O despertador tocou às 20h da noite, como sempre. Eu já estava acordado, na verdade. Dormir era um luxo que eu não podia mais me permitir. Meus olhos ardiam, pesados como se alguém tivesse colocado tijolos sobre as pálpebras.
Levantei devagar, sentindo cada músculo reclamar. Meu pescoço estava travado, e as costas doíam como se eu tivesse carregado um caminhão nas costas a noite toda. Talvez tivesse, metaforicamente falando. O trabalho no posto era pesado, mas não era nada comparado ao que eu fazia nas madrugadas, quando os caminhoneiros paravam para abastecer e, muitas vezes, para mais do que isso.
Era só mais um job, como eu dizia para mim mesmo. Uma forma de ganhar uma grana extra para pagar o cursinho pré-vestibular. Eu queria sair dali, queria uma vida diferente, mas, por enquanto, era isso que eu tinha. E eu fazia o que precisava ser feito.
Aquele dia tinha sido particularmente exaustivo. Tinha ido para o cursinho, onde eu lutava para manter os olhos abertos enquanto o professor falava sobre funções quadráticas. Depois, segui para a academia e treinei por uma hora. Quando fui para o posto, já era 22h, e eu sabia que a madrugada seria longa.
— E essa cara de acabado, Joel? — perguntou Lucas.
— Cala boca. Vou jogar o lixo. — avisei.
Foi por volta das 2h da manhã que ele chegou. Um caminhoneiro mais velho, com um boné e uma camisa xadrez. Ele me olhou de um jeito que eu já conhecia bem, aquele olhar que dizia tudo sem precisar de palavras. Eu sabia o que ele queria, e ele sabia que eu estava disponível. Era uma troca simples, direta. Dinheiro por um pouco de companhia, por um pouco de calor humano. Ou, pelo menos, por algo que se parecia com isso.
Nós fomos para o quartinho, como sempre. Eu estava tão cansado que mal conseguia me concentrar. Meus movimentos eram mecânicos, automáticos. Eu já tinha feito aquilo tantas vezes que parecia que meu corpo agia por conta própria. Ele começou a se mover, e eu fechei os olhos.
O cansaço era tanto que, em algum momento, eu simplesmente apaguei. Não foi algo que eu decidi; foi como se meu corpo tivesse desistido de mim. Eu dormi. Dormi enquanto ele estava em cima de mim, enquanto ele fazia o que queria. Quando acordei, ele já tinha ido embora, e eu estava sozinho no quartinho, com um dinheiro na mesa.
Fiquei ali por um tempo, olhando para o teto, tentando entender o que tinha acontecido. Eu não me sentia violado, não exatamente. Era mais como se eu tivesse sido apagado, como se eu não tivesse existido naquele momento.
Levantei, me arrumei e saí do quartinho. O posto estava quieto, só o som das luzes fluorescentes zumbindo acima de mim. Eu tinha mais algumas horas de trabalho pela frente, e depois o cursinho de novo. A vida continuava, mesmo quando eu não tinha certeza se eu ainda estava vivendo.
Eu olhei para o relógio. 6h da manhã. Mais um dia começando, mais uma noite terminando. E eu, ali no meio, tentando conciliar tudo, tentando sobreviver. Sabendo que, no fundo, eu só queria uma chance de ser alguém diferente.
— Cara, ganhei R$ 250! — exclamou Lucas, que se gabou, pois atendeu uma mulher rica. — Adoro essas carentes. Elas só querem alguém pra fazer um carinho especial. — fingindo sexo oral com as mãos.
— Nojento. — soltei, enquanto caminhávamos para o metro.
— Nojento são esses velhos...
— Cala boca, Lucas. — reclamei, colocando os fones do ouvido.
Eu gostava de atender os caminhoneiros. Não era só pelo dinheiro, embora ele fosse importante. Era algo mais. Algo que eu não conseguia explicar direito. Talvez fosse a forma como eles me olhavam, como me desejavam. Eu me sentia... importante. Desejado. Alguém que valia a pena. E, por um momento, isso preenchia um vazio que eu nem sabia que existia.
