Demorei mais de duas horas para chegar à rodoviária. Eu tinha que pegar um ônibus para a cidade vizinha e, lá, pegar outro que passava em frente à entrada da fazenda onde eu iria. Sebastião me explicou direitinho como eu chegaria lá. Depois de seguir suas instruções, cheguei à porteira de entrada da fazenda às seis da tarde daquele mesmo dia.
Falei com um rapaz que estava no curral e ele chamou o encarregado, que era o irmão do seu Sebastião, o Roberto. Quando ele chegou, entreguei a carta para ele e expliquei a situação. Ele me levou para a casa dele e me apresentou sua esposa, Vitória, e sua filha, Cristina. Me trataram muito bem, por sinal.
Depois que Roberto leu a carta, ele disse que eu já podia começar na segunda, e que era para eu usar o final de semana para me instalar e conhecer melhor o lugar. Ele ainda brincou que, para Sebastião me recomendar e garantir meu trabalho, eu devia ser muito boa no que fazia e ele devia gostar muito de mim.
Gostei dele de cara; acho que a semelhança com Sebastião ajudou nisso. Ficamos conversando um pouco. Eu não entrei em muitos detalhes sobre o porquê de ter saído de casa, mas contei um pouco. Ele me explicou que a fazenda onde estávamos era a sede, mas havia mais duas; uma em frente à entrada, toda formada em café, e outra bem perto, onde ficava o gado solteiro. Ele tomava conta das três fazendas.
Ele disse que eu iria trabalhar um mês em período de teste e me pagaria um salário mínimo. Se tudo desse certo, eu seria contratada e ganharia um salário e meio na carteira. Eu concordei na hora; primeiro, porque precisava trabalhar, e segundo, porque na fazenda da minha mãe eu nunca recebi nada em dinheiro. Eu achava que estava trabalhando para nossa família, mas no fim descobri que nunca tive uma família de verdade.
Roberto iria me levar para ficar no alojamento, porque as casas todas tinham moradores, mas Vitória não deixou. Ela disse que eu podia ficar ali com eles, pelo menos até aparecer uma casa, que não ia deixar eu ficar lá no meio de um monte de peões. Eu disse que não tinha problema, que iria, mas ela insistiu e acabei aceitando ficar ali com eles.
Durante o final de semana, conheci melhor a família, que me pareceram ser boas pessoas. Cristina me emprestou algumas roupas até eu poder comprar umas para mim. Roberto me mostrou a fazenda e foi me explicando como tudo funcionava. Na segunda, comecei a trabalhar. No início, os outros peões não me olhavam com bons olhos; ter uma mulher ali no meio deles era meio estranho. Mas, com o tempo, quando viram que eu fazia o que eles faziam, a maioria foi melhorando a cara, puxando assunto, e logo me enturmei com eles. Claro que um ou outro não gostou mesmo de ter uma mulher entre eles, mas também não me atrapalharam em nada.
O mês passou e fui muito bem, por sinal. Tirei minha carteira de trabalho e fui contratada de vez. As coisas estavam indo bem; não esqueci o que aconteceu, mas parece que a dor deu uma aliviada. Eu voltei a me alimentar direito, conseguia dormir bem e, por consequência, recuperei meu corpo normal e meu ânimo para trabalhar direitinho.
Patrícia ligava sempre de um orelhão quando ia à cidade aos domingos. Me dava notícias de todos, menos de Clara, que desde o primeiro dia eu disse que não queria saber nada sobre ela. Nesse mesmo dia, falei com Patrícia que ela tinha razão nas suas suspeitas, mas que tinha acabado, e por isso eu não queria saber nada sobre Clara.
Ela me contou que Rodolfo estava praticamente tomando conta da fazenda, que minha mãe praticamente o deixou à frente das coisas e que Sebastião estava pensando em sair, porque não se dava bem com Rodolfo.
Fiquei bem chateada em saber disso, mas eu não podia fazer nada para ajudar, infelizmente.
Patrícia era a única pessoa da fazenda com quem eu tinha contado. Assim mesmo, a gente se falava rapidinho uma ou duas vezes por mês quando ela me ligava.
