Não quero pôr Marcello em uma situação de risco e pedi a ele que nada fizesse e que esquecêssemos o ocorrido. “Claudinho, não me peça para esquecer que alguém pôs a mão em você, não posso prometer isso, é como se ele houvessem me subtraído algo de muito, muito valor, não por ele haver te beijado a força, mas por ele haver machucado você. Ninguém encosta mão em você e fica sem receber o troco” Disse ele estranhamente tranqüilo olhando pra baixo, de certo modo até de forma sombria.
Senti um calafrio estranho e insisti que ele não fosse atrás do crápula, mas Marcello não quis falar mais sobre o assunto e disse que aquela conversa estava encerrada, não sem antes me dizer “Por você eu faço qualquer coisa, eu como sal, bebo vinagre, caminho na brasa, eu enfrento o próprio Lúcifer, quanto mais um animal desprovido de alma como esse; não se preocupe.” As palavras de Marcello me gelaram o coração e nem seu abraço ,depois do que ele disse, conseguiu me aquecer.
Tenho medo do que ele possa fazer, Marcello é impulsivo, sei por Guto que ele já foi muito brigão do tipo de quebrar o bar inteiro. Em realidade, receito ter encontrado um problema para ele, ou melhor, uma das coisas que me inquieta é o fato de haver provido o motivo para atiçar a fera. Pensei em mil coisas, não quero que ele se meta em confusão e meu coração ficou apertado num sufoco que dói quando o ar entra em meus pulmões.
Ficamos abraçados por um bom tempo; pude notar que ele respirava descompassado como quem contém a si mesmo e que chorava baixinho como para que eu não notasse, não demonstrei que havia percebido, aquele era um momento que eu tinha que respeitar.
De certo modo Marcello havia sido ferido em seu orgulho de homem (todos nós, temos nosso orgulho e eu sabia que o de Marcello havia sido aviltado no dele) compreendi seu ciúme e a legitimidade desse sentimento ancestral que é o da posse e o que permeia a ira quando tocam em algo ao qual se atribui valor.
Entendi que o silêncio era o mais apropriado e as palavras não mais tinham lugar naquela noite. Receio ter despertado o lado violento desse homem, tenho medo de haver aberto portas que estavam trancadas. Desgosto de saber que sou a causa. Queria ser em sua vida como a tranqüilidade das tardes de chuva quando se está em casa sob as cobertas assistindo a filmes que gostamos.
Queria ser o calor do sol que abraça o seu corpo ou o vento da praia que acaricia o rosto em tardes preguiçosas. Mas o que eu provoquei com minha soberba em pensar que poderia me desencilhar de Carlos, foi o encontro de Marcello com seus instintos mais primitivos, em suas próprias palavras: seus segredos mais feios.
Concluí o terrível engano que houvera cometido ao ocultar toda situação a ele, mas qual seriam os desdobramentos se antes eu houvesse dito o que quer que fosse? E como num lamento, senti correr por baixo de sua pele ondas de uma ladainha muda de quem impotente do que seja fazer, cheio de penas, num contido desespero, ao peito aflito acalma a teima.
A aflição daqueles que da tragédia tomam ciência após o ocorrido. Vê-lo nessa angústia me fez sentir aromas de urze e de lama. Pedi a Deus que toda a dor que existia em seu coração me fosse dada. Por um sorriso de tranqüilidade do meu Marcello, em alegria me deixaria matar. Dono eu de todos os ais, me senti como uma pedra fria, antes, a que rola e despedaça sonhos ao cobrir de terra o que antes vicejava.
Então era isso, havia eu ferido o meu pássaro mais caro, minha jóia mais preciosa. Sentir Marcello sofrendo me doeu tanto na alma que ao meu coração disse mil vezes que deixasse de bater.
Causar a dor a quem se ama é a pior de todas as experiências que um ser humano pode provar, é a praga mais medonha que se pode ver, e a sensação mais nefasta que podem os sentidos humanos perceber, quem diz o contrário é tolo. Preferia ter minha destra decepada, minha garganta degolada ou meu tórax transpassado por um lança.
Preferia ter que matar a sede com água do mar ou mesmo servir de pasto aos vermes. Santo Deus, a culpa e o engano me torciam. Não pude conter o choro. “Meu amor, não fica assim não, eu sei que não foi sua culpa e a mim resta entender, compreender porque assim você decidiu” Disse-me Marcello me consolando e alimentando sua a sanha de enganar a minha dor.
Homem entre homens, Marcello, mesmo aborrecido deixou de pensar em si para ocupar-se de meu sofrimento. A ele respondi que nada me prende ao passado, que meu presente e futuro são dele. Disse que confiasse em mim e que dele nada mais voltaria a esconder.
Era sexta à noite e Marcello disse que precisávamos dar um tempo no assunto, não deveríamos, pois ocuparmo-nos com o tema; era aborrecido para nós dois. “Ouça, que tal esquecermos disso e sairmos de Brasília nesse feriado?” Ele perguntou ao que respondi que ele escolhia o destino e quando iríamos. “Agora então – vamos usar o presente do Guto” disse ele sorrindo.
