Se há algo de interessante a se contar, este algo começou há poucas semanas. E o culpado foi meu senso apurado de estética: uma mulher pequena, magra, rosto delicado e bonito, cabelo longo e moreno, morena como ela o era por inteiro. Tudo era contraponto; corpo pequeno e cabelo longo – logo se criava perspectiva. Rosto delicado, mas felino. Lygia Fagundes Telles diz que o gato é coisa “sutil, indecifrável e inatingível”, atribuições com as quais eu concordo cegamente. Ela assim o era. Caminhava, bamboleando, sobre terríveis finos saltos... pra lá, pra cá: implacável. Esta elegantíssima obra dialética me atraía com louvor. Era tanta graça que eu perdia o fôlego; andava aos tropeções e às expressões maldizentes. “Isto sim é uma mulher!”, eu pensava.
Certo dia, enquanto analisava os usuários que estavam a entrar no transporte público, me surpreendi com uma expressão inédita: era ela. Entrou e sentou-se ao meu lado, desinteressadamente. Era séria, também.
O ônibus pulava, não sei se de felicidade. Sei que nos causou certo constrangimento de espécie até então desconhecida por mim, porque era leve... Rimos de constrangimento, eu quero dizer, mas até aí cada uma à sua maneira, cada uma em seu espaço. Ela foi-se logo, logo.
Em outras ocasiões nos esbarramos pelos corredores de meu prédio na Universidade, mesmo que só eu notasse estes esbarrões. “Ela não deve saber de mim”, eu conjecturava dia após dia, e de fato era assim.
Numa dessas vezes, notei um olhar muito diferente do olhar-lugar-comum, tão cheio de ímpeto e sisudez. Desta vez era triste, pacato, desolado. Não ousei intervir e perguntar se a vida corria bem, até porque a vida é coisa íntima e espaçosa, e eu detesto ser interditada ou inquirida por qualquer um que fosse. Neste ponto, me vejo e me sinto um gato: distante, moderado, respeitoso. Nada gregário e nada aliado a Deus ou ao Diabo, como também atesta Lygia. “Sem devassas por agora”, foi a minha decisão.
No ônibus, algumas horas depois, notei que este vulto, que costumava ser mulher, havia subido. Troquei meu assento e sentei ao seu lado, no fundo do transporte. Eu estava ansiosa e, mais, curiosa.
- com licença - o olhar desconfiado de um animal me desnorteou por alguns segundos – que olhos são os seus!
- como? Não entendo o que você diz
- quero dizer que os seus olhos estão como nunca! O que houve?
- É como a vida quis que fosse; nada que não passe amanhã. Fique tranquila
- estou. Qual é o seu nome, a propósito?
- Maísa.
- que beleza anônima é a sua; em meses nunca ouvi o seu nome, nem sussurrado. E é um nome bonito; é, sim