Relicário de Memórias: Forja do Diamante
Dois anos haviam se passado. Eu ainda estava me recuperando dos velhos fantasmas de um amor que ainda tentava esquecer.
H. tinha se tornado um bom ouvinte. Com sua ajuda, consegui recuperar o boneco e reconstruí-lo, mas seu corpo já estava tão degastado que ele não acordou. É difícil de explicar, afinal ele não é um imaginário? Deveria já estar melhor, não sei ao certo. H. me falou que até guias espirituais podem adoecer. No caso do boneco, foi minha culpa. Felizmente, ele já está melhor e logo deve acordar.
[...]
Devido a todos esses transtornos esqueci muita coisa. Estava bastante enferrujado, por isso tive que ingressar novamente em um cursinho pré-vestibular para reaprender conceitos básicos. Não foi fácil, afinal voltar ao mundo real é um desafio. O comodismo tem essa faceta ao seu favor, é fácil viver com ele. Não ter que encarar rostos antigos e novos, nem desejos antigos e novos.
O H. e o S. me ajudaram. O boneco tinha acordado e agora era chamado de “S.”. Depois de algumas semanas, ele já tinha recuperado parte das memórias. Aliás, antes disso, reencontrei o Laranja. Foi algo rápido, nada muito sério a ponto de me afetar. Pelo menos, foi o que disse para mim mesmo, mas isso já é outra história. Esta não é sobre ele.
[...]
Na primeira semana, fomos apresentados aos professores. Apenas as disciplinas básicas eram ensinadas: português, matemática, geografia, história e biologia. Os professores eram experientes, por isso não tive muitos problemas para entender, pelo menos até aquele momento. Além disso, nunca fui tão ruim na escola.
Logo no primeiro dia, perguntaram qual era a nossa escolha para o vestibular. Como sempre gostei de construir coisas, respondi que estava em dúvida entre arquitetura, engenharia civil ou mecânica. De toda maneira, eu ainda tinha um pouco de tempo para escolher, por isso pus essa preocupação um pouco de lado.
Na segunda semana, alguns alunos novos chegaram e também houve uma mudança repentina do professor de matemática. O que me surpreendeu foi saber que o professor substituto era o Leonardo.
[...]
─ Leonardo, há quanto tempo de novo por aqui?
─ Olá, Felipe. Sim, aqui de novo. O professor de matemática não poderá mais vir, já que aceitou um contrato novo. Então irei substituí-lo. Estou cursando matemática e já posso lecionar. E você, novamente no cursinho? Você sumiu do nada naquele ano, o que aconteceu?
Demorei um pouco para responder. Nunca fui muito próximo do Leonardo, mas era agradável conversar com ele nos intervalos das aulas. Ele me ajudava bastante em matemática.
─ Ah... Tive alguns problemas de saúde, mas já estou melhor. Esqueci muita coisa, no fim, tenho que relembrar até os assuntos mais básicos.
─ Sem problema, você sempre se saiu bem. Qualquer dúvida pode me chamar.
Era esquisito rever o Leonardo. Aquele sorriso tímido dele era encantador. Não tinha como negar. Não que ele fosse o tipo “superbonito” ou algo do gênero, contudo não sei dizer, ele passava uma sensação/vontade de abraçá-lo e de protegê-lo. Alguém que você sabe que valeria a pena amar.
─ Se contenha Felipe!
─ Sim, se contenha!
─ Eu sei H. e S. ...
─ Oi, Felipe?
─ Ah... Desculpa Leonardo.
─ Sempre reticente. Pelo menos isso não mudou. Cuidado, espero que não te atrapalhe. E vê se não, some.
─ Claro...
[...]
─ Ele mudou, não foi?
─ Quem o Leonardo?