Meu aniversário chegou e eu não comentei com ninguém; era mais uma coisa que Clara estragou para mim. Como era na mesma data, passei o dia todo meio triste, porque pensei nela quase o dia todo. Por mais raiva que eu tivesse, no fundo eu queria que ela estivesse bem.
O ano se foi e eu já morava em uma das casas da fazenda. Aprendi muitas coisas novas, porque a fazenda era bem moderna para a época. Os donos eram paulistas; só os vi duas vezes, pois eram sócios de uma empresa e das fazendas também.
Ganhei a confiança do Roberto; eu basicamente tomava conta das coisas referentes ao gado, enquanto ele se focava mais na fazenda de café. Fiz algumas amizades e já frequentava as casas dos outros moradores.
Quase não ia à cidade, só quando precisava comprar algo que não tinha como alguém comprar para mim. Abri uma conta no banco e, como eu não gastava quase nada do meu dinheiro, fui depositando para não ficar com ele parado dentro de casa.
Patrícia me contou que ia para a faculdade fazer agronomia. Seu Sebastião deixou a fazenda e se mudou para a cidade com a família. Jorge resolveu sair também e trabalhar em uma fazenda mais perto da cidade; ele e Patrícia estavam noivos e ele queria ficar perto da sua amada.
Fiquei sabendo que minha mãe ficou doente e teve que ir às pressas para o hospital. Fizeram um monte de exames e foi detectado um pequeno problema no coração, mas nada muito sério, e logo ela voltou para casa.
Um novo ano começou e eu seguia minha vida, que, em vista da vida que eu vivia quando cheguei ali, estava ótima. Acho que a melhor decisão que tomei na vida foi ter saído daquela fazenda.
As coisas seguiram sem novidades. Eu quase não lembrava mais de Clara, e quando lembrava, a dor já não era tão forte. Só que eu não consegui mais me envolver com ninguém. Sinceramente, eu nunca tive nenhum tipo de atração por homens, e na fazenda não havia nenhuma mulher que eu tivesse me interessado. Graças a Deus por isso, porque eu não queria problemas de espécie alguma.
Mais um ano se passou. Patrícia, mesmo morando na cidade, me ligava bem menos. Provavelmente, estava focada nos estudos, além de ir e voltar todo dia de ônibus da faculdade. Era puxado para ela, e a distância acaba esfriando um pouco as relações entre as pessoas. Patrícia era uma grande amiga, mas sei que ela tinha a vida dela também. Já tinha dois anos que a gente não se via.
No início de abril daquele ano, tive uma enorme surpresa; Sebastião e Ana foram passar uns dias na casa do Roberto. Nossa, foi muito bom! Eu estava com muitas saudades deles. Fazia muito tempo que eu não chorava, mas deixei algumas lágrimas escaparem quando abracei os dois.
Ficaram quinze dias na fazenda. Eu só não ficava grudada neles durante o dia por causa do trabalho, mas durante a noite e no final de semana a gente conversou muito. Seu Sebastião conseguiu se aposentar e agora podia tirar um tempo para passear um pouco. Infelizmente, Patrícia não pôde vir por causa da faculdade, mas me mandou um monte de beijos.
Eu não sei se Patrícia pediu a eles, mas não tocaram no nome de Clara. Evitaram falar sobre minha mãe e Rodolfo. Talvez tenham visto que eu estava bem e não quiseram me lembrar de coisas tristes. Mas como eles não sabiam de Clara e nem o motivo de eu não ter contado sobre ela, eu imaginei que foi sim Patrícia que pediu para eles não tocarem no nome dela.
Fiquei muito feliz com a visita deles, mas bateu uma tristeza quando eles partiram. Mas a vida segue, e seguiu.
Iria completar três anos que eu estava ali na fazenda. Já estava na metade do mês de dezembro quando Roberto chega no curral de manhã me chamando com uma cara nada boa. Disse que era para eu ir até sua casa, porque Patrícia ligou e disse que precisava falar comigo com urgência. Eu larguei tudo que estava fazendo e fui correndo ver o que ela queria.
