Nascido e criado no interior de São Paulo, fui praticamente filho de mãe “solo”. Solo no sentido de meu pais terem se divorciado quando eu tinha apenas cinco anos de idade, ficando minha criação ao encargo quase que exclusivo da minha mãe. Aquela clássica história: sem apoio da família de origem quando descobriu a gravidez, minha mãe e meu pai - jovens e apaixonados - resolveram tocar a criação de um filho sozinhos, apesar de pobres e meio desmiolados. Mudaram-se para São Paulo, a quilômetros de distância da cidade-natal de ambos, e, se não fosse a separação dos dois em minha tenra idade, tenho certeza de que as coisas não teriam sido tão difíceis.
Meus pais se amaram loucamente - não posso negar! -, mas a vida a dois fora muito diferente do planejado. Minha mãe, uma feminista emocionada; meu pai, um homem meio bruto e machão, mais pragmático e lógico. Os dois tinham ideias diferentes de como educar um filho e de como lidar com dinheiro, e gastavam muito tempo brigando durante os meus primeiros anos de vida. Em seguida, meu velho arranjou emprego como caminhoneiro, e sua presença em casa foi rareando até que eu passei a ficar sem vê-lo por meses! Por óbvio, a relação entre os meus genitores se desgastou e o divórcio veio aí. Meu velho, que já estava bem estabilizado nessa sua nova profissão, acabou, depois de um tempo, se mudando para o Piauí, em decorrência de uma oportunidade profissional que surgiu lá.
Mas, logo que meu pai se foi, minha mãe optou pelo caminho mais difícil: em prol de sua saúde mental, resolveu permanecer longe de seus pais (meus avós), e com o auxílio de amigas - que, ao longo dos anos, se tornaram extensão do meu minúsculo núcleo familiar, mais do que os parentes da minha mãe - me criou. E me criou muito bem.
No final, eu comecei a ver meu pai com ainda menos frequência. Três vezes ao ano era um bom prospecto! E, ainda assim, eram visitas esparsas, que não duravam muito tempo. Como ele era caminhoneiro, e também quase não ficava na sua própria casa, meu pai ia a minha cidadezinha, se hospedava em um hotel, e me levava para passear. A gente trocava algumas palavras, eu contava as horas para voltar para casa, e só.
Por todo o exposto, já dá para perceber que eu cresci sem a presença de uma figura paterna ou minimamente masculina. E isso fez falta.
Quer dizer, minto. Minha infância não foi completamente “emasculada”, pois a presença masculina mais marcante da minha infância não foi meu pai, mas meu avô materno. Eu não o via tanto assim, até porque ele e vovó moravam no Rio Grande do Sul, mas pelo menos duas vezes por ano mamãe me mandava para casa deles, sozinho, para eu passar férias de mais ou menos um mês. Ela não ia junto, porque sentia muitas desavenças ainda em relação à forma como eles lhe trataram quando ela engravidou de mim; isso aumentava sua ansiedade e o receio de eles ficarem interferindo na minha criação, mas mamãe não me privou de contato com eles.
Vô Márcio era um autêntico macho dos pampas, e tentava me imbuir de alguns dos seus valores. Foi ele quem me ensinou a dirigir aos 14 anos, e foi com ele que aprendi a levantar paredes de tijolos. No verão, ele vivia sem camisa em casa, não se importando com sua barriga de cerveja, e falava pelo menos um palavrão em cada frase. Eu o admirava e queria me tornar como ele, mas logo que eu começava a incorporar alguns de seus hábitos, voltava à minha cidade natal, e esquecia completamente dos seus preceitos masculinos.
Lembro de umas férias de verão particularmente quentes, de uma onda de calor tenebrosa que acometeu a região sul do país. Meu avô estava descamisado há dias, muitas noites só de cueca, e eu o ficava observando, com uma espécie de admiração e inveja, pois não conseguia agir como ele. Naquele dia especificamente, os termômetros marcaram 40 graus, temperatura que eu nunca tinha passado perto de sentir no clima ameno de SP. A casa do meu avô era simples, não tinha ar condicionado, e a minha pressão começou a baixar durante a tarde, enquanto estávamos sentados no sofá da sala, assistindo televisão. Achei que fosse desmaiar e pedi um copo d’água bem gelado para minha avó numa voz fininha, de quem está passando mal. Eu era um pivete e meu avô, vendo meu mal-estar, ordenou que eu tirasse a camisa, como ele, para ficar mais fresquinho. Tendo dito que não queria, ele insistiu mais um pouco, e até alterou a voz, mas uma força interior me impediu de eu tomar coragem e ficar de peito desnudo também. Vendo meu desconforto, minha avó interveio e disse para meu avô parar de me incomodar, e me deixasse vestir o que eu quisesse.