─ Sim. Ele perdeu um pouco daquele brilho no olhar. Claro que sempre o achei calado demais, distante dos outros. Sempre nos afastava, mesmo que nunca diretamente, com suas leituras e estudos, porém ele parece mais “estranho” do que o normal, como se estivesse tentado esconder alguma coisa.
─ Você quer interferir?
─ Não sei H. nunca fui muito próximo dele, mas não nego que seria bom interferir um pouco. Pelo menos para deixar aquele cabelo certinho dele um pouco bagunçado.
─ Não seria uma má ideia mesmo. Gosto dele.
─ Concordo com o H. Gostei do Leonardo.
─ Não comessem. ─ Enquanto eu pensava, vi uma troca de olhares entre o H. e o S. como se partilhassem segredos que eu não sabia. Claro que isso tudo acontecia apenas na minha cabeça, no entanto, com todos esses anos, estava cada vez mais real a presença deles. No fim, deixei passar aquela brincadeira dos dois, afinal o comportamento do Leonardo tinha realmente chamado minha atenção.
[...]
Toda semana havia duas aulas de matemática, por alguma razão eu me sentia mais a vontade para tirar dúvidas com o Leonardo. Sem perceber, tínhamos ficado um pouco mais próximos, a ponto de poder chamá-lo de Leo. Claro que por minha causa, pois ele era realmente antissocial. Vez ou outra, conversávamos sobre assuntos mais particulares, algo além das minhas velhas dúvidas em trigonometria. Nesse tempo, ele me falou que estava cursando duas faculdades distintas, ao mesmo tempo, a de matemática e a de Ciências Contábeis. Ao saber disso, pensei que esse seria o motivo da minha primeira impressão dele, já que nem consigo imaginar como ele conseguia arrumar tempo para ser professor, mas meu “instinto” não estava errado, não era pelo excesso de estudo e trabalho que ele estava daquele jeito. Seu olhar parecia demais como o meu há dois anos, por isso tentei de toda maneira saber mais sobre sua vida particular. Entretanto, não obtive muito sucesso.
[...]
─ Escolha o que você mais gosta Felipe. No meu caso, sempre gostei de matemática como também de contabilidade, do trabalho de escritório. No fim, acho que vou viver como um empresário mesmo, ainda que pareça difícil, hoje, me imaginar dessa forma.
─ Eng. Mecânica me atrai. Talvez eu escolha ela mesmo. E eu não sei como você consegue administrar tudo isso. Dois cursos, aulas. Só de pensar já cansa.
─ Já me acostumei. No início, foi difícil, no entanto agora virou uma rotina. É bom estar atarefado te faz esquecer os problemas.
─ Verdade, mas cuidado não se sobrecarregar.
─ É como eu disse, já virou uma rotina. E sobre sua escolha você vai se sair bem.
─ Não tenho tanta certeza assim, mas obrigado...
─ Você mudou muito Felipe.
─ Como assim?
─ Não sei dizer, você sempre foi tão espontâneo. Falava tanto. Ainda que fosse um pouco perdido em pensamentos, por outro lado hoje em dia você está mais calmo e calado do que antes.
─ Não sei explicar. Passar esse tempo doente me modificou de alguma forma. Não sei. Acho que amadureci um pouco... ─ Parei de falar por um momento, ainda que estivéssemos próximos, não quis entrar em detalhes, afinal, eu não tinha contado para ninguém. Então, para tirar o foco sobre mim na conversa falei sem pensar ─ Eu não fui o único.
─ Como?
─ Oras, é perceptível, você mudou também. Você está mudado, não sei se devo falar isso, está mais distante do que o normal e parece que carrega um peso tão grande nos ombros...
─ Sempre um bom observador. Você está certo, contudo não sei se estou completamente preparado para falar sobre isso... ─ Ele ficou calado por um bom tempo, só depois de olhar para o relógio é que voltou a falar, terminando a conversa de imediato. ─ O intervalo já terminou ─ era perceptível o mal estar dele. O que me preocupava era que eu não tinha falado nada demais, pelo menos foi o que achei.
