Em condições normais eu estaria ansioso, com as mãos tremendo e singelamente desconfiado, mas a curiosidade parecia um segundo coração batendo em meu peito. Talvez os batimentos fossem mais fortes que o que existe literalmente. Talvez aquela tenha sido realmente uma das situações em que eu mais senti medo, como se meus dois corações possuíssem opostos sentimentos. Mas eu não consegui evitar de olhar nos olhos do desconhecido.
Os três eram uma incógnita, mas de certa forma era como se fossem uma janela que separa um dia claro e quente de um interior gelado e frio. Ana com seus braços cruzados, Hugo com seu cabelo de fogo, e talvez a mais desconhecida de todas, minha mãe com seu olhar marejado de lágrimas.
Passei cinco longos anos da minha vida sem vê-la, e muito mais tempo sem conviver com ela. A senhora sempre foi muito trabalhadora, veio para São Paulo quando eu tinha nove anos. Hoje tenho vinte e três, e vê-la foi um misto de sentimentos indescritíveis. Como se todo o conforto de um colo houvesse voltado repentinamente depois de anos vivendo solitário.
Larguei a mala no chão e a abracei. Eu nem tentei disfarçar a falta que ela fazia, eu nem tentei fingir ser forte, fingir ser algo que não sou. Eu apenas corri em disparada, a peguei nos braços e chorei.
Ela também me abraçava, possuía o mesmo cheiro de perfume Natura que me lembro quando era pequeno, consegui senti-la segurando minha mão como quando eu era criança, as luzes da avenida do Sarcófago brilharam sob meus olhos, como se a lembrança fosse mais forte que a realidade. Só que estávamos em São Paulo, e quando me dei conta dos dois desconhecidos que nos olhavam com um sorriso leve no rosto, o garoto com um sorriso de lado e a mulher com a cabeça deitada no próprio ombro, logo tive a ideia de socializar com os mesmo.
Coloquei os braços em volta da minha mãe e olhei para os dois, quando a mulher começou a falar.
- Boa noite, tudo bem? Me chamo Ana, sou a proprietária da casa onde você vai dormir nesses três meses de férias. Mas assim, saiba que a casa é sua também tá? Eu quase não fico nela, você vai ter muito tempo mesmo é para conversar com o Hugo, ele também tá de férias da faculdade.
- E quem é Hugo? - Eu perguntei
- Prazer - o garoto do cabelo ruivo esticou as mãos. Seu olhar fixo no meu, enquanto esticava as mãos. Nenhuma desviada, nem uma checada nos lados. Ele olhava para mim, e eu não sei como descrever, mas eu sentia que ele estava vendo quem eu realmente era, oque realmente começou a passar pela minha cabeça depois de o ver.
- O prazer é meu - apertamos as mãos.
- O Huguinho é muito legal, vocês vão fazer amizade facinho. - andou até atrás de mim, e falou- Vamos indo, porque amanhã é dia de trabalhar duro - ela deu uma risada, enquanto pegava minhas malas do chão.
- Pode deixar que eu pego - falei, enquanto pegava na alça, onde sua mão quente estava posicionada, encostamos pele com pele, e ela me olhou de baixo à cima.
- Vou pegar um carrinho, essa malinha desse tamanho está bem pesada.
- Dona Ana, não precisa pegar não, o Leonardo é forte - minha mãe disse - para esse daqui eu dei muito arroz e feijão.
- Que nada, amiga. Ele pode ser forte, mas não é um touro. Já está levando a mochila nas costas, ainda mais uma mala pesada dessas.
- Não precisa se preocupar não, Dona Ana - eu falei.
- Dona Ana não... Você pode me chamar de Ana, tua mãe também pode, mas gosta de me chamar de "dona" Ana. Eu não sou dona de ninguém - ela deu uma risada, enquanto encostava as mãos no ombro da minha mãe, como se estivesse a consolando.
- Eu não chamo mesmo não, uma mulher importante e bonita dessa ser chamada só pelo nome?! - minha mãe falou, enquanto dava risada.
Foi um bom papo até a casa de Ana. O garoto do cabelo ruivo manteve-se calado quase toda a viagem atrás do volante.