O engraçado é que eu não entendia porque me incomodava tanto a ideia de estar sem camiseta na presença dos meus avós, pois, ao mesmo tempo em que eu me sentia extremamente envergonhado, ansioso com a perspectiva de me descamisar, eu experimentava uma vontade muito grande de também estar sem camisa, sim, de imitá-lo (eu só não podia confessar isso, porque me parecia sujo agir dessa forma!).
Eu, que quando criança, corria selvagemente de cueca dentro de casa, havia me transmutado num pré-adolescente, que morria de vergonha de expor o corpo desnudo a outras pessoas! Para se ter uma ideia, eu não utilizava nem mesmo regatas e shorts curtos, e tive até mesmo uma fase de não querer trajar bermudas! Contudo, depois daquele episódio na casa do meu avô, nos verões seguintes, nunca mais fui o mesmo. Porque lá no fundo, eu sabia que eu queria muito andar sem camisa como ele, eu só não sabia como compatibilizar esse comportamento com minha eterna vergonha e resistência a ficar sem camisa. Nas férias, eu ficava aguardando ansiosamente que em todo verão ele me mandasse ficar sem camisa de novo, como fora naquele verão. Mas, para o meu desgosto, aquilo nunca mais se repetiu.
De toda forma, para além daquele pavor irracional de tirar a camisa, um novo componente foi adicionado aos meus traumas juvenis: meu corpo mudava a passos velozes e eu não sabia a quem recorrer para tentar entender o que se passava dentro e fora de mim, pois, apesar de gostar muito do meu avô, ele era meio fechadão. Numa noite, não tinha nem pelos nas axilas, nem pentelhos. Na outra manhã (ou assim parecia), tinha a impressão de que tinha me transmutado num gorila peludo. Quando me dei conta, aos quatorze anos eu já tinha um tórax recoberto de pelos negros, que se espraiavam numa linha inicialmente fina em direção ao meu púbis, bem como pernas e braços cabeludos, tanto quanto dos meus professores mais velhos. Aos quinze, decidi deixar a barba crescer, pois não aguentava mais a obrigação diária de me raspar com a gilete, e apenas aparava com a maquininha pros pelos não ficarem tão desordenados.
Eu até gostava de praticar esportes, mas, por vergonha de expor meu corpo (todo mundo sabe que esporte combina com vestiário e, portanto, combina com ficar semi-nu ou nu na frente de outros rapazes), parei de jogar bola com os meninos, e assumi uma personalidade nerd, cdf e estudioso. Que merda!
Foi aí que a tragédia sobreveio. Minha mãe sofreu um acidente de trânsito, e faleceu fatalmente. Eu estava só no mundo.
Eu lembro pouco do ocorrido, mas o trauma fora tão severo que eu não soube lidar com tudo que estava acontecendo. Meus avós vieram de suas cidades-natais para me auxiliar naquele momento delicado, e se instalaram na casa onde eu e minha mãe morávamos; eu passei alguns meses apático, depressivo e sem rumo. O resultado foi ter reprovado no último ano escolar, e tido a necessidade de repetir tudo de novo. Para mim não importava. Eu só queria encontrar razões para viver novamente.
Com o final do ano letivo, e a necessidade de recomeçar a vida, meus avós tendo de voltar para o Rio Grande do Sul, meu pai me chamou para viver com ele. Eu recém tinha completado dezoito anos de idade, era, portanto, um adulto, poderia seguir sozinho, mas ele fazia questão que eu morasse pelo menos um tempo com ele, e meus avós - após algumas divergências - entenderam que não faria sentido me impedir de recomeçar a vida nesse outro lugar. De fato, eu tinha muito mais contato com meus avós do que com meu pai… Mas nada mais importava. Peguei o avião em direção ao Piauí, e - meio conformado com aquela situação de merda -, resolvi ir para o Nordeste, viver com meu pai, até como uma forma de me distanciar das memórias de minha mãe que teimavam em persistir dentro da minha antiga casa.