─ Desculpa Leo não quis ser intrometido.
─ Sem problemas...
Os alunos começaram a voltar para a sala. Era comum ficarmos conversando sobre problemas de matemática, de física e amenidades da vida enquanto a maioria dos alunos saia da sala.
A sala era relativamente grande. Havia um quadro ladeado por uma parede branca, um retroprojetor antigo na mesma mesa que um computador, além de muitas carteiras escolares. Eu sempre achei aquela sala tão grande, porém naquele dia vendo as pessoas entrarem nela e olhar aquele meio sorriso do Leo de “não pergunte, não interfira, por favor” foi sufocante. Por isso, na segunda aula, não tirei os olhos dele enquanto pronunciava uma explicação sobre funções. Não lembro nada do conteúdo agora. Só consegui prestar atenção nele. Parecia que eu estava olhando para um espelho. A mesma angústia que eu sentia ao olhar meu reflexo. A angústia de uma verdade que tentava, em vão, mudar. Eu não sei se estava certo, contudo ao olhar aquele homem alto de pele clara, sua barba por fazer, seus olhos castanhos protegidos por óculos de grau simples, seu cabelo milimetricamente penteado, a forma atenciosa de responder as perguntas, o sorriso tímido e, principalmente, os olhos eu tinha chegado a uma conclusão: “ele também...”.
Eu poderia estar errado. Era provável que estava. Não sei de alguma forma, parecia tão óbvio para mim. O seu sofrimento era igual ao meu. Dava para ver nos olhos. Não consigo explicar mais do que isso e, infelizmente, parecia que ele não queria ajuda.
─ Você deve aprender a ser mais paciente Felipe. Talvez, quando você estiver mais próximo ele conte alguma coisa.
─ Verdade S. Sei que não devo interferir, mas se alguém tivesse visto o meu sofrimento naquele período eu queria ter sido ajudado ou teria sido rude, não sei. É tudo muito complicado e ao mesmo tempo eu o entendo.
─ Também o entendo, todo esse problema que tive meus medos, minha angústia, me levaram a um fim tão triste e solitário que eu só melhorei quando realmente quis ser ajudado e você me consertou. Entretanto, no caso do Leonardo, quem vai ajudá-lo, quem vai consertá-lo? Ele parece sempre tão só...
─ Não se preocupem S. e F. o Leo vai ficar bem.
─ Como você sabe?
─ Não, sou um “cristal” imaginário à toa. Ele vai ficar bem. Um conhecido nosso vai ajudá-lo.
─ Quem?
─ Se eu falar vai tirar a graça e, além disso, se contenha, pois vocês não estão destinados.
─ Ei! Só porque eu o acho interessante não significa que vou me jogar em cima dele e pare de rir S.!
─ Desculpa, desculpa...
─ Mesmo assim, você fala isso com a mesma convicção de antes, como no caso do Laranja, porém o seu olhar para ele é tão óbvio quanto.
─ Chato. Não posso negar essa barba por fazer e esse visual “nerd” dele me faz ter alguns pensamentos pervertidos...
─ Eu até te entendo F. olhar para ele da uma vontade de querer ajudá-lo e protegê-lo...
─ Não é? Dá vontade de interferir na vida certinha, dele. E Felipe é melhor você voltar a prestar atenção na aula. ─ S. falou tentando parecer o mais sério possível.
─ Acho bom, só não babe F.
─ Parem os dois! Nunca senti tanta saudade da Jora, ela era tão madura.
[...]
O tempo foi passando e meus pensamentos pervertidos com o Leo já tinham melhorado, mas os hormônios da adolescência ainda faziam efeito.
