Lentamente, ela foi abrindo os olhos enquanto Fleury a fazia cheirar um frasco com sais que ele possuia. A principio, estendida no sofà, ela virou a cabeça, incomodada com a claridade solar que enchia a sala àquela hora; em seguida, devagar, ela se voltou, nos olhando, fixando a vista e retomando a consciencia de modo perplexo num sussurro de odio:
- Eu vou matar os dois!
Antes que se esquivasse a tempo, Fleury recuou duma violenta bofetada de Georgiana que num salto avançou para ele, passando a estapeà-lo numa ira enlouquecida, aos gritos.
- Devasso maldito! Sodomita! Roubou meu homem... meu homem!
Consegui conte-la com certa resistencia, segurando-a enquanto ela se debatia tomada de verdadeira crise de furia. Tentou se virar para me bater na cara tambem, porem a prendi nos braços com obstinaçao. Fleury a fitava chocado, com a mao no lado do rosto onde recebera a bofetada.
- Essa prostituta me bateu _ disse, sem acreditar.
- Vou matà-lo com minhas proprias maos! Seu verme! _ bradou Georgiana, num repelao nervoso livrando-se de mim e disparando desvairada ate ele.
Todavia, antes que pudesse encostar nele, ela praticamente girou sobre si mesma num tapa que Fleury lhe deu com toda a força, fazendo-a cambalear e se segurar no braço do sofà, atonita, descabelada e tremula. Avançando ainda sobre ela, Fleury a pegou pelos ombros sobre o sofà, girando-a para si e a prendendo sob seu peso, espumando toda sua colera verbal na face enrubescida pela bofetada que ela recebeu.
- Sua vadiazinha desequilibrada! _ disse ele entredentes, sacudindo-a enquanto falava; ela rilhava os dentes de raiva, tentando se soltar _ Seguiu Julio ate aqui, nao foi? E para que, sua tola? Para ver o quanto ele a despreza e o quanto se diverte comigo?
- Voce o seduziu, seu calhorda! _ Georgiana ofegava de ira, de indignaçao _ Ele me amava...
- Amava e vinha se deitar comigo todas as tardes! Belo amor este! _ Fleury riu, fitando-a num infinito desprezo _ Olhe para mim e olhe para voce: uma mulherzinha vulgar, feia como uma bruxa, sem classe, sem estirpe, sem refinamento, com jeito de louca... Devia ter visto o prazer incomparavel que ele sentia comigo todos os dias, na cama. Era um deleite dos deuses, e que voce nunca poderia proporcionar porque e' uma megera seca, amarga, medonha... Nao foi á toa que ele se apaixonou por mim...
- Basta, Fleury! _ falei nervoso, tirando-o de cima de Georgiana que chorava de raiva, humilhada; sentou-se no sofà, encolhida, tremendo, enxugando os olhos num gesto desamparado; Fleury se afastou, mas olhava-a num cruel sorriso de vitoria.
- Considere, Julio, toda sua vida arrasada de agora em diante _ disse Georgiana, se levantando e tentando manter uma subita frieza soberba _ Seu depravado!
Saiu ventando porta afora, sob a minha perplexidade, mudez e impotencia. Fleury deixou-se cair numa poltrona, com uma risada; pediu a um assustado Jean um pouco de champanhe, e me olhando rapidamente, disse apenas:
- Ao menos livrou-se dela, meu caro.
- Isso nao podia ter acontecido! _ murmurei, ainda absorvendo toda aquela loucura.
- Conforme-se, Julio. Foi um xeque-mate teatral nesse noivado ridiculo _ disse ele, me olhando com certa zombaria _ E entao? Ainda quer relaxar esta tarde? Mando Jean deixar a champanhe no quarto...
Nao neguei. Sem saber o que seria de minha vida dali em diante, aquele singular divertimento me pareceu um consolo. Deixei que tudo fosse esquecido entre as pernas brancas e mornas de Fleury, enquanto ventava là fora e o caos de minha vida era preparado como um banquete sinistro pelas maos hábeis do destino.
No dia seguinte, meu sogro simplesmente me afastou das funçoes do escritorio. Sendo ele um homem reservado, digno, e para minha sorte, pacato, nao quis dar um escandalo e encarregou um funcionario de preparar minha suspensao. Havia tambem um recado curto e claro, transmitido via telegrama, para que eu nunca mais pusesse os pes na casa deles e os esquecesse. Foi uma rejeiçao chocante, ate mesmo "educada", cruel e silenciosa.
Os boatos sobre minha relaçao com Fleury haviam se espalhado por meu circulo social. Em pouquissimos dias, fui obrigado a sair da pensao onde vivia desde a Universidade, sob ordem direta da proprietaria que me olhava como quem observa uma monstruosidade, um animal de circo. Instalei-me num quarto escuro e fetido de outra pensao do suburbio, bem longe de onde me conheciam. Meus amigos passaram a me evitar abertamente, e de alguns recebia olhares chocados, de odio e inconformismo, às vezes de chacota.
Vivendo mal, sem trabalho, bebia cada vez mais na casa de Fleury, que se mostrava indiferente à minha situaçao. Eu apenas importava para ele na cama, nada mais. Ocupava-se mais em brigar com o Antinozinho, ultimamente.
- Porque voce nao faz como o Antinoo verdadeiro? Suicide-se no Rio Nilo! _ exclamava Fleury, ante a ignorancia total do garoto a respeito daquela historia _ Vamos! Se preciso for, viajaremos ao Egito para isso.
Emanuel ficou furioso com o amante, como raras vezes acontecia. No meio da discussao acalorada, afirmou que querendo Fleury ou nao, o menino partiria com eles para a França. Era caso decidido.
Fiquei atonito, e a bebedeira passou na rapidez de um raio. Entao eles pretendiam ir embora?
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Obrigadissimo a todos que seguem acompanhando. :)
Voces fazem isso tudo valer a pena!