Pai e mãe,
Depois de muito penar, consegui ter uma boa noite de sono. Fiquei triste por causa da minha situação com o Diogo. Será que estou sendo egoísta? Queria tanto receber o carinho e os conselhos de vocês.
***
Todos nós guardamos um segredo, seja ele pequeno ou grande. Ficar perdido na floresta transformou minha vida de uma forma que eu nunca imaginei. Apesar de ter dormido bem, tive um pesadelo no qual João se vingava de mim na frente de toda a escola. Não lembro dos detalhes, mas sei que não foi algo bom.
Acordei assustado e encontrei minha tia me fitando de forma engraçada. Ela trouxe o café da manhã do hospital — um pão com queijo e suco de maracujá — e até que estava gostoso. Depois de alguns minutos, titia continuava com a mesma expressão, uma espécie de sorriso malicioso.
— Tia? — perguntei, um pouco incomodado com aquele olhar.
— O que foi? — Tia Olivia pegou a bandeja e colocou sobre uma mesa.
— Qual o problema?
— Nenhum — respondeu, sentando-se ao meu lado.
— Dona Olivia, te conheço há 16 anos. Por favor, o que houve?
— Eu vi — ela soltou uma risada, parecendo uma adolescente. — Vi você beijando o Zedu. Olha só, Yuri...
— Eu não consigo esconder nada da senhora mesmo, né? — questionei, respirando fundo.
Estava tão vulnerável que comecei a chorar. Tia Olivia se levantou e sentou na cama junto a mim. Ela pegou minha mão, fez carinho e pediu para eu ter cuidado, principalmente quando o sentimento de outras pessoas estivesse envolvido.
— Como a gente sabe que é a pessoa certa? — questionei, enquanto enxugava minhas lágrimas.
— Yuri, a pessoa certa é aquela que está sempre no teu pensamento, aquela com quem você sonha, idealiza coisas, imagina uma vida a dois, sabe?
— Sei.
— E há quanto tempo você está com o Zedu?
— Três dias.
— Quer dizer que aconteceu durante o...
— Sim. A gente ficou pela primeira vez na floresta.
Caramba. Contei para outra pessoa que estava ficando com o Zedu. Pedi segredo à tia Olivia, pois José Eduardo ainda tentava entender seus sentimentos por mim. As coisas ainda estavam embaralhadas, e eu não queria me jogar de cabeça e acabar me machucando. Já bastava minha decepção com o Leo.
***
Brutus armou um plano para flagrar Lucas e João. Quando meu amigo fortinho queria, ele conseguia ser inteligente, ainda mais quando se tratava de tecnologia. Brutus pegou uma câmera emprestada com seu tio e a camuflou com alguns livros.
Não demorou muito para João e Lucas chegarem à casa dele. Eles trouxeram um jogo novo, Tripas Voadoras 3, um dos games mais desejados do momento. Entre brincadeiras e provocações, Brutus precisou usar todo o seu lado ator para não estourar com os dois.
— Ei, galera. Agora que o Yuri voltou, a gente pode armar contra ele — comentou João, colocando o CD dentro do X-BOX.
— Pode ser — disse Brutus, procurando o momento ideal para colocar o plano em prática.
— Calma, vamos ter tempo — disse Lucas, sendo censurado por João.
— Não vão brigar — pediu Brutus. — Turma, vocês podem começar a jogar. Vou comprar algumas coisas para a gente lanchar depois. Quero que vocês tranquem a porta de casa por dentro, porque aconteceram uns assaltos sinistros aqui. Eu ligo para vocês quando chegar — anunciou Brutus, pegando a carteira e entregando as chaves para João.
— Beleza, irmão — afirmou João, pegando as chaves da mão de Brutus.
Tem gente que não sabe a hora de desistir, né? Alicia aproveitou uma folga para visitar Zedu. A menina ficou realmente preocupada com o ex-namorado e se arrependeu de algumas decisões no relacionamento. Zedu até notou uma certa diferença no comportamento dela.
— Quer mais suquinho, amor? — perguntou ela, levando um copo de suco de maracujá para perto de Zedu.
— Não, obrigado. Alicia, não quero deixar as coisas mais difíceis do que já estão.
— Zedu, acima de tudo, sou sua amiga. Foi assim que a gente começou, lembra?
— Verdade.