Ficamos mais distantes com o tempo, mesmo assim continuávamos conversando. O que me surpreendeu foi que era ele que estava iniciando as conversas. Não posso negar que eu sentia algo por ele. Claro que não foi nada tão intenso como no caso do Laranja, mas não consigo explicar qual era a verdadeira face daquele sentimento. Não era só desejo físico era algo a mais. Infelizmente, era mais fácil eu reencontrar uma terceira vez o Laranja do que conseguir me aproximar dessa forma do Leo. Ele realmente era um lobo solitário incorrigível.
[...]
─ Sim, você tem que isolar primeiro caso contrário não consegue o resultado correto.
─ Ah! Entendo.
─ Isso.
─Você aprende fácil. Seria bom se a maioria fosse assim.
─ Que nada, você que é um excelente professor Leo ─ depois de falar isso ele ficou vermelho, o que me lembrou de um velho amigo imaginário. Tão fofo.
[...]
─ Se contenha Felipe ─ S. e H. falaram em uníssono em meus pensamentos.
─ OK, ok...
[...]
─ Obrigado...
─ Ah! Já está na minha hora. Tenho que ir Leo. Obrigado pelas dicas.
─ Se precisar de ajuda pode pedir.
Fui andando para a saída. Talvez fosse impressão minha, mas senti ser observado. Eram estranhos todos aqueles sentimentos novos. Eu me sentia mais confiante e era tão bom gostar de alguém sem se sentir culpado. Eu sei que aquele poderia se tonar um novo amor platônico, por isso tive cautela nas minhas ações. Entretanto, algo me dizia que não era isso. Não era amor ou gostar, não do tipo convencional. Eu via no Leo quase um espelho da minha personalidade mais reservada, por isso era quase impossível vê-lo e não tentar interferir.
─ Tenho que concordar. Vocês se parecem. Não é S.?
─ Verdade.
─ Queria que ele fosse mais sincero com os sentimentos, se bem que não posso exigir isso quando eu também não sou. De toda maneira, acho que sei como ajudá-lo.
─ Não se precipite F.
─ Espere um pouco mais.
─ Eu sei que devo ir com calma, mas me desculpem tenho que interferir no seu “cabelo”, na sua vida certinha. Mesmo que não funcione, mesmo que isso nos machuque e nos afaste, o que é provável, afinal, o ano já está terminando e logo a época dos vestibulares e do Enem irá chegar.
─ O que você pretende? ─ perguntou S.
─ Uma carta.
─ Uma carta? Uma declaração?
─ Claro que não, H. Seria praticamente uma mentira. Não nego que ele me desperta alguns desejos pervertidos, mas não é isso. É aquele “tipo” de carta.
─ Aquele?
─ Sim.
─ Que tipo? Não me deixe de fora H. e Felipe.
[...]
Preparei aquela carta mais uma vez, era o mesmo tipo que eu tinha feito para os meus amigos mais próximos, alguns anos atrás. Por falar nisso onde andam eles? Sou um péssimo amigo mesmo. Depois de todo esse tempo nos distanciamos e só nos reencontramos poucas vezes. No fim, permaneci conversando com Samanta e Rafael, porém só por e-mail ou por carta. Eles achavam tão ultrapassado receber cartas, mas eu sempre enviava uma quando dava tempo. Nós três tínhamos nos tornado bons amigos, mais do que antes. E ainda que eu fosse um pouco receoso com Samanta era óbvio que ela sabia de tudo e esperava que eu contasse, parecia até que ela conseguia ler pensamentos. Não era uma “informante” à toa como H. sempre me lembrava. Já com Rafael, tinha sido diferente, nunca fui próximo dele, porém começamos a falar tantas coisas. Talvez a conexão online tenha me dado coragem e sem prensar muito contei quase tudo para ele: a história do Laranja, do Leo e algumas outras memórias. Entre as revelações, ele me contou a história dele com o Ricardo. Não contive a surpresa, afinal eles eram totalmente opostos, talvez o amor goste disso, pois eles continuavam juntos. Prometo contar essa epopeia depois. Ler suas confissões e desejos era divertido e libertador. Ser franco com alguém além dos imaginários e ser encorajado a falar de sentimentos era realmente bom.