Mas, ultimamente, as coisas estavam diferentes. O cansaço estava me consumindo, e a libido, que antes era uma chama constante, agora era só uma brasa fraca, quase apagada. Sentar em um caminhoneiro já não era mais divertido. Era só mais uma tarefa na lista interminável de coisas que eu tinha que fazer. E, no fundo, eu sabia que aquilo não era saudável. Que eu estava me perdendo aos poucos, pedaço por pedaço.
O Enem já estava pago, e eu não tinha como voltar atrás. Eu tinha que continuar. Tinha que aguentar. Mas, às vezes, eu me perguntava se valia a pena. Se eu não estava sacrificando demais por um sonho que talvez nunca se realizasse.
Naquela manhã, depois de sair do posto, eu fui ao mercado. Precisava de café. Muito café. O mais forte que eu encontrasse. Caminhei pelos corredores, passando por prateleiras cheias de coisas que eu não podia comprar, até encontrar o que procurava. Um pacote preto, com letras douradas, que prometia ser o mais encorpado, o mais intenso. O preço era salgado, mas eu não tinha escolha. Precisava daquilo. Precisava de algo que me mantivesse acordado, que me ajudasse a sobreviver às aulas.
Comprei o café e saí do mercado, sentindo o peso da sacola na mão. O sol já estava alto, e o calor começava a apertar. Eu tinha algumas horas antes do cursinho, então decidi ir para casa tomar um banho e me arrumar. Mas, no fundo, eu só queria deitar e dormir. Dormir por uma semana inteira.
Cheguei em casa e me joguei no chuveiro. A água fria ajudou a aliviar um pouco a tensão nos músculos, mas não fez nada pelo cansaço que estava enraizado na minha alma. Me vesti rapidamente, peguei minha mochila e saí de novo, rumo ao cursinho.
As aulas eram o único momento do dia em que eu me sentia um pouco mais vivo. Português, História, Geografia, Inglês... eram as matérias que eu mais gostava. E, claro, a redação. Eu sabia que era na redação que eu tinha que focar. Era ali que eu podia me destacar, que eu podia mostrar que valia a pena. Que eu era mais do que apenas um garoto de posto.
Mas, naquele dia, o cansaço foi mais forte. Durante a aula de História, eu cochilei. E, no meio do cochilo, eu tive um sonho. Um sonho estranho, mas que parecia tão real.
No sonho, eu estava sentado em uma sala, com uma folha de papel em branco na minha frente. Era a prova do Enem, e o tema da redação era... eu. Eu tinha que escrever sobre mim. Sobre a minha vida. Sobre as escolhas que eu tinha feito.
E eu escrevi. Escrevi sobre o posto, sobre os caminhoneiros, sobre como eu gostava de me sentir desejado. Sobre como aquilo preenchia algo dentro de mim. A falta de uma família? Talvez. A necessidade de ser visto, de ser importante? Provavelmente. Eu escrevi sobre tudo isso, sem medo, sem vergonha. E, no final, eu tirei 1000. A nota máxima. A nota que eu precisava para iniciar o curso de pedagogia.
Quando acordei, a aula já tinha acabado, e os outros alunos estavam saindo da sala. Eu fiquei ali por um momento, ainda meio grogue, tentando entender o que tinha acontecido. O sonho tinha sido tão real, tão vívido, que eu quase conseguia sentir o gosto do café que eu tinha tomado antes da prova.
Mas, no fundo, eu sabia que era só um sonho. A realidade era bem diferente. A realidade era o cansaço, o trabalho, as noites intermináveis no posto. A realidade era a luta diária para sobreviver, para continuar, para não desistir.
Eu me levantei, peguei minha mochila e saí da sala. Tinha mais uma aula pela frente, e eu precisava me concentrar. Precisava focar na redação. Porque, no final das contas, era ali que eu tinha uma chance. Uma chance de mudar tudo. De ser alguém diferente.
Mesmo com toda a responsabilidade do cursinho, eu não queria perder o foco da academia. Era o meu momento de transformar a dor em algo bom, de usar o cansaço para fortalecer o corpo. A academia era o lugar onde eu podia me desafiar, onde eu podia sentir que estava crescendo, evoluindo. E, naquele dia, eu estava determinado a dar o meu melhor.
