Enquanto Roberto descansava no motorhome, Benê e eu, começamos a juntar seus pertences da rua. Estávamos parados em uma área deserta com uma grande quantidade de vegetação. O Benê ficou responsável de encontrar o felino.
O silêncio do local foi interrompido apenas pelos gritos do meu irmão chamando pelo gato perdido. Eu organizava os pertences de Roberto, ainda atordoado com o acidente. A bicicleta, completamente destruída, parecia simbolizar o fim de uma aventura que ele mal tinha começado.
Não demorou muito e o ciclista apareceu, aparentemente, minhas recomendações não foram seguidas à risca. Eu lutava para colocar o que tinha sobrado da bicicleta no porta-malas do Leopoldo, que era bem espaçoso diga-se de passagem.
— Perda total, né? — comentei, tentando puxar conversa.
— Total. — Roberto respondeu, encostando-se ao motorhome e soltando um suspiro cansado.
Apesar dos ferimentos, ele insistia em ajudar. Juntava pequenos objetos do chão, organizava sua mochila e, vez ou outra, olhava para o lado de onde vinham os gritos de Benê.
Quando Benê finalmente surgiu no acostamento com Piccolo nos braços, parecia que um peso tinha saído das costas de todo mundo. Piccolo era um gato malhado de tamanho médio, com uma coleira azul e olhos arregalados de susto.
— Esse é o Pi... — Benê começou, mas foi interrompido por Roberto.
— Piccolo! — exclamou Roberto, avançando com dificuldade para pegar o gato. — Você está bem, meu amigo?
Por um segundo, achei que ele estava falando com Benê, mas logo ficou claro que toda a atenção era para o bichano.
— Sim, ele me arranhou, mas... — Benê se calou, percebendo o erro.
Eu não consegui segurar um sorriso. Roberto abraçava o gato com cuidado, como se fosse a coisa mais preciosa do mundo. Piccolo, por sua vez, parecia mais calmo, embora olhasse para nós dois com desconfiança.
— Obrigado. De verdade. — Roberto disse, segurando o gato perto do peito e olhando para Benê com gratidão.
Benê resmungou alguma coisa, provavelmente para esconder o constrangimento, mas eu sabia que ele estava feliz por ajudar.
De volta ao motorhome, preparei um café rápido para aquecer todo mundo enquanto Roberto sentava no banco, acariciando Piccolo com uma expressão de alívio. Aproveitei para limpar os arranhões de Benê, que exagerava nos "ais" enquanto eu aplicava o antisséptico.
— Parece que você foi atacado por um leão, não por um gato. — brinquei, recebendo um olhar feio do meu irmão.
Roberto, mais calmo, começou a falar sobre sua viagem. Ele vinha de Dom Pedrito, uma pequena cidade no Rio Grande do Sul, e planejava cruzar a Argentina de bicicleta, um sonho que agora parecia distante.
— E agora? — perguntei, servindo-lhe uma xícara de café.
— Não sei. Acho que vou ficar Chuí e vejo o que dá para fazer. Talvez consertar a bicicleta, ou arranjar outra forma de continuar.
— Você pode vir com a gente. — a sugestão escapou antes que eu pudesse pensar. Benê me lançou um olhar surpreso, mas não disse nada.
Roberto hesitou.
— Não quero atrapalhar, guri.
— Não vai. Temos espaço, e seria bom ter mais alguém para dividir as despesas. Além disso, a Argentina ainda está no seu caminho, certo?
Ele sorriu, finalmente parecendo relaxar.
— Obrigado pelo convite...
— Ah, eu me chamo Joaquim. — falei, pois ainda não havia me apresentado para Roberto. — Esse é meu irmão, Benedito, mas pode chamá-lo de Benê.
— Ei. — Benê protestou. — Eu posso me apresentar. Oi, sou Benê. — esticando a mão, mas sendo arranhado por Piccolo que estava no colo de Roberto.