[...]
─ Ainda não entendi, como você vai ajudar o Leonardo com isso Felipe?
─ Vou colocar na bolsa dele S. a carta é um mistura do que sei sobre ele, do que imagino saber. E do que sinto. É provável que ele fique chateado, porém caso ele queira falar alguma coisa, desabafar é bom que ele saiba que eu me importo.
─ Então é realmente uma declaração. Cuidado Felipe.
─ Não se preocupe S. Continua sendo apenas uma carta e não, não é uma declaração. Pelo menos não uma convencional...
A aula correu como de costume, no intervalo quando todos saíram coloquei a carta na bolsa dele. Por sorte ninguém viu. Seria estranho se alguém me visse mexendo na bolsa de um professor.
[...]
Perspectiva do Leo (memória compartilhada anos depois)
Eu tinha chegado ao meu apartamento, já fazia algum tempo que o eu o financiava. Era um bom condomínio. Era aconchegante e próximo das duas faculdades. Além, disso, era um bom lugar para evitar pessoas.
Alguns arbustos permeavam a entrada, o cheiro das rosas cultivadas com cuidado por umas das vizinhas era agradável. Não havia pessoas barulhentas, era perfeito para minha personalidade. Talvez, só um pouco longe da atual escola que eu lecionava, mas o dinheiro era muito bem-vindo. E não havia do que reclamar daquela vista, valia a pena. Da varanda, dava para ver o mar e um belo por do sol. Tudo muito modesto e bom o suficiente para relaxar depois de um dia corrido de faculdade e trabalho. Era una ótima vista para revisar algumas anotações importantes das aulas, mas aquilo podia esperar.
Joguei minha bolsa no sofá e fui tomar banho, a água escorreu pelo corpo como se lavasse parte da alma. Sem perceber eu estava, novamente, pensando na vida enquanto tomava banho. Tentei rapidamente tirar as preocupações da cabeça. Tenho ainda muito trabalho pela frente, provas e planilhas para preencher, nada de perder tempo com besteiras, pensei.
Antes de dormir, olhei algumas anotações do dia. Entre os papéis, percebi que havia uma folha que não me lembrava de ter colocado ali. Parecia ser um papel de carta. Sem remetente e sem destinatário, mas parecia a letra do Felipe.
[...]
Na carta: Forja do diamante
Lembro-me do dia, da hora, quem sabe até dos minutos. Eu tinha chegado à conclusão que mudaria minha vida inteira. Eu não tinha escolhido, mas o diamante já tinha sido forjado. Não dava para alterar e infelizmente não veio com instruções de como manejá-lo. Era pesado demais. Perigoso demais para andar com ele à mostra. Era bonito, sim era, mas só na fantasia. Seu fragmento quebrado poderia ferir a pele. Por azar, eu sabia que não poderia consertá-lo sozinho e por isso nem tentava, no entanto, por sorte, eu nunca fui o único a possuí-lo, ainda que meu egoísmo teimasse em pensar o contrário.
Ele era transparente quase translúcido, porém não era invisível ou substituível. Escondo-o até hoje. Sua forma é de um pequeno coração, mas já é quase impossível reconhecê-lo...
É surpreende que as pessoas mais belas de corpo e alma nem percebem o que são. Nem sei qual o objetivo de todas essas palavras se são só para o meu ego, para minha consciência ou para você, contudo, por favor, não me entenda mal. Tentaram me impedir de fazer isso e para ser sincero acho que nem deveria interferir, porém minha vontade egoísta ou altruísta, não sei, falou mais alto. Decidi interferir, pelo menos um pouco, porque seus olhos revelam para mim a verdade. Não como uma acusação, mas como uma constatação de alguém que é semelhante, que também carrega um diamante.