Eu sentia muito sono, mas andar por São Paulo de carro não era algo que eu fazia com frequência. Fiquei vidrado, olhando a cidade se desnudando a cada centímetro que o carro andava. Descobrindo a mata atlântica e mais próximo à cidade, as luzes de casas, logo de prédios, cada vez subindo mais e mais, como se a cada metro que eu andava a cidade crescesse para cima.
Chegamos na Paulista durante aquela madrugada. O silêncio lá fora, e a conversa desenfreada da minha mãe e da Ana aqui dentro. Alguns carros passavam por nós, outros ficavam para trás, mas tudo que eu conseguia ver eram as luzes. Como se aquele fosse o final do túnel, o final da escuridão.
Papai noel inflável gigante, luzes de natal, shopping com decorações enormes de arvores de natal brilhantes. Essa era a minha visão agora. Como eu gostaria de estar com minha câmera em mãos.
Chegamos quase uma hora da manhã. Tudo que eu conseguia fazer naquele instante foi andar até o quarto que eu ficaria. Ana parecia não perder a energia nunca, me apresentou a casa e por ultimo o meu quarto.
- Vou ficar com um quarto só para mim?- Perguntei.
- Uai, claro - Ana disse, enquanto me dava a chave da porta - Aqui nós não trancamos porta nenhuma, mas em caso de necessidade esta é a chave. Eu tenho uma cópia, então não apronte...
- Não tem com o que se preocupar - eu mentia.
- Hugo falou a mesma coisa, dois dias depois ele apareceu com uma namorada - ela disse enquanto andava até o banheiro - Este é o seu banheiro, você pode colocar suas coisas de higiene aqui.
- Tua mãe dorme no quarto em frente à sua porta no corredor, o Hugo fica na porta no final do corredor e eu durmo no terceiro andar.
O telefone dela começou a vibrar no seu bolso, não sei exatamente quando, porque eu tive a impressão de que ele tocou o dia inteiro, mas percebi apenas naquele instante que ela o pegou para verificar o display e ver quem a ligava. Levantou a mão, como se pedisse um instante.
- Eu odeio ser atrapalhada, gostaria de tirar essa noite só para te apresentar o lugar, mas não vai ser possível.
Ela olhou para mim, e fez que sim com a cabeça. Depois saiu do quarto, me deixando ali sozinho. Mamãe foi dormir, Hugo estava no próprio quarto. Olhei em volta e vi como aquele lugar era grande comparado com meu antigo quarto que era só um armário no corredor de casa.
Coloquei a mochila na cama, e a mala também. Deitei no colchão ainda de roupa, apenas tive energia para tirar o tênis. Tudo escureceu, dormi como uma pedra.
***
Acordei com um som alto de música, era um funk de favela, daqueles mais engraçados do que sexuais. Ouvi gritos de diversão e o som de água. Quando me dei conta de mim, estava deitado com uma cobertinha azul sob meu corpo ainda de calça jeans. Não era necessário eu perguntar para ninguém quem havia me coberto durante a noite, eu já sabia que foi minha mãe. Como se eu houvesse visto ela me cobrindo naquele momento, mas não vi. Eu conseguia vê-la chegando na porta, me olhando vestido e balançando a cabeça. Quando eu era pequeno caia no sono em qualquer lugar, e sempre acordava deitado na cama e coberto. Ela sempre tomou conta de mim.
Levantei-me ainda cambaleando, não estava pronto para acordar. Peguei o celular na mochila e desci as escadas em direção à cozinha. Imaginava que Ana e minha mãe estivessem tomando café agora, mas quando cheguei não vi nenhuma delas. Minha mãe estava fazendo o almoço. O cheiro gostoso de carne de panela. Abracei-a forte.
- Bom dia, meu amor- ela falou.
Sentei na mesa e fiquei a vendo cozinhar. Ela virou para trás e deu risada.
- O que você tá olhando? - ela riu.
- Estava com tanta saudades de você, mainha. Eu tava morrendo mesmo de saudades.
- Oh, meu filho. Eu também tava. Ainda bem que você veio, eu agradeço a Deus, meu amor. Teu pai cuidou bem de tu? Te deu todas as vacinas direitinho? Eu fiquei tão apreensiva, meu Deus, de ter que te deixa lá sozinho, meu nego. Mas tu tá tão forte, tão lindo - ela chegou perto de mim, colocou as duas mãos no meu rosto e cheirou minha testa - tá tão alto, puxasse teu pai.