Para ela ter ligado no meio da semana naquele horário, algo grave tinha acontecido. Assim que peguei o telefone, perguntei o que tinha acontecido. Patrícia disse que minha mãe estava no hospital e que pediu para me ver.
Eu disse a ela que não tinha como eu ir. Ela disse algo que me deixou sem chão.
Patrícia— Ceci, sua mãe está morrendo. Os médicos disseram que o coração dela não aguenta mais nem um mês. Pode ser a sua última chance de ver ela com vida. Ela implorou para te chamar; ela quer te ver antes de partir, Ceci.
Não tinha como não ir. Apesar de tudo, ela era minha mãe. Não de sangue, mas ela me criou como sua filha, e devo isso a ela.
Eu disse a Patrícia que estaria lá o mais rápido que pudesse. Me despedi e pedi pelo amor de Deus para que Roberto me levasse até a cidade. Ele disse que só ia avisar Vitória e me levaria. Corri para minha casa, troquei de roupa rápido e peguei minha carteira com meus documentos e meu dinheiro. Sai. Roberto já estava com o carro ligado.
Saímos e ele me perguntou o que tinha acontecido. Eu contei. Ele olhou no relógio e acelerou o carro. Sinceramente, fiquei até com medo, mas não demorou muito e eu estava na rodoviária. Tinha um ônibus que sairia 10 minutos depois da minha chegada. Agradeci a Roberto e disse que ligaria assim que tivesse notícias. Ele disse que eu não precisava me preocupar e que deveria ficar com minha mãe o tempo que precisasse. Me despedi e corri para comprar a passagem. Entrei no ônibus e logo ele saiu.
Assim que cheguei na cidade, fui direto para o hospital. Perguntei na recepção e a enfermeira me indicou o quarto. Como era um quarto pago, eu podia vê-la naquela hora. Quando entrei, Ana estava ao seu lado. Ela me viu, se levantou, me deu um abraço e logo saiu.
Eu me aproximei da cama e vi minha mãe ali deitada. Ela estava muito magra, com os cabelos quase todos brancos. Eu a chamei baixinho e, quando me viu, um pequeno sorriso se formou no seu rosto.
Eu a abracei e, em seguida, passei pelo pior momento desses quarenta e seis anos de vida que tenho.
A voz dela era fraca; mesmo com ela falando no meu ouvido, o som só saía o suficiente para eu ouvir.
Mãe— Que bom que você veio, filha.
Ceci— Só não vim antes porque eu não sabia, mãe.
Mãe— Eu sei, filha. Olha, preciso te pedir dois favores antes de partir.
Ceci— Não fala isso, mãe. A senhora vai ficar bem, se Deus quiser.
Minhas lágrimas já rolavam nessa hora.
Mãe— Por favor, me escuta.
Ceci— Tá bom, mãe.
Mãe— Por favor, toma conta da nossa fazenda e me perdoa pelo que te fiz.
Ceci— Tudo bem, mãe. Eu vou ajudar você a cuidar dela.
Mãe— Queria poder fazer isso, mas não vou poder, filha. Promete que vai cuidar dela.
Ceci— Eu prometo, mãe.
Mãe— Você é capaz de me perdoar?
Ceci— Mas não tem o que perdoar, mãe. Foi uma briga boba. Esquece isso.
Mãe— Não é só por isso, é...
Ceci— Mãe, eu te perdoo. Não precisa se explicar...
Ceci— Mãe!?!
Ela não respondeu mais. Senti seu corpo amolecer nos meus braços; senti seus braços escorregarem pelos meus ombros e caírem sobre a cama. Eu a chamei de novo e nada. Comecei a gritar por ajuda; minha mãe não se mexia mais. Entrei em desespero, pedindo pelo amor de Deus para alguém me ajudar. Logo entrou uma enfermeira junto com Ana. A enfermeira pediu para Ana me tirar dali. Eu saí meio arrastada, meu choro se transformou em gritos chamando pela minha mãe em puro desespero. Logo veio outro médico e outras enfermeiras. Eu levei uma injeção no braço e apaguei.
Continua…