Quando Clarice afirmava que eu tinha um medo terrivel de perder o Marquinhos, era verdade ate certo ponto. Havia sim esse temor, là no fundo do meu coraçao, mas ele se atenuava conforme o tempo passava, conforme eu percebia que o ano em que estavamos nao seria "o ultimo" dele, de nos dois juntos. Fazia quase um ano que eu tinha uma certeza clara e concreta de que o teria ao meu lado por muito, muito tempo.
Essa certeza veio num dia critico. Ele tinha passado mal com o remedio o dia todo, vomitando, irritado, chorando de cansaço daquilo tudo. Nao conseguiu se alimentar direito, faltou no trabalho e eu tambem tive de faltar para cuidar dele. Foi um dos piores dias, meu coraçao sangrava de pena ao ve-lo assim, abalado; antes de dormir ele chorou agarrado a mim, maldizendo a doença e a propria vida. Deixei-o desabafar, sem contestà-lo, embora odiasse aqueles momentos nos quais ele afirmava preferir a morte. Enfim ele descansou, fatigado, enquanto fiquei acordado sentindo-o suar abundantemente, como ainda ocorria algumas vezes. Nesse momento, olhando para ele e pensando por quanto tempo mais ele aguentaria, e em como seria minha vida caso ele se fosse, fui tomado por uma certeza repentina e estranha, quase um sopro no meu ouvido, alguma coisa me dizendo que ele suportaria tudo pois era forte, valente, e viveria ainda por longo tempo ao meu lado. Foi estranho pois senti meu peito se acalmar na mesma hora, como num beijo de esperança; acordei o Marquinhos depois de uma hora e ainda sonolento o levei para a ducha do chuveiro, tirando todo aquele suor que minava de seu corpo. Ajudei-o a se enxugar e vestir, perguntando se ele ainda estava nauseado; para minha surpresa e alegria, respondeu que estava com fome.
- Otimo! Vou fazer um sanduiche de queijo pra voce. _ falei, calçando os chinelos _ Espere aqui e nao durma.
Fiz logo dois, mas ele comeu um e meio, sentindo-se satisfeito. Felizmente segurou a refeiçao no estomago, aproveitando para ingerir o remedio tambem, e assim pode dormir mais sossegado. A doença mesmo nao causava muitos sintomas nele, à excessao do suor noturno e certo cansaço; o pior eram os efeitos colaterais do AZT, isso sim o exauria e desanimava. O medico, entretanto, aprovava os resultados dos exames dele, dizia que estava tudo relativamente bem na medida do possivel; o importante era manter o medicamento e a boa alimentaçao, o resto era sorte e confiança.
Eu tinha muita fe' na vida e na força dele. Naquele rapaz de vinte e seis anos, um metro e setenta, sessenta e tres quilos, alegre, bravo, com bom gosto para tudo, sempre pensando em musica, em sexo, em chocolate, com uma garra de viver que eu admirava o tempo todo. Esse era o meu Marquinhos. Por ele tambem retomei minha confiança em Deus, e agora rezava toda noite numa prece breve, pedindo que ele nao sofresse tanto, que sua vida fosse mantida, bem como minha força e saude para continuar cuidando dele. E por ele me percebia mais maduro, consciente de minhas enormes responsabilidades como um homem de vinte e cinco anos, advogado, marido e enfermeiro, nao mais o moleque bobo e que se achava um esquisito e inferior anos atras. Mudamos juntos, e juntos amadurecemos nossa autoconfiança e a confiança na vida.
Como ele se sentia bem disposto, no sabado fomos à Nostro Mondo com Renatinho e Davi. Ambos tinham encontro marcado com seus respectivos pares na boate e estavam euforicos. Eu gostava dessa boate, a musica era de qualidade, os shows das transformistas bem divertidos, a recepçao aos clientes digna de elogios. Nessa noite a pista brilhava numa luz azul-celeste, envolvendo Marquinhos de um jeito surreal, como uma imagem de sonho. Dancei à vontade com ele as melodias mais romanticas, de rosto colado como eu gostava. Sorri quando tocou "Unloveable", dizendo a ele que a musica me fazia lembrar de quando o vira pela primeira vez, pois sua letra falava exatamente sobre como eu me sentia perto dele naquele tempo.
- Mas que voce era bobo, calado e estranho, voce era, Alex! _ disse ele sorrindo.
- E agora? Mudei em que?
- Hum... Voce continua a ser um garoto quieto, bobo pois me suporta como ninguem, com mais cara ainda de CDF depois que colocou oculos, mas... cada vez mais apaixonante _ disse em meu ouvido.
Era muito bom poder beija-lo num lugar publico, onde ninguem se incomodava. Ali todos eram iguais, e pelos cantos escuros dava para notar varios casais de homens aos amassos. E eu aproveitava o momento propicio para dizer no ouvido dele todo meu repertorio de palavras apaixonadas e declaraçoes, que ele chamava de "frases do homem grudento". Implicava mas gostava, eu percebia muito bem.