Seu sorriso iluminou a noite como o brilho de mil sóis. “Passamos em sua casa, apanhamos algumas coisas e fugimos nesse final de semana. Estou louco pra lhe seqüestrar um pouquinho e dormir de conchinha com você” ele completou. Assim fomos primeiro à casa dele e depois à minha. Expliquei aos meus pais que viajaria para Pirinópolis (fica aqui pertinho de Brasília).
Marcello ficou na sala conversando com meu pai. Minha mãe fazia um café na cozinha. Quando do quarto voltei, ao passar pelo corredor, pude ouvir da porta do quarto da minha irmã que ela e meu cunhado discutiam. Desde que ele chegou, discutem quase todos os dias, às vezes por coisas banais.
Ele tem tido dificuldades em encontrar um apartamento funcional. Ela esta cada vez mais áspera e ele muito pouco paciente em resposta a suas rudezas tantas. Pensei que melhor seria se saísse sem deles me despedir, achei mais prudente.
Daí então, em menos de 20min estávamos no caminho. Guto estaria em Pirinópolis, Pedro e André, primos de Marcello, também. Ficamos na Pousadas dos Pirineus, aproveitamos umas diárias que o Guto nos havia dado de presente. Ao chegarmos, já havíamos reservado o quarto e subimos direto, estávamos loucos por um banho. Pedimos um quarto com acesso à Internet, mas não foi possível.
Marcello precisava verificar uns e-mails e eu também, tivemos que recorrer a nossos celulares, é incrivelmente difícil acessar a Internet e e-mail por telefone, mas até que conseguimos colher as informações que precisávamos durante o final de semana.
Cheguei a conversar brevemente com alguns amigos da comunidade pelo MSN, enquanto Marcello tomava banho, mas como a conexão estava demorando muito optei por sair, temi não poder dar a atenção que se deve aos amigos que tanto me apóiam.
Encontramos os meninos mais tarde, de madrugada em uma das piscinas. Foi bom vê-los, sentia saudade, são muito agradáveis, pessoas sofisticadamente simples. Havia tempo não encontrava Pedro e André, dei um abraço apertado em ambos, recebi, de cada um beijo no rosto; isso é hábito entre eles, hábito que estranhei por certo tempo e que depois passei a cultivar também.
Continuam sendo a expressão da simpatia, acentuada ainda mais pelos sorrisos gentis que só podem dar aqueles de coração simples. Têm o poder de lhe fazer sentir-se à vontade, como que em família, famílias tranqüilas é o que quero dizer, infelizmente a minha não tem sido um exemplo do que digo. “ E eu não ganho abraço não é?” Perguntou o Guto iniciando a zoação. Eu o abracei e ganhei um beijo no alto da cabeça. Ficamos muito tempo lá, éramos os únicos, penso que hóspedes normais, hihihihi digo, comuns vão cedo para suas camas.
Houve um momento em que, enquanto Marcello contava a André e Pedro sobre seu treinamento, fui com o Guto até o balcão apanhar umas bebidas, os garçons haviam se recolhido e restava só um rapaz que parecia haver sido escalado para atender aos notívagos mais insones, tarefa árdua, não deve ser fácil nos aturar quando estamos juntos.
“Ainda bem que vocês vieram, queria conversar com você, Claudinho” ouvi de Guto que estava visivelmente alto. “Você sabe o quanto eu amo Marcello e sabe que ele é mais do que um irmão pra mim não sabe, Claudinho?” Respondi que sim e que sabia que o amor que havia entre eles era uma das mais nobres maneiras de se exemplificar o afeto real e esperei ele continuar, ele precisava desabafar algo.
“Então, coelhinho, você sabe que eu nunca magoaria Marcello e que eu respeito muito o que vocês sentem um pelo outro...” ele completou. Eu procurava achar uma linha de raciocínio nas frases desconexas de Guto sem direito entender onde ele queria chegar. “Eu queria lhe dizer uma coisa que me incomoda, digo, incomodou, sei lá, um pouco..., não! muito - tipo um sentimento sabe?”
Balancei a cabeça procurando deixar que o raciocínio embaralhado de Guto formulasse algo mais inteligível quando Marcello nos chamou dizendo que estávamos demorando muito. “Depois conversamos, interrompeu Gutinho”.
Voltamos ao grupo e dali não saímos, não até às 4h30min da manhã. Foi ótimo estar com os garotos. Percebi que eles entendem o que Marcello e eu vivemos e respeitam isso sem fazer proselitismos bobos. Simplesmente entendem que essa possibilidade é tão comum quanto se de outra forma fosse. Penso que entre eles e Marcello sempre foi assim.
A namorada de André viajou para a Alemanha, deve ficar por lá até o fim do ano, foi por conta do mestrado, mas assim que retorne ficarão noivos, ainda não a conheço, mas sei que é muito divertida. Quanto a Pedro, sei que terminou com a atual namorada, ela disse que queria dar um tempo e ele preferiu romper o compromisso. Mas ele me pareceu muito bem, talvez estivesse cansado do relacionamento, sei que eles estiveram estremecidos, decidiram dar um tempo, voltaram e agora dariam um tempo novamente se Pedro não houvesse rompido.
Final de semana meio clube do bolinha, como diz o Guto. Mais dentro da madrugada, nos despedimos e subimos para o quarto. Embora estivéssemos com sono eu acho, não queríamos dormir; já passamos noites em claro em outras ocasiões e não parecia que seria diferente dessa vez.