“A vida, meu amor, é uma grande sedução onde tudo o que existe se seduz. Aquele quarto que estava deserto e por isso primariamente vivo. Eu chegara ao nada, e o nada era vivo e úmido. - Clarice Lispector”
O dia seguinte foi confuso para Camila. Havia algo em Isabela que a deixava inquieta, algo que ela não conseguia identificar. No fundo, sabia que essa sensação não era nova. O confronto no pátio tinha mexido com ela de uma maneira que ela não conseguia entender. E não era apenas a irritação de quem não suporta ser desafiada. Havia algo mais, algo que ela tentava esconder até de si mesma.
Naquela noite, ao fechar os olhos, as lembranças começaram a invadir sua mente, como se tivessem sido guardadas em uma caixa bem fechada e agora estivessem tentando sair. Ela se viu novamente naquela sala de aula, anos atrás, quando tudo era mais simples, e as coisas entre ela e Isabela não eram tão complicadas.
Era um dia comum de escola. Camila, com sua blusa de uniforme, calça jeans, fivela grande e sua botina, estava sentada na última carteira, como de costume, ouvindo música e fingindo não prestar atenção nas lições. Isabela estava lá, com seus cabelos perfeitamente arrumados e o sorriso estampado no rosto, como sempre, cercada pelas suas amigas. Na época, Camila ainda se perguntava como Isabela conseguia se manter tão intocada, como se não houvesse nada capaz de mexer com seu mundo.
Mas naquela manhã, algo mudou. Isabela entrou na sala com um olhar diferente. Ela estava visivelmente inquieta, com a testa franzida, e, quando seus olhos se cruzaram com os de Camila, um estranho sorriso surgiu em seu rosto.
Isabela: Você viu a nova peça da coleção da Animale?
Perguntou, como se estivesse convidando Camila para uma conversa. Não era comum. Naquele momento, Camila ainda não sabia o que pensava dela. Isabela não era exatamente sua amiga, mas ela também não era uma inimiga. Só estava... lá.
Camila, surpresa com a pergunta, tirou um fone de ouvido e respondeu com a frieza que a acometera após a morte de seu pai, e suas roupas daquele dia eram as roupas que usava quando ia à fazenda com ele.
Camila: Não. Não me interesso muito por essas coisas de moda.
Isabela olhou para ela com uma expressão confusa, mas não deixou o sorriso desaparecer.
Isabela: Você devia. Estava pensando em comprar algo para a festa da escola... Mas acho que você vai vir com alguma coisa... como sempre, né? Algo... mais despojado.
A última palavra foi dita com uma leveza, mas Camila percebeu que não era um elogio.
Naquele instante, algo passou entre elas. Um jogo não verbal começou, e Camila sabia que, embora nunca tivesse sido amiga de Isabela, ela sabia o suficiente para entender que a garota estava provocando. Ela queria ver até onde Camila iria.
Camila: Você tem razão. - respondeu, com um sorriso irônico. - Nada mais despojado do que não se importar, né?
Isabela deu uma risada curta, mas o olhar que se seguiu foi algo que Camila nunca mais esqueceria. Não era uma simples troca de palavras. Era algo mais profundo, algo que começava a se formar, sem que as duas soubessem ainda. Uma rivalidade. Um jogo de poder. Um tipo de atração silenciosa que se formava no espaço entre elas.
No dia seguinte, o clima era diferente, Camila estava usando roupas mais escuras. Durante o intervalo, Isabela, sem mais nem menos, se aproximou de Camila. Ela estava sozinha, sem suas amigas, o que parecia uma raridade. A atitude de Isabela era desconcertante, mas Camila não deu muito espaço para o que parecia ser uma tentativa de aproximação.
Isabela: Camila… - começou, mas a hesitação na voz fez Camila levantar os olhos para ela.
Camila se perguntava se algo estava acontecendo. Será que no dia anterior ela não sabia sobre o falecimento do pai e se sentiu culpada? Ou será que havia alguma outra coisa? Mas imaginou que seria sobre as roupas.
Camila: É só sobre as roupas, não é? - Perguntou, interrompendo-a com um tom de desafio. - Isso é tudo o que você vê em mim, Isabela? Só o que eu visto? Só a aparência?
Isabela ficou em silêncio por um instante. Pela primeira vez, Camila sentiu que havia algo mais naquele olhar. Algo que não era só desprezo ou desdém. Havia uma dúvida, uma incerteza que passava despercebida para a maioria das pessoas, mas não para Camila. Algo que sugeria que, no fundo, Isabela também não sabia exatamente o que queria dizer. Algo que ia além das aparências, algo que estava começando a incomodá-la.
Isabela: Eu…
Isabela não terminou a frase. Ela se virou abruptamente, deixando Camila sozinha com a sensação de que algo havia mudado, embora nenhum dos dois tivesse dado o primeiro passo.
Camila acordou de seus devaneios com um suspiro pesado. A lembrança do passado não era suave, mas também não era cruel. Era... incompleta. Como se algo tivesse ficado preso em uma conversa não dita, uma troca de olhares que nunca foi completamente explorada.
Ela não conseguia se livrar da sensação de que algo maior estava prestes a acontecer entre elas. E, embora tivesse certeza de que jamais falaria sobre isso com Isabela, não conseguia deixar de se perguntar se o passado entre elas não era mais do que uma simples rivalidade. Era mais profundo, mais complexo... e, agora, parecia mais presente do que nunca.
Isabela estava mais perto de Camila do que ela imaginava. E esse passado, essas lembranças, estavam mais vivas em sua mente do que qualquer coisa que ela tentasse esconder.