Infelizmente, eu me sentia apaixonado por Fleury. Tive essa certeza crua no sabado que passamos em Goytacases, na sua casa de campo. Observando- o cavalgar seu puro-sangue pela pastagem esmeraldina como um perfeito joquei, notei o quanto ele me era importante, mesmo com sua personalidade que era ao mesmo tempo doce, irascivel, suave e indecifravel. Nos muitos momentos pos-coito em que conversamos, ele se mostrava vagamente triste. Um insatisfeito, mesmo possuindo tudo o que queria: dinheiro, homens e beleza.
- O unico homem que amei ate hoje morreu tuberculoso hà cinco anos _ confidenciou ele certa vez, bulindo nos pelos de meu peito suado _ Um francesinho lindo, tao doce, tao generoso... Era filho caçula da minha lavadeira, e tinha dezoito anos. Dei tudo a ele, Julio, os melhores medicos, e durante um ano ele esteve internado num hospital especializado, na Alemanha. Morreu là mesmo, o pobrezinho, no frio, sem ninguem que o amava por perto. Chorei tanto, voce nao faz ideia... Usei luto por dois anos. Que saudade do meu Pierre, meu namoradinho... Como eram doces seus beijos!
Ele chorou um pouco me contando essas coisas, e imaginei se as tinha contado para outros homens em momentos parecidos. Longe de estar apaixonado, o que parecia prende-lo a mim, alem, claro, da questao sexual, era um carinho fraternal que nao parecia existir com seus outros amantes de uma noite, nem com Emanuel. Com este, alias, as brigas e as caricias se alternavam.
- Logo a mae desse fedelho estarà na mais completa abastança, Emanuel, e graças à sua luxuria, à sua fraqueza por este maldito garoto! _ exclamava Fleury numa onda de furia _ E tudo com o meu dinheiro!
- Nao, bijou, nao..._ dizia Emanuel com aqueles modos cautelosos nesses momentos, acercando-se dele como de um cacho de vespas; enlaçava-o pela cintura, afinal, num sorriso vitorioso e sussurros entre beijos _ Eles sao muito pobres...
- Nao tenho nada com isso _ ele suspirava, nao resistindo ao vigor daqueles braços que o prendiam; derretia-se feito vela ao fogo.
Em Goytacases, na propriedade de Fleury, compreendi que o amava e que jamais chegaria ao seu coraçao. Os cavalos treinados, as ovelhas gordas, as vacas prenhes, a esposa do caseiro que o paparicava desde que ele era criança, tudo isso foi mais importante do que eu. Enquanto Emanuel ensinava o pequeno Antinoo a montar, na certa preparando-o tambem para outro tipo de cavalgada, Fleury percorria a fazenda à cavalo, sozinho, enquanto a mim restava a solidao de passeios a campo aberto, fumando e pensando, amaldiçoando minha vida e meus desejos intensos e estranhos.
Como Emanuel era dado à caçadas, sairam ele, o caseiro e o pequeno Antinoo ao cair da noite rumo á uma ceva preparada havia semanas no meio da mata densa, repleta de porcos-do-mato e lebres. Fleury os observou partir com desprezo, bamboleando na cadeira de balanço na varanda.
- Que barbaridade! E ainda levam o garoto com eles _ disse, batendo a cinza do cigarro no chao; trajava ainda o seu traje negro de joquei, e à luz triste do crepusculo frio e crescente irradiava uma beleza como que saida de um sonho à beira do mar Egeu _ Caçadas sempre me pareceram um esporte de gente baixa, primitiva. Representa o homem regredindo à epoca das cavernas, ao seu estado animal.
Estavamos sozinhos ali, naquela friagem alaranjada e cinza do sol posto. Ele olhava para frente, alheio a mim, aborrecido, os labios levemente apertados na piteira de marfim escalavrado. De subito, minhas maos suaram frio e minha voz saiu numa agonia humilhante.
- Fleury... eu o amo _ sussurrei afinal, como quem tira um peso do peito.
Sem me olhar, ele sorriu consigo, por longo momento em siiencio, soprando a fumaça do cigarro para frente.
- Eu sei _ murmurou, enfim, olhando o horizonte cardinal _ Jà tinha percebido. Ir para a cama com um homem apaixonado e' diferente, conheço isso de longe... Hà dias voce esta assim, Julio, e eu me pergunto apenas: e a sua noiva?
- Odeio aquela mulher _ respondi, ainda mais nervoso, me sentindo acuado de repente.
- Deixe o pai dela, seu patrao e futuro sogro, saber disso _ ele sorriu, me olhando numa altivez subita _ Pelo que me disse, seu progresso certeiro depende desse casamento...
- Já nao sei mais... Tenho vontade de mandar tudo ao inferno _ suspirei.
- Pois seja burro e faça isso _ ele continuava a me encarar, numa frieza cinica _ O que espera? O lugar de Emanuel nao esta vago, querido.
- Voce nao o ama.
- O unico homem que amarei a minha vida inteira se chama Pierre Grenadier e està sepultado em Montmartre. Ele, apenas _ Fleury me olhou com algo proximo do desprezo _ Mas voce nao conhece meu coraçao, Julio. Emanuel nao esta comigo por acaso, mesmo com seus muitos defeitos. E eu nao pretendo substitui-lo.
Se eu tivesse um pouco mais de dignidade e brio, teria me levantado de pronto e pedido para ir embora. Entretanto ainda fiquei ao lado dele, olhando o crepusculo que avançava como uma manta de sombra fria, umida e triste. Senti vontade de chorar.
- Deixemos tudo como està, meu amigo _ disse Fleury, jogando o resto do cigarro fora e se levantando _ E' o melhor para nos dois.
Mais tarde, quando Emanuel voltou da caçada com duas lebres e o pequeno Antinoo imundo de lama, Fleury os recepcionou com fingido desdem, sem querer ver a caça. No entanto, à espera do jantar que seria uma das lebres ensopada, num canto da sala ele se deixou agarrar por Emanuel, em beijos furiosos entre risadas e certos sussurros intimos. Eles me viram ali na poltrona, os observando, mas como sempre, nao se importaram comigo. Naquela noite Fleury dormiu com ele.
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Valeu, galera! :D