Sabe, nesses últimos anos fiquei longe de todos, dos amigos, dos conhecidos e mesmo assim nunca me senti completamente sozinho, por outro lado, doí olhar para os seus olhos e ver tanta solidão. Posso estar errado, quero estar, contudo algo me diz que não estou. Por isso, por favor, não o faça.
P.S. Um diamante é forjado com cuidado e rigidez, mas até a mais valiosa das pedras pode se despedaçar em uma queda, por outro lado se for um coração ele pode sempre se recuperar. Mesmo transparente e em pedaços ele não é invisível ou substituível...
P.P.S. Essa carta não tem objetivo de conversa, segundas intenções ou declarações. Era apenas um sentimento preso que nem com palavras seriam libertos, contudo quem sabe com uma carta? Não precisa respondê-la. A intenção desta carta é ela própria.
[...]
Em pensamentos: É. Aquele garoto realmente não é comum, mas infelizmente não posso deixá-lo interferir. Já tenho tudo planejado. Não mereço tudo isso e nem sei ao certo como reagir. O que falar? O que responder? Claro que eu tinha percebido os olhares do Felipe, porém eu não posso retribuí-los. Eu não quero ter esse tipo de elo com as pessoas e nem machucá-lo, ainda que eu saiba que ele esteja certo e que irei machucá-lo. Era o meu velho espírito rígido e egoísta, novamente, eu sabia disso e mesmo assim ele venceu qualquer chance de responder a carta. No fim, restou o completo silêncio.
[...]
Perspectiva do Felipe.
Eu não falei nada sobre a carta. Nem ele. Eu sabia o que significava. Eu tinha certo medo disso, mas talvez seja como o H. disse não sou eu o encarregado de ajudá-lo. Claro que fiquei chateado, porém por alguma razão sentia que tinha cumprido pelo menos um pouco do meu “dever”.
As aulas já estavam prestes a terminar. Nesse tempo não nos falamos muito. Tentei evitá-lo, contudo me senti culpado porque parecia que a carta tinha afetado mais a ele do que a mim.
Certo dia, ficamos apenas nós dois na escola. Normalmente, cada professor é responsável por trancar as salas que lecionam, por isso podemos ficar lá por algumas horas. Eu lutava para resolver um problema de matemática e depois de um tempo absorto percebi que deveria resolver pelo método que o Leo havia me falado dias atrás. Comecei a sorrir por nenhum motivo, era estranho que eu se lembrasse do sorriso dele nessas pequenas coisas, mesmo quando já tinha “desistido”. É como o H. fala: eu desisto muito fácil dos meus objetivos e contraditoriamente sou um exímio teimoso em não desistir, pensando bem ele não está errado.
Depois de resolvido o problema, fui em direção à saída da sala. Claro, que pensei que aquela seria uma boa oportunidade de escutar uma resposta, qualquer que seja. Ainda que o texto da carta fosse claro, e em tese, eu não esperasse uma resposta, seria bom ouvi-la. Felizmente, antes de sair da sala, como se ouvisse meus pensamentos, ele atendeu a esse pequeno desejo.
─ Felipe, desculpa ─ ele apareceu na minha frente me surpreendendo. Sem reação e fingindo de desentendido falei:
─ Pelo quê?
─ Você é um garoto muito especial. Mesmo, mas desculpa não me sinto a vontade de compartilhar esses sentimentos. Eu sei que você deve me achar um babaca... ─ Ele tentava se desculpar, porém a impressão era que ele tentava se convencer que tudo aquilo que dizia era verdade. Era triste olhá-lo, talvez não tenha sido “apenas uma carta” afinal. O que eu poderia fazer para ajudá-lo? Restou apenas falar:
─ Claro que não. Por algum motivo estranho, consigo entender o que você sente e o que você diz é como se fosse comigo mesmo. Você também é alguém muito especial. Algo me diz que você vai perceber isso logo. Não se culpe por nada, eu que devo pedir desculpas...