Namorar com um cara que fez a alegria de varios antes de mim nao era muito facil. Na boate eu percebia o quanto ele era cobiçado, e algumas vezes ocorreu de eu notar uma troca de olhares inquieta entre Marcos e algum rapaz. Ele nao dizia se eu nao perguntasse, mas era claro que se tratava de um de seus "casos" do passado, um cara qualquer que dormiu com ele em algum momento daquele periodo maluco de sua vida. O sujeito em questao o fixava com um olhar predatorio, louco por um segundo round, porem ao se convencer de que Marquinhos nao queria, que estava comigo, e que eu já fazia cara feia ante aquela situaçao, parava de encarar meu namorado e seguia à caça de outro.
Sao Paulo era uma cidade pequena para os gays. As chances de voce encontrar um rosto conhecido na boate apos te-lo visto em outra longe dali, eram grandes. Portanto, nao foi surpresa nenhuma reencontrarmos o insolente Boy na Nostro Mondo naquela noite. Era ainda aquela bicha magricela e feia que conhecemos em Ilhabela, anos atras. Mas dessa vez tinha se livrado das espinhas e usava o cabelo numa nova cor, um louro oxigenado e agressivo. Claro que ele veio implicar com Marquinhos logo que o viu.
- Mas isso aqui esta virando um antro de vadias! _ disse, rindo e fitando o garoto da cabeça aos pes _ Como vai esta bezerrinha que se acha rainha?
- Vai se ferrar! _ exclamou Marquinhos, furioso.
- Eu? O ferrado aqui e' voce, ou estou enganado? _ Boy riu com crueldade _ Me diga entao se e' mentira os boatos que correm, de que a senhorita esta com os dias contados, pois deu tanto por ai que ganhou um presentinho fatal, uma bruxinha perversa que entrou no seu sangue e esta sugando sua vida de putinha ate nao sobrar nada...
- Cala a boca _ murmurou Marquinhos transtornado, tremendo.
- Faço questao de ir no seu enterro _ disse Boy, exultante ao ve-lo humilhado _ E ainda danço em cima do seu caixao!
Tirei o Marquinhos dali depressa, antes que eu mesmo me descontrolasse e partisse para as vias de fato com aquele monte de lixo. Que odio! Fazia tempo que nao me tiravam do serio assim. Ainda pudemos ouvir a risada do infeliz atras da gente, dizendo em voz alta que "era o fim" ter que frequentar o mesmo ambiente que "aideticos desgraçados". Notei Marquinhos muito abalado com aquela provocaçao cruel, fazendo esforço para nao chorar, tentando esconder de mim que ficara humilhado pelo outro. Se me ofendessem, eu nao teria me importado tanto, mas com ele nao. Aquilo me enfurecia intensamente. Tanto que quando Davi e Renatinho se aproximaram, contei tudo a eles, apesar da irritaçao do Marcos que nao queria que ninguem soubesse. Davi ficou possesso:
- Mas a gente pega essa bicha de jeito, ne' Renatinho? Aquela ali? Loira falsa ainda por cima! Vamos là dar uma liçao nela?
- Conheço essa puta dessa bicha _ disse Renatinho, arregaçando as mangas da camisa, pronto para a briga _ Uma esnobe e invejosa! Adora tomar namorado dos outros, e dizem que fez um policial largar da esposa gravida pra ficar com ele... Um merdinha! Vamos lá, Davi, vamos mostrar para ele!
Do barzinho assistimos a confusao. Os dois chegaram empurrando o Boy que dançava todo desengonçado, se insinuando para os caras. Ele quase caiu, se equilibrou reclamando e jà rodou num violento tapa que Renatinho deu na cara do infeliz; avançou para os dois aos socos e enquanto Davi o segurou, Renatinho o esmurrou com vontade no rosto e na barriga. As pessoas fizeram um circulo em torno da briga, gritando e assobiando. Os garotos inverteram as posiçoes: Davi jogou Boy para Renatinho que o segurou para o amigo bater nele, entre socos, tapas, gritos que nao ouviamos do barzinho e puxoes de cabelo. Boy jà amolecia debaixo das pancadas, quase sem resistir aos chutes e gritos, como no começo. Ele era muito magro e estava em um, entao apanhou feio.
- Nossa! Eles brigam bem! _ disse Marquinhos, rindo deliciado com a sua vingança.
Logo, entretanto, os seguranças correram para separar a briga, expulsando os tres garotos da boate. Era maldade, claro, mas nao deixei de rir daquela liçao que o infeliz do Boy levou. Quem mandou ele magoar meu anjo? Bem feito!
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Obrigadissimo, povo!
Bjs!