— Falando em amigos, queria muito visitar o Yuri. Ele foi um amigão te ajudando.
— Hum... — Zedu ficou nervoso com a sugestão. — Acho... acho melhor deixar o Yuri descansar.
O quarto de Brutus se transformou em um verdadeiro set de filme pornô. João e Lucas se pegavam em cima da cama de forma selvagem, com destaque para o desempenho de Lucas. Eles só não imaginavam que uma pequena câmera registrava cada beijo e carícia.
Após alguns minutos de prazer, João levantou e seguiu para o banheiro, que ficava ao lado do quarto de Brutus. Ele lavou a boca e jogou a camisinha usada no vaso sanitário. Lucas entrou em seguida e tentou fazer um carinho na cabeça do amigo.
— Sai fora, viadão — disse João, batendo na mão de Lucas com violência.
— Credo, não tem ninguém aqui — respondeu Lucas, que, mesmo com a negação, tentou mais uma vez se aproximar de João e foi empurrado.
— Já disse. Sai. — De forma ríspida, João saiu do banheiro e deixou Lucas sozinho.
Manaus é um grande polo de cultura amazônida. Tive várias experiências boas nos eventos de que participei. Aliviada com o nosso resgate, Letícia finalmente aceitou o convite de Arthur para participar de um vernissage no centro da cidade. Mais uma vez, os amigos dele pareciam distantes da realidade da minha amiga, mas, naquela oportunidade, Letícia decidiu que tentaria ao máximo ser amigável.
Uma placa gigantesca mostrava o nome da vernissage: Ecos da Garganta. O evento reunia quadros de artistas plásticos, fotógrafos e apresentações musicais. Em um dos momentos-chave, uma das artistas, Rebecca, levou Arthur e Letícia para uma roda com pessoas que já haviam analisado todas as obras presentes.
— Arthur, por favor, diga o que sentiu ao ver Ecos da Garganta — perguntou Rebecca, pegando no ombro de Arthur.
— Hum... — soltou Arthur, tirando os óculos de grau e pensando em uma resposta. — Consigo me desprender das coisas que me cercam. É como se um portal se abrisse na minha frente e tudo sumisse. Você conseguiu transpor toda a agonia e agora só sobrou tranquilidade.
As opiniões continuaram noite adentro. Laura, uma moça gordinha e com uma franja estilosa, chorou ao ver que as obras mostravam a força do patriarcado na sociedade. Uma viagem ao meu interior, O meu coração se abriu para as obras e Sentimento de pertencimento foram algumas das análises que Letícia escutou dos participantes.
— E você, Letícia, né? — Rebecca pegou no ombro de Letícia. — Sua vez.
— Pode falar. Aqui não é um lugar de julgamento. Pode expressar seus sentimentos — disse Arthur, ao ver que Letícia estava nervosa e não conseguia dizer nada.
— Todos somos iguais, Letícia. Precisamos te ouvir, por favor — pediu Rebecca, com uma serenidade que incomodou Letícia.
— Bem... Gente, as obras são bonitas, mas não precisa de tudo isso, né? É quase tudo monocromático. Algumas fotos são apenas borrões. Apesar de tudo, eu gostei, só que pensaria nos detalhes. Parece mais, tipo, aquele filme Ecos do Além. Nem sei de onde tiraram essa história de paz interior.
Todos ficaram perplexos com a análise de Letícia. A pose serena de Rebecca desapareceu, e ela pediu gentilmente que os dois fossem embora da vernissage. Arthur e Letícia seguiram para o Teatro Amazonas, um dos principais pontos turísticos de Manaus. Eles se sentaram em um dos bancos do Largo de São Sebastião. Mesmo com toda a confusão, Arthur estava, aos poucos, se apaixonando pela minha amiga.
Enquanto o casal relembrava a reação das pessoas na exposição, um jovem se aproximou e cumprimentou Arthur. Era Bernardo, um amigo de longa data do cineasta. Eles explicaram a gafe de Letícia, e Bernardo começou a rir da situação inusitada — ainda mais porque Arthur costumava ficar apenas com garotas alternativas, algo que Letícia não conseguia ser.
— Queria ter visto isso — confessou Bernardo, rindo. — Arthur, meu amigo, não deixe a Letícia ir embora, por favor.
— Claro que não. Se depender de mim...
— Vocês dois, hein — Letícia riu, mas, no fundo, sabia que estava apaixonada por Arthur.