─ Não, você não precisa. Eu nem ao menos respondi a sua carta. Para ser sincero não sei ainda o que responder, mas muito obrigado. Muito mesmo ─ ao falar isso, ele ficou mais próximo de mim e apertou o meu ombro com sua mão. Parecia ter sido uma ação impensada, pois ele ficou com mais vergonha do que eu. Era surpreendente que alguém na idade dele parecesse mais inocente do que já fui há tanto tempo. Como alguém nunca tinha enxergado aquele homem que estava ali na minha frente? Depois de pensar isso, logo, eu soube o motivo. Ele mesmo me deu a resposta, ao olhar para mim com o aqueles olhos. Parecia que ele tinha desistido. De tentar. De encarar. Parecia os meus de anos atrás.
Espero que o H. esteja certo, mas mesmo que ele esteja... Sem pensar nas consequências o puxei com toda força que pude e o abracei. Para mim parecia algo simples. Ou não. Não sei explicar. Não houve palavras. Estávamos sozinhos naquela sala e parecia que estávamos em outro mundo. Era apenas um abraço simples, qualquer um que visse teria dito isso, pensando agora eu deveria ter roubado um beijo, sei lá. Entretanto é provável que ele tivesse impedido, afinal, ele resistiu no início. Não era mais só um abraço... Ele era mais alto do que eu. Dava para sentir seu perfume, o calor do seu corpo, sua respiração pesada, seu peitoral pressionado contra o meu e até o seu coração acelerado. O meu também estava. Eu permanecia me comportando como um adulto, porém eu estava na mesma situação que ele. Compartilhamos mais do que um abraço naquela noite, foram sentimentos de duas pessoas que carregavam os mesmos sentimentos, os mesmos diamantes. Naquela noite, até me esqueci dos pesos nos ombros, apenas senti sua cabeça e mais nada.
Nosso abraço durou um bom tempo. E como se os pesos tivessem voltado, ele rapidamente se afastou dos meus braços. Eu continuava olhando para os olhos dele. Depois de todos esses meses, eu consegui ver um pouco do velho brilho que ele tinha no olhar. Parece até mentira lembrar-se de tudo isso agora, mas o H. nunca me deixa esquecer. Olhei para ele mais uma vez e disse o mais franco possível:
─ Eu sei que não sou o “escolhido”, mas invejarei quem for e, por favor, não desista. Eu pensei seriamente em desistir antes. Se eu tivesse nunca teria abraçado alguém tão livremente como agora. Sem amaras ou reprovações. Talvez não nos vejamos mais com tanta frequência, eu sei, porém espero te encontrar um dia desses Leo. Espero que você me conte uma bela história e me permita escrevê-la. E não se preocupe não precisa ser tão rígido consigo mesmo ─ só depois de dizer essas palavras percebi que, intencionalmente ou não, me declarei para ele. Pelo visto eu tenho uma queda por amores platônicos, ainda que não tenha certeza se essa é a denominação correta para aqueles sentimentos.
─ Obrigado Felipe, me desculpe eu...
─ Sem mais desculpas, hoje, não há nada para se desculpar e falta mais uma coisa... ─ Baguncei o seu cabelo certinho para não ter que escutar o óbvio. Logo depois, nos despedimos com um aperto de mão e promessas de nos reencontrarmos no futuro.
[...]
Três anos depois
Estava com 21 quase 22. Reencontrei-o por acaso enquanto visitava a minha família, já que eu havia me mudado devido ao curso de Engenharia Mecânica que se mostrou uma excelente escolha.
Ele estava passando pela famosa escola, por alguma ironia do destino também passei por lá depois de ter ido à casa do Rafael. Assim como H. havia me prometido, os olhos dele estavam como deveriam. Felizes como deveriam ser.
Leo estava mudado. Um pouco mais forte e mais alto do que de costume. Era uma bela visão. Ainda mais com aquele sorriso de sempre.