— Então, rapazes, obrigado pelo convite, mas eu quero tentar resolver as coisas por mim mesmo. Durante muitos anos, as pessoas tiveram controle da minha vida. Eu só quero alcançar esse objetivo por mim mesmo. — a determinação dele me deixou arrepiado, claro que achei o sotaque charmoso. — E outra, vocês não ficaram sabendo? Houve um atentado na fronteira. Eles estão fechados até amanhã.
Depois de deixar Roberto e Piccolo no centro de Chuí, decidimos transformar o dia em uma oportunidade de explorar. Já que estávamos "presos" na cidade, por que não aproveitá-la ao máximo?
No café local, enquanto saboreamos um clássico doce de leite uruguaio, a discussão do dia anterior ainda ecoava.
— Sério, Joaquim, você precisa parar com essa mania de ser bonzinho demais. — Benê remexia o café com exagero, fazendo o líquido quase transbordar. — Já pensou se aquele cara era um bandido?
— Benê, pelo amor de Deus, ele só precisava de ajuda. Além disso, quem em sã consciência leva um gato para cometer crimes? — provoquei, rindo.
— Você vive num filme, não no mundo real. E essa sua confiança exagerada pode nos colocar em encrenca.
— Ou pode render boas histórias. Relaxa, cara. Tá tudo bem.
Benê bufou, mas resolveu dar uma trégua. Afinal, discutir não mudaria nada, e a cidade ainda tinha muito a oferecer.
Começamos pelo Neutral Free Shop, onde as prateleiras repletas de produtos importados nos deixaram animados. Benê, sistemático como sempre, já tinha feito uma lista mental do que queria comprar. Ele escolheu um vinho uruguaio e uma caixa de alfajores, enquanto eu não resisti a um novo par de tênis e um pacote de snacks exóticos.
Lá, compramos também um drone em uma das lojas locais, mas aprender a manusear o equipamento foi um verdadeiro desafio. Entre erros de decolagem e pousos desastrosos, conseguimos capturar imagens incríveis da cidade. Depois, seguimos para o litoral, onde visitamos o Arroio Chuí, um lugar perfeito. Gravei o curso d'água e da vastidão das praias locais, marcadas pelo contraste entre o verde da vegetação e o azul profundo do mar.
De volta ao motorhome, optamos em encerrar o dia com uma refeição caseira. Benê, que adorava cozinhar, assumiu a liderança na preparação de uma lasanha de frango. Até tentei ajudar, mas rapidamente fui rebaixado ao cargo de "provador oficial".
— Meu Deus, isso tá muito bom! — elogiei com a boca cheia.
— Claro que está. Eu fiz. — Benê respondeu, com um sorriso orgulhoso.
Mas o ponto alto do dia veio quando abrimos o YouTube. O vídeo que postamos mostrando os detalhes do Leopoldo, o motorhome, tinha viralizado, alcançando 1.500 seguidores e dezenas de comentários. A maioria das mensagens tinha um tom curioso – muitos achavam que nós dois éramos namorados.
— Isso é ridículo. — Benê resmungou. — Por que acham que somos um casal? Eu sou bonito demais para você.
— Relaxa, maninho. Vamos aproveitar a atenção.
Por esse motivo, fizemos um vídeo de agradecimento, onde responderam às perguntas mais frequentes.
— Pra começar, não somos namorados. — expliquei, segurando o riso. — Somos irmãos.
— Fora que eu sou bonito demais para ficar com o Joaquim. Sou um homem de predicados. — ironizou Benê. — E o Joaquim é o irmão que adora me irritar. — acrescentou.
— E o Benê é o irmão que adora exagerar.
Entre risos e trocas de provocações, o vídeo terminou de forma descontraída. Reforcei o objetivo da viagem: explorar o desconhecido, viver experiências únicas e compartilhar histórias, além de honrar a memória dos meus pais.
Não sei o que foi que me tirou o sono naquela noite, mas o fato é que acabei ficando deitado, encarando o teto do motorhome e pensando. Pensando no Roberto. Será que ele conseguiu uma bicicleta? Será que já estava longe?