No hospital, segui para o quarto de Zedu, pois queria me despedir. Afinal, receberia alta, e ele ainda ficaria internado por alguns dias. Fiquei sem graça ao encontrar Alicia no quarto. O que ela ainda fazia com o Zedu? Usei todo o meu lado ator, não estava a fim de deixar a situação estranha.
Se tem uma coisa que aprendi nos últimos meses, foi a blindar os meus sentimentos. Contei minha versão da história para Alicia e, claro, omiti os detalhes picantes. Ela me abraçou e agradeceu por ter cuidado do Zedu.
O coitado do Zedu parecia mais abatido que o normal. Infelizmente, não pude aproveitar os últimos momentos para beijá-lo. Além disso, ainda havia dúvidas sobre nossa recém-iniciada relação. O que éramos, afinal?
— Yuri, prometo que vou tomar conta do Zedu — disse Alicia, pegando na mão do ex-namorado.
— Alicia, não precisa — Zedu soltou, rindo forçado.
— Eu prometi. A gente não é mais um casal, mas ainda vou cuidar de você, José Eduardo.
— Bem, acho que vou embora. A tia Olivia está me esperando. Zedu, qualquer coisa, liga para mim — pedi, indo na direção dele e o abraçando.
O plano de Brutus continuava de vento em popa. Ele voltou para casa e dispensou os colegas. No fundo, meu amigo fortão ficou com medo do que encontraria no cartão de memória da câmera. Apesar da hesitação, Brutus colocou o cartão no drive do computador e flagrou um encontro quente entre João e Lucas.
— Que merda. O que eu faço? Metade desse material eu não posso usar — murmurou, enquanto cortava toda a nudez e sexo do material original. — Por que esse ódio do Yuri?! Será que o Vando tem algo a ver com isso?! Calma, Brutus, você precisa manter a calma.
Sim, muitas perguntas e poucas respostas.
Nesse meio-tempo, Carlos continuava sua missão de vigiar os trastes — digo, Giovanna e Richard. Eles foram até o supermercado para comprar guloseimas para o meu retorno triunfal. Para facilitar, Carlos levou todos os itens escolhidos pela tia Olivia. E, óbvio, meus irmãos iam dar um jeito de infernizar a vida dele.
— Carlos, meu irmão gosta de comer bem, então precisa ser algo gostoso e caro — disse Giovanna, escolhendo um bolo Floresta Negra.
— Acho que...
— Não, está escolhido — afirmou Giovanna, cortando Richard, que não conseguiu opinar.
— Mulheres... — Carlos se abaixou e pegou no ombro de Richard. — Um dia você vai entender o poder delas.
— Por isso você é o capacho da titia?
— Capacho? Eu, não. Temos um relacionamento igualitário.
— Não parece. Você parece a mulher da relação.
— Mulher?
— Sim — Richard concordou, pegando no ombro de Carlos. — A titia manda.
Exames, exames e mais exames. Ah, claro, e mais exames. O médico me examinou de todas as formas possíveis, mas, pelo menos, afirmou que eu poderia voltar para casa. Fiquei feliz. Apesar de toda a desventura, consegui revelar meus sentimentos para o Zedu. Enquanto tia Olívia resolvia a parte burocrática do hospital, o Diogo apareceu e perguntou se poderia me acompanhar.
Eu gosto do Diogo. Como disse, ele foi uma parte importante da minha adaptação em Manaus. Será que eu estava errando ao manter o Diogo ao meu lado? Que droga. A vida poderia vir com um manual de instruções. Ao caminhar em direção à saída, passei pelo quarto do Zedu e, adivinhem, a Alicia continuava lá, como um cão de guarda.
O médico me examinou mais uma vez e disse que eu poderia me recuperar em casa. Fiquei feliz, apesar de tudo. Minha tia foi resolver a papelada do hospital, e o Diogo ficou me esperando do lado de fora do quarto enquanto eu me trocava. Quando saí, ele não estava mais lá. Saí e fiquei parada em frente à porta do quarto do Zedu. A Alicia o acompanhava, e eles pareciam felizes. Uma lágrima escorreu pelo meu rosto. Limpei-a e senti uma mão em meu ombro.
