho, enquanto Igor analisava aqueles mostruários, o motorista quis iniciar uma conversa e desfazer o mal entendido minutos atrás.
- Igor, você sabe o quanto eu gosto de você, não sabe?
- Sei, não se preocupe. Nunca duvidei disso.
- É que eu achei uma perda de tempo essa vinda para cá.
- Eu sei, por isso perguntei se confiava em mim.
- E confio. Se não confiasse, não te mandaria para lá.
- Pode ser, mas não foi o bastante.
- Grande, eu...
- Tio, vamos fazer o seguinte? Vamos esquecer isso, porque eu estou muito chateado no momento.
- Você não queria ir, não é?
- Não.
Silveira então se sentiu ainda mais culpado por ter pedido ao sobrinho que viajasse assim tão repentinamente. Mas não poderia voltar atrás, pois disso dependia todo o hotel. Foi inevitável, portanto, não ter um pouco de raiva – ou seria decepção? – do filho, que o fizera ter que passar por esse constrangimento. O que havia de tão difícil em se relacionar com as pessoas estranhas? Como seria viver em um mundo em que o individuo se fecha para o novo, para tudo?
Mas ambos naquele carro não faziam ideia do acontecido com Pedro. E provavelmente nunca tomariam conhecimento. O rapaz ainda estava deitado no mesmo colchão e não conseguia sentir fome, frio, dor ou qualquer outro sentimento naturalmente humano naquela situação. Ainda não sabia em que bairro estava e não estava preocupado com isso, não sabia em que parte da cidade estava nem em como chegaria à rodoviária para buscar Igor. Deu-se um tempo para chorar e poder encolher suas pernas, coisa que quase nunca se permitia fazer, pois elas precisavam estar sempre muito bem abertas.
Algumas horas depois, pensou com compaixão. Imaginou como estaria Ulisses – ou Hugo – se realmente conseguiria chegar a casa de sua tia e se estava bem. Talvez algo tenha quebrado dentro de sua mochila quando a atirou para fora da van. Era tarde, mas era um senso de culpa.