Ele foi quem falou primeiro. E por incrível que pareça contou muitas novidades. Depois da conversa, prometemos nos reencontrar e falarmos com mais calma, pois queria contar uma história.
No segundo encontro, ele contou tudo. Desde nosso tempo, da velha carta que ele ainda guardava. Sobre o novo emprego em uma das principais empresas da cidade, de amenidades da vida e tantas outras coisas. Entre elas sobre o Pedro! O que me surpreendeu muito. Será que H. é um vidente?
Fiquei feliz por ele, mas não pude negar para mim mesmo minha inveja. Era quase um pecado capital pensar neles dois... No embalo das revelações contei como estava minha vida, os desafios e os problemas que enfrentei nesses anos. Falei tudo sobre o Laranja. E ele me contou que também o conhecia. O mundo é realmente pequeno como H. costuma falar. Senti-me como se tivesse reencontrado um importante amigo de infância. Estava feliz, apenas por vê-lo feliz.
No fim da conversa, trocamos contato e me ele surpreendeu mais uma vez ao me abraçar. Os sentimentos eram diferentes. Eu não estava com dúvidas do que sentia, nem ele. Não havia mais pesos nos ombros, quer dizer, talvez, só um pouco nos meus, porém já não era tão desconfortável. Ele continuava usando o mesmo perfume e estava ainda mais alto do que eu. Dava para sentir uma leve respiração do seu peito. Nossos corações não estavam acelerados como daquela vez, no entanto a sensação de paz e tranquilidade foi indescritível.
[...]
─ Eu não poderia deixar de retribuir Felipe. Aquele abraço me ajudou a continuar. Claro que na minha teimosia tentei esquecer tudo, pensei em besteiras e que já estava tinha planejado tudo, mas não estava e nem está. Obrigado por tudo e desculpe por qualquer coisa.
─ Como eu disse no passado, sem mais desculpas...
Nos despedimos uma segunda vez, e diferente do passado foi ele que bagunçou o meu cabelo. Começamos a rir por motivo algum. Era uma local aconchegante, no fim de uma rua tranquila, algumas mesas com entalhes de madeira. Um bar simples e convidativo para uma bebida, ainda que eu não bebesse. Depois de toda essa história aprendi muito, percebi que amores do passado podem se tornar bons amigos. Com esses pensamentos eu enfim percebi. Talvez não fosse um amor convencional, mas eu o amei. Um amor maduro. Isso dava uma nostalgia, mas não me perguntem por que, não era, de maneira alguma, um sentimento ruim.
P.S. ─ E toda essa perversão no final F.? Só observo.
─ Shiu H.
─ Felipe, no fim, você não contou a história com o Laranja. Você não tinha o reencontrado? Essa parte final da história com o Leonardo não foi depois?
─ Verdade S., mas prometo que contarei na próxima.
─ Espere um bom tempo S., o F. tem até medo de contar toda a história.
─ Não é isso. Depois de todos esses anos, é difícil lembrar tudo. Ajude-me H. a não esquecer os detalhes.
─ Ok, chefe.
─ Ainda sobre essa história, você deveria ter beijado ele.
─ S.!
─ Como se você não tivesse pensado nisso F.
─ Eu sei, mas não tinha de ser, ainda que o Leo esteja em um lugar reservado no meu relicário. Além disso, H., no fim, foi como falou, realmente, um conhecido ajudou o Leo.
─ Não disse? Vocês são muito parecidos. Eu sabia que ia ficar tudo bem. Sinceramente, preferia que vocês estivessem juntos, gosto mais do Leo do que do Laranja.
─ Não se preocupe Felipe, é puro ciúmes.
─ Calado boneco!
─ Não comessem e deixe de coisa H., afinal, foi você que me incentivou, não lembra de que antes do S. acordar e na faculdade...
[...]