Apesar dos sinais de envelhecimento, reconheci de cara meu pai no aeroporto: regata, bermuda cargo e havaianas brancas nos pés. Meu velho tinha 40 anos, e estava muito enxuto, embora os seus cabelos e barba relativamente brancos não desmentissem sua idade. A pele dele era mais escura do que a minha, mas dava para ver que era de pegar sol; seus olhos eram verde-escuros, meio castanho-mel (a depender do ângulo de visão), e, assim como eu, tinha 1,75m de altura. Não tão alto, nem tão baixo. Mas, diferente de mim, meu pai tinha braços grandes, ressaltados pela regata cavada que ele estava vestindo. Eu não sabia se ele fazia academia, mas imaginei que o formato do seu corpo era resultado do batente pesado de caminhoneiro. Por óbvio, ele era mais encorpado do que eu, e, contudo, a característica física dele que mais me chamou atenção neste primeiro momento foi justamente a presença de pelos em seus braços, suas pernas, e no seu peito (o decote da regata evidenciava seu tórax largo e peludo, e os pelos que lhe cobriam e cresciam em direção ao seu pescoço). Por algum motivo, nós nunca fazíamos chamadas de vídeo quando nos falávamos, de forma que vê-lo depois de tanto tempo causou-me, sim, uma profunda sensação de estranhamento, como se eu desconhecesse quem ele realmente era.
Quando saí do aeroporto, choquei-me com as altas temperaturas que faziam na cidade. Um calor do caralho ao qual eu não estava acostumado acometia o Nordeste, e o bafo dos infernos soprava diretamente nas minhas fuças. Imediatamente, senti filetes de suor escorrerem pelas minhas costas e meu peito, e arrependi-me amargamente por ter vindo de calça jeans. Felizmente, dentro do carro do velho havia ar-condicionado. Ele ligou o ar e deu a partida.
A viagem de carro até a casa do meu pai, numa cidade próxima a Teresina, foi estranha. Meu pai era ainda mais calado do que eu imaginava, embora de vez em quando me olhasse afetuosamente, e fizesse algumas tentativas de entravar uma conversa. Porém, eu não me sentia à vontade para conversar muito, e ele parecia dar sinais de que também estava meio encabulado. Não que ele estivesse envergonhado, apenas era calado - algo que eu também era -, e não tinha muito tato social. Os anos sem esposa provavelmente foram primordiais para que ele se encastelasse ainda mais no mundinho dele. A única coisa que ele comentou durante a viagem era que eu estava barbudo e “bonitão”, algo que me deixou levemente constrangido e orgulhoso.
Quando estávamos chegando em sua casa, numa região periférica e meio pobre da cidade, meu pai finalmente me confidenciou que ele havia perdido o emprego e que estava iniciando um negócio próprio, de distribuição de produtos alimentícios na região. Ele havia se mudado para uma casa mais simples, porque vendeu seu apartamento anterior, num bairro mais central, para investir parte do dinheiro do imóvel e da rescisão numa van de carga e nos demais instrumentos para logística do empreendimento. Isso foi antes da notícia da morte da minha mãe, e ele não imaginava que eu iria me mudar para morar com ele, mas não queria que eu me sentisse mal - apenas que eu tivesse paciência com as melhorias das coisas, que seriam lentas.
De fato, sua casa era simples, sem reboco, numa região mais periférica da cidade. E pequena. Poucos móveis, apenas sala/cozinha, um quarto e um banheiro. Mas, apesar de ser “casa de homem”, era bem arrumada e limpa. E, para piorar, a casa era…
Quente.
Na verdade, o Piauí inteiro era quente, mas aquela casa - talvez por ser minúscula - não era tão ventilada, e eu já senti o quanto ela seria desconfortável para mim naquele primeiro dia. Meu velho já estava acostumado há anos com o calor dos trópicos, mas para mim era uma novidade estar num local tão insuportavelmente tórrido.