Na verdade eu não era tão alto assim, ela que era muito pequena. Hugo tinha pelo menos 10 centímetros a mais que eu.
- Eu também estava com tanta saudades mamãe.
Ficamos um bom tempo ali, jogando conversa fora enquanto ela cozinhava. O som do funk de fundo, vinha da piscina. Eu apenas ignorava, enquanto olhava para mamãe cozinhando.
Duas meninas e um menino passaram por nós na cozinha usando roupas de praia, biquini e calção de banho. Quem eram eles? Achei que Ana tinha outros filhos, mas eles passaram reto. Olharam para nós, sorrindo entre eles, e simplesmente passaram sem falar uma única palavra.
- Quem são eles?
- São os amigos do Hugo, da faculdade dele. Eles são muito legais.
- Não são não, passaram reto por nós. E olha o chão - me levantei, puxando um pano que encontrei ao lado do lixo - molharam todo o chão até a porta de entrada. Eles fizeram isso para a gente limpar?
- Calma, Leo. É normal, eles não viram não meu filho. Deixe esse pano ai que assim que eu acabar de mexer o purê de batata eu vou ai secar.
- Mãe, você trabalha aqui, mas não é escrava de ninguém - fiz questão de falar alto - EDUCAÇÃO É O MÍNIMO.
- Leo, meu filho - ela desligou o fogão, e veio em minha direção, secou as mãos no pano que tinha no ombro, pegou meu rosto com as duas palmas e beijou minha testa - Tu tá muito nervoso por causa da viagem, meu filho. Vamos almoçar que tu vai relaxar, isso é bem fome. Tu acordasse tão tarde, tão tarde... que perdesse o café da manhã. Ana já foi até para o trabalho.
A partir do momento em que ela beijou minha testa toda a tensão sumiu, como se fosse uma gota de água na lagoa da minha mente, aquela gota que para toda a movimentação de uma superfície.
Apenas concordei, quando ela voltou para o fogão decidi ajuda-la a secar o chão. Quando voltei, já havia terminado. Estava abrindo a porta que dá para um gramado verde da casa. Ela colocou a cabeça para fora e gritou que o almoço estava pronto. Eu e ela colocamos a mesa do almoço. Hugo apareceu logo em seguida, com um celular em uma das mãos e os cabelos ruivos molhados, estava sem camisa.
Talvez eu estivesse de mal humor mesmo, mas o que uma beleza estonteante não faz com uma bad vibes? O corpo malhado, com alguns sinais, o peito firme e o mamilo quase da mesma cor branca da pele. O cabelo umido penteado para trás, a barba rala cor de ferrugem. Era uma das pessoas mais bonitas que já vi na vida. Não consegui evitar de olha-lo, e ele percebeu. Eu queria que percebesse. Ele olhou de volta e sorriu, enquanto sentava na cadeira atrás da mesa.
- Vocês não quiseram ir para piscina por que? - ele perguntou.
- Tava muito ocupada, menino doido - minha mãe falou, enquanto servia o arroz de Hugo - Esse menino é doidinho, viu filho. Ele é muito cheio de dramalhisse.
Hugo deu risada, enquanto falava:
- Não sou nada - como uma criança falaria. Talvez como eu falaria hoje em dia se eu tivesse passado toda a infância com ela.
- Ele é doido mesmo, não sabe colocar a própria comida não? - falei.
O silêncio se posicionou.
- Menino, tu tá tão mal educado. - minha mãe disse - Tão mal educado. Nunca vi uma coisa des... - ela foi interrompida pelo som do seu celular -...sas. O que é isso que tá tocando? Será meu celular - ela olhava para os bolsos, quando pegou o aparelho e viu a tela - nossa senhora, eu esqueci que vou ter que passar no banco agora na hora do almoço.
Ela desligou o despertador e se preparou para sair, secou as mãos na toalha e deixou o prato de Hugo na mesa.
- Já volto viu gente, vocês se comportem. Sem briga, viu?