Tentei afastar essas ideias da cabeça, mas elas grudaram feito chiclete no sapato. Levantei e dei uma volta pelo espaço apertado. Não era tão pequeno assim. Benê e eu conseguimos fazer tudo que precisávamos, ao mesmo tempo. Olhei para a mesa e me peguei imaginando:
— Como adaptar o motorhome para uma terceira pessoa? — pensei em voz baixa.
A mesa podia virar uma cama de solteiro. Era só comprar um colchão confortável. No projeto inicial, a gente ia tentar fazer beliches, mas o engenheiro responsável achou melhor uma cama grande.
Sem me tocar, comecei a pensar na logística antes de me repreender mentalmente: Para com isso, Joaquim. O Roberto seguiu o caminho dele. Vocês nunca mais vão se ver.
Suspirei, preparei um chá, e voltei a me sentar. A insônia tinha me pegado legal, e o dia seguinte prometia ser longo.
Benê amanheceu elétrico. Ele já tinha conferido os documentos umas duzentas vezes, sem exagero. Juro que contei.
— Mano, calma. — tentei apaziguar.
— O Roberto não deixou nada suspeito no motorhome, né?
Soltei um riso irônico.
— Não, Benê. Ele não deixou nenhuma D-R-O-G-A para trás. — Adorei minha paráfrase, mas ele respondeu como sempre: mostrando o dedo do meio.
Já no lado uruguaio da fronteira, o inesperado aconteceu. Alguém bateu na porta do motorhome. Quando abrimos, demos de cara com a polícia. O uniforme era diferente, e o espanhol rápido me deu um nó na cabeça.
Entregamos os documentos e explicamos nossa viagem, mas ficou claro que eles queriam dinheiro. Benê, claro, começou a discutir.
Meu coração disparou. Pensei que íamos ser presos por desacato. Então, do nada, Roberto apareceu. Ele parecia cansado, mas estava ali, firme, falando um espanhol perfeito. Ele explicou que estávamos juntos e, de alguma forma, dobrou os policiais, que foram embora sem levar nada.
Suspirei, sentindo o coração desacelerar.
— Ah, céus. — Benê desabou no chão. Como se quisesse aliviar o clima, Piccolo saltou para o colo dele e se aninhou, ignorando os protestos.
— Já se meteram em confusão com a polícia? — Roberto perguntou, com um sorriso leve.
— Você é o meu herói. — soltei antes que pudesse me conter, e o abracei sem pensar. Meu coração batia forte, de um jeito estranho.
— Ei, calma. Eles já foram. Queriam suborno, mas eu disse que estávamos em uma viagem com nosso filho. — ele apontou para Benê, que agora lutava para se livrar das garras de Piccolo.
Roberto riu. Eu também.
Já no motorhome, enquanto Roberto ajeitava Piccolo no colo, ele perguntou:
— Então, queria saber se o convite ainda está de pé.
— Convite? — fingi não entender, mas meu coração já sabia o que ele queria dizer.
— Sim, de viajar com vocês. Acho que não vão sobreviver sem um espanhol decente.
— Ei, fiz dez meses de espanhol! — protestou Benê, sendo imediatamente interrompido por mim:
— O que não serviu de nada.
Como resposta, ele me mostrou o dedo do meio novamente.
Olhei para Roberto, tentando medir sua seriedade.
— Tem certeza que quer viajar conosco? — perguntei, ainda duvidando.
Ele me encarou, sorrindo.
— Acho que posso me acostumar com essa dinâmica. E você, Piccolo?
O gato, como se entendesse, pulou do colo de Benê direto para os braços de Roberto, ronronando alto.
Enquanto Piccolo ronronava e Benê murmurava sobre "mais bagunça", uma sensação estranha tomou conta de mim. De repente, essa viagem pela América do Sul parecia muito mais interessante. Afinal, não era todo dia que um ciclista misterioso e seu gato entravam na vida de dois irmãos em plena estrada.