Talvez por isso eu não fiquei tão surpreso quando, logo ao entrar dentro de casa, meu pai tirou a regata e a colocou no ombro, ficando apenas de bermuda, chinelo e uma corrente no pescoço.
Eu já imaginava que meu pai ficasse naturalmente sem camisa, até mesmo por relembrar que, durante a minha infância, ele costumava ficar praticamente só de cueca em casa na maior parte do tempo. Mas fazia anos que eu não o via dessa forma, e minha curiosidade de filho pubescente foi direcionada ao seu corpo - em especial ao seu peitoral peludão e às suas costas largas - tão parecido com o meu (mas beeem mais definido).
- Entra aí, filhão! Bem-vindo à sua nova casa. Como eu te disse, a casa é pequena, mas é o que eu consigo arcar no momento. Não tem muito conforto, mas espero que tu entenda.
Naquele momento, eu confesso, senti uma vontade estranha de chorar. Eu estava num estado novo, numa situação de bosta, numa casa pequena e quente pra caralho, e sem minha mãe. Tinha tudo para ser ruim. Mas me recompus antes de demonstrar qualquer fraqueza, e falei que estava tudo bem.
Em seguida, meu velho me mostrou seu quarto, o roupeiro para eu guardar minhas coisas, e me deu uma toalha para eu tomar banho. Percebi que o quarto só tinha uma cama de solteiro, mas ele me disse que por enquanto a cama era minha, que depois a gente fazia um arranjo ou ele comprava outra cama para ele.
Eu arrumei minhas coisas no roupeiro e peguei uma muda de roupa para usar depois do banho. Uma bermuda (não tinha shorts nem calção) e uma camiseta de dormir. A própria bermuda em si já tinha sido uma conquista, pois morria de vergonha das minhas pernas peludas e não usava nunca qualquer calça curta na escola, apenas perto da minha mãe de mais ninguém. Como meu pai era praticamente um estranho para mim, mostrar as minhas pernas naquele momento era algo difícil de fazer, e, no meu íntimo, sofria muito com a ideia de ele fazer qualquer comentário sobre elas. Porém, respirei fundo, e superei essa primeira vergonha. Passados alguns minutos, percebendo que nada de diferente ocorreu (!!!), passei a me sentir naturalmente de boas! E foi com esse “traje” que eu jantei e passei o restante do dia.
Durante o jantar e até a hora de dormir, notei que comecei a ficar intimidado com a presença do meu pai sem camisa. Sei que isso pode parecer maluquice, mas estar tão perto de outro cara sem camisa intensificava meu desejo de ser um sem camisa, ao mesmo tempo em que aumentava minha vergonha, como se eu fosse um inválido que não tinha coragem nem mesmo de agir como homem. O calor estava sufocante, e nada justificava eu estar tão “vestido”. Depois do seu banho, meu pai vestiu um samba-canção - evidentemente sem cueca, pela marcação que sua rola fazia no tecido -, e assim permaneceu, e, apesar de o ventilador estar ligado, eu via algumas gotas de suor caindo sobre seu peito e luzindo ainda mais seus pelos negros. Eu também suava, apesar de isso não estar tão à mostra.
À noite, fomos ambos para o quarto, pois como tínhamos apenas um ventilador, teríamos que deixar ele em rotatória nos refrescando aos dois. A cama, como eu já disse, era minha, e meu pai ficou com o colchão no chão. Quando eu estava indo desligar o interruptor, meu velho, que já estava deitado, uma dos braços ao redor do pescoço, largadão, fala:
- Tu vai dormir assim mesmo?
Gelei.
- Assim como? - perguntei, já sabendo a resposta.
- Vestido.
- Ah, não, isso aqui é pijama - embromei, falando com o coração aos pulos.
- Tá - ele comentou, sisudo e seco.
Naquele momento, acho que fiquei esperando meu pai complementar, me dizer outra coisa. Mas não. Ele ficou quietão, se virou para o lado, e foi dormir.
Fiquei pensando durante um bom tempo que ele tinha percebido minha maneira de ser, e senti muita vergonha. Eu não conseguia nem fingir. Lágrimas começaram a cair dos meus olhos. De raiva, de embaraço. Eventualmente peguei no sono. “Eu ia ser macho como meu pai”, prometi a mim mesmo. Eu ia ser.