Saiu quase correndo em sua rasteirinha. Olhei para o menino do outro lado da mesa. Ele se levantou e colocou a comida. Me senti tão tímido que não consegui levantar a visão do prato, mas quando estava quase acabando decidi enfrentar o medo. Aquele frio na barriga, me perguntava se ele estava olhando para mim também. Quando levantei o olhar ele já não estava mais lá, saiu silencioso após terminar o almoço. Bem na hora que olhei ele voltou, se encostou na cômoda, sem camiseta e ficou ali mexendo no celular. Como se quisesse se exibir, como se ficar sem camisa não fosse o suficiente, ele tinha que fazer isso bem na minha frente, coçar o abdômen enquanto eu queria toca-lo.
- Eles te deixaram nervosos? - Ele perguntou
- Eles quem?
- Meus amigos. Eles podem ser chatos as vezes.
- Sim! Eles molharam todo o chão e vazaram.
Hugo olhou para mim, quando eu desviei, peguei o prato e fui para a cozinha lava-lo. O garoto me seguiu.
- Você é muito estressadinho.
- Você nem me conhece direito.
- Conheço sim, você é do tipo que se defende por trás do estresse.
Olhei para ele com a sobrancelha franzida. Ele chutou feio agora, errou bem feio.
- Não sou estressado, sou muito brincalhão - eu disse colocando o prato no escorredor. Sai andando até a parte exterior da casa. Um vento quente entrou em contato comigo, me fazendo ter vontade de tirar a roupa e pular na piscina.
- Não acredito.
Caminhei até a beira da piscina calado. Quando ele se aproximou ainda mais de mim, eu me virei e disse:
- Então eu te provo - o empurrei na piscina, mas ele me segurou. Caímos ambos na água gelada. Uma cortina brilhante de gotas subiu ao céu - Eu tô de calça Jeans ainda, só tenho duas calças de sair.
Ele me imitou.
- Neu nô ne nalça neans... quem mandou querer brincar assim?
- Eu prefiro outro tipo de brincadeira.
Tentei nadar até a outra borda, e ele me seguiu, sempre tão próximo. Encostei na parede e virei para ele. Talvez meu olhar pudesse dizer o que eu não sentia coragem de falar. Queria que ele me pegasse ali mesmo, me beijasse na piscina.
Ele se aproximou o suficiente para eu encostar meu pé na perna dele. Pequenos pelos ruivos flutuando na água.
- Qual tipo de brincadeira?
- Uma que a gente não tente se matar.
- E tente fazer o que?
Meu rosto estava quente, pulsando. Eu esperava que ele não percebesse o meu nervosismo. Mesmo assim falei o que sentia vontade. Talvez fosse visto com outros olhos, não o da malícia, mas quase uma trégua por hoje mais cedo. Soltei a frase, sorri no final, apesar de não parecer ter levado do modo descontraído.
- Se amar.
Ele afundou parte do rosto, só do nariz para cima fora da água. Se aproximou mais um pouco. Foi quando ouvimos a porta se abrir. Minha mãe havia chego. Eu não me importava, só queria beija-lo. Mas ele nadou para trás. Apenas saiu nadando e pulou da piscina virado de costas para mim. Pegou a toalha, enrolou na cintura e me deixou ali sozinho.
Eu estava de pau duro, e não conseguia sair da piscina daquele jeito. O jeans iria colar e o pau iria sobressair. Apenas fiquei ali olhando para a superfície rezando para diminuir. Logo diminuiu e eu sai da água correndo para o quarto. Tomei um banho quente e demorado, vesti um calção e uma camiseta. Quando sai do quarto, vi minha mãe sentada na sua cama na porta á frente. Apenas me aproximei dela e deitei minha cabeça em seu colo. Talvez tenha sido melhor Hugo ter se afastado mesmo, minha mãe enlouqueceria se me visse o beijando.
- E Maria Antônia como está? - ela perguntou, colocando a mão na minha cabeça - Eu gosto muito dela, visse.
- Nós terminamos, mamãe. Eu não namoro mais com ela.
- Tu sempre foi garanhão, ficou com muitas meninas. Igualzinho teu pai. Tu tem que se aquietar com uma menina só uma vez.
Eu não senti coragem -e talvez até vontade- de dizer que estava mais interessado no Hugo que em qualquer mulher.