Na saída, repórteres de várias emissoras locais me esperavam. Finalmente, depois de anos sendo humilhado, eu conseguia meus cinco minutos de fama. O Diogo, sempre com seu instinto protetor, não deixou ninguém se aproximar demais. Tia Olívia avisou aos jornalistas que eu responderia apenas uma pergunta.
— Olá, sou Lua Brilhante, da TV Mundo. Yuri, conta para a gente como foi ficar perdido na floresta?
— Foram dois dias perdidos. O Zedu, meu amigo, e eu conseguimos achar o caminho de casa. Graças a Deus, o pior não aconteceu. Não diria que foi uma experiência infeliz, pois pude aprender muito sobre mim mesmo e sobre minhas limitações. Só quero voltar para a escola e me formar. Quero ter uma boa vida e valorizar as coisas, principalmente os amigos e a família — falei, olhando para o Diogo, que sorriu sem graça. — Agora preciso ir para casa.
"Após a tempestade, o sol vai brilhar." Essa é a frase mais dita pelo meu pai. Eu sempre repetia a mesma coisa para os meus amigos. E vejo muita verdade nela, porque, não importa a situação, depois da tormenta, o céu fica limpo e os raios solares reinam absolutos.
Brutus decidiu consertar sua situação com Ramona. Minha amiga ainda estava magoada por causa das atitudes dele, mas, apesar de lento, Brutus não conhece o significado da palavra "desistir". Ele foi até a janela da casa de Ramona e começou a gritar por ela. Não demorou muito para que Ramona – ou uma versão maligna dela – aparecesse e desse uma bronca em Brutus.
— Você não precisa falar mais nada, ok? Ramona, eu sei que fui um idiota. Falei com o Yuri e pedi perdão. Sinto muito. Eu quero que tudo volte a ser como antes, por favor.
— Eu não sei... Preciso de um tempo para pensar. — Ramona respondeu, fechando a janela de seu quarto e deixando Brutus triste.
— Na verdade... de você... eu quero mais que amizade. — Ele se aproximou e beijou Ramona, que se afastou e levou a mão à boca.
— Não podemos. — Ela entrou em casa.
Zedu era gay. Sentiu-se diferente ao me contar a verdade. Um peso foi tirado de seus ombros, mas como ele reagiria à reação dos outros? Ainda deitado no hospital, olhou algumas fotos no notebook e percebeu que não tinha nenhuma apenas comigo.
De repente, todos os momentos que passamos na floresta vieram à sua mente. Um misto de emoções tomou conta dele e, então, as lágrimas foram inevitáveis. Zedu lembrou-se também do nosso primeiro beijo, de como achou minha boca gostosa e macia. Ele observou sua mãe, que dormia em uma cama improvisada, e o medo de decepcioná-la o fez chorar ainda mais.
— Desculpa, mãe. Eu não posso lutar contra esses sentimentos. Me perdoa. — pensou Zedu, limpando as lágrimas que insistiam em cair.
Eu não lembrava que tinha tantos amigos. Ao chegar em casa, encontrei algumas pessoas queridas, como Letícia, Arthur, Ramona, Brutus, George, Jonas, Hélder e, claro, meus irmãos, além de Carlos e da titia.
A mesa estava farta. Eles acertaram nas opções, embora, para um gordo preso na mata, qualquer comida seja uma delícia. Bolos, docinhos, salgados e suco de laranja. Na sala, encontrei um cartaz de boas-vindas. Decidi aproveitar aquele momento, afinal, não é todo dia que somos paparicados dessa maneira.
Outra coisa bacana nessa situação toda foi a união da minha família com os amigos, principalmente com o Bonde dos Ursos (George, Hélder e Jonas). A titia me puxou para um canto e perguntou como eu conhecia homens mais velhos, mas expliquei toda a história e a tranquilizei.
Sim, um dia perfeito. Quer dizer, faltava José Eduardo, o dono do meu coração. Mandei algumas mensagens, mas nenhuma foi visualizada e, principalmente, não houve resposta. Com certeza, Alicia continuava no hospital, fazendo o meu papel de cuidador do Zedu.
— Tá pensativo. — Diogo falou, surpreendendo-me.
— Oi. — respondi assustado, quase derrubando meu celular.
— Se eu te fizer uma pergunta, você jura que vai ser verdadeiro comigo?
— Vou tentar, Diogo.
— Aconteceu algo entre você e o Zedu? — ele perguntou, colocando-me contra a parede.