O Murilo estava lá, como sempre. Ele ficou me secando enquanto eu fazia os exercícios, e eu sabia o que ele queria. Ele sempre queria a mesma coisa. E, naquele dia, eu não estava disposto a dizer não. Talvez fosse o efeito do café caro que eu tinha tomado, ou talvez fosse só a necessidade de sentir algo, de me conectar com alguém, mesmo que fosse só por um momento.
Ele se aproximou e sussurrou no meu ouvido:
— Vamos para um lugar mais confortável?
Eu concordei com a cabeça, e nós saímos da sala de musculação, indo para um canto mais afastado, uma sala que era usada para guardar equipamentos. Era quente e apertada, mas era privada. Murilo fechou a porta atrás de nós e, sem dizer mais nada, baixou o short. Eu entendi o recado.
O cheiro forte de macho vinha dele, um misto de suor e algo mais primitivo, algo que me deixou excitado quase instantaneamente. Eu me ajoelhei, sentindo o gosto salgado da pele dele na minha língua. Ele gemeu baixo, colocando a mão na minha nuca, guiando o ritmo. Eu me deixei levar, focando apenas naquela sensação, naquela conexão momentânea.
Depois de um tempo, ele me levantou e colocou uma camisinha. Eu me virei, apoiando as mãos na parede, e ele entrou em mim com um movimento firme. A sala estava quente, o ar pesado, e cada soco dele me fazia sentir mais vivo, mais presente. Eu gemia baixo, tentando não fazer muito barulho, mas era difícil. Era intenso, e eu precisava daquilo. Precisava sentir que ainda era capaz de sentir algo.
Quando acabou, nós nos arrumamos em silêncio. Murilo me deu um tapinha nas costas, como se nada tivesse acontecido, e nós saímos da sala. Eu voltei para casa e apaguei na cama, exausto.
Adivinha? Acordei atrasado. Eram 21h e o despertador tinha falhado, ou talvez eu só não tivesse ouvido. De qualquer forma, eu precisava me apressar. Liguei para o Murilo e pedi uma carona até o metrô. Ele chegou rápido, como sempre, e eu subi na moto atrás dele.
Enquanto ele acelerava, eu senti a brisa do vento batendo no meu rosto, refrescando a pele. Era gostoso, aquela sensação de liberdade, de velocidade. Por um momento, eu me esqueci de tudo: do cansaço, do cursinho, do posto. Era só eu, a moto e o vento.
Ao descer na estação, Murilo me contou sobre uma festinha que um amigo policial dele ia fazer em um apartamento.
— Vão alguns garotos para uma orgia — ele disse, com um sorriso malicioso. — Você topa?
Eu já tinha transado com dois clientes no posto, mas nunca tinha participado de uma orgia. A ideia me deixou curioso, intrigado. Era algo novo, algo diferente. E, no fundo, eu queria experimentar.
— Só tem uma regra — ele continuou. — É preciso fazer o teste de HIV. Não se preocupa, a gente transa com camisinha, mas o teste é só um respaldo.
— Bem, posso passar em um posto e fazer, mas eu tô limpo — eu respondi, tentando parecer confiante.
— Eu sei que tá — ele disse, rindo. — Ah, e por favor, faz a chuca. — ele ficou tímido depois de dizer isso, como se estivesse com vergonha.
— Eu sempre faço, Murilo — eu respondi, rindo também. — Deixa eu ir, o trem passa daqui dois minutos. Obrigado. — dei um beijo no rosto dele, que colocou o capacete. — Salvou a pátria.
Ele riu de novo e acelerou, desaparecendo no trânsito. Eu entrei na estação, pensando na festa, na orgia, em tudo que eu ia experimentar. Era mais uma coisa na minha lista, mais uma experiência que eu ia adicionar à minha vida. E, no fundo, eu sabia que, não importava o que acontecesse, eu ia continuar lutando. Continuar vivendo. Porque, no final das contas, era isso que eu fazia. Sobrevivia. E, talvez, um dia, eu encontraria algo mais. Algo que valesse a pena.