O que eu posso falar sobre 2020? Que ano de merda! Sinto que estamos em um campo de guerra, mas sem qualquer tipo de treinamento. O cenário político um caos, a saúde no Brasil morrendo aos poucos, o que nos espera no futuro? Um mundo pós-apocalíptico onde os jovens terão que lutar por suas vidas em um programa de televisão? Caramba, Doutora, tantas perguntas, desculpa.
Tirei algumas coisas do meu quarto e levei para o do Quintino. Naquela manhã, a Rosa seria transferida para lá. O espaço comportava todos os equipamentos necessários para o controle do Covid-19. Outros médicos chegaram também. Eles viviam com roupas especiais, como aquelas que a Nadine usava. Será que eles achavam minha casa um foco da doença?
Alguns funcionários fizeram uma escada improvisada na varanda da casa, a ideia era ter um acesso completo ao local. Fiquei pensando que para nós era difícil, imagina para aqueles que contavam com os hospitais públicos. Meus pais acabaram investindo um bom dinheiro no Hospital da cidade.
Achava refúgio no André. Agora que o caça ao tesouro havia se encerrado, nós só precisávamos manter a biblioteca do vovô a salvo, então, bolamos uma reforma. Usei as habilidades do Quintino para criarmos um projeto para preservamos as memórias do vovô. Enquanto, o louco do meu primo mexia em um programa de design, o André apresentava alguns textos que escreveu.
— Caramba, André. Você melhorou muito nos últimos dias. O Quintino é um ótimo professor. — Falei olhando para o caderno dele.
— Isso tudo foi você, Higor. Você me deu essa oportunidade. — Ele confessou pegando no meu cabelo e sorrindo. — Sou um cara de muita sorte.
— Ou azar. — Se meteu Quintino. — O Higor não é uma pessoa fácil de lidar, homem do campo. Então, vá com cuidado.
— Cala boca! — Gritei jogando uma caneta na direção do Quintino.
— Vocês dois são uma piada. — Comentou André. — Vou sentir falta de vocês.
Como assim sentir falta? O que ele queria falar com isso. Puta merda. Será que eu não estava sendo claro sobre o quanto eu gostava dele? E, agora. Comecei a pensar em planos românticos para conquistar o André de vez, só tinha um pequeno problema, conhecido também como virgindade. Pensei em conversar com o Quintino, mas pensei melhor, afinal, o traste só tem 15 anos.
Nós passamos a tarde bolando a reforma da biblioteca. Em alguns momentos, pensava na Rosa. Se fosse em outra situação, estaríamos nos deliciando com suas receitas. Eu me obrigava a não ter pensamentos negativos em relação ao estado de saúde da Rosa. Os médicos dariam um jeito nessa situação.
Começamos a coletar os itens para a reforma. O André como sempre nos auxiliou da melhor maneira possível. Enquanto, escolhíamos alguns móveis que estavam no galpão, os meus irmãos apareceram e nos encheram de perguntas. Aparentemente, queriam ajudar também. Juntei os meninos, votamos e decidimos contar com o apoio dos dois.
Embarcamos todas os materiais na carroça e seguimos para a biblioteca do vovó. No trajeto, o Quintino contou toda a história da caça ao tesouro, cartas e segredos do vovô, ele conseguia entender mais os motivos que levaram o seu Aroldo a tomar tais decisões.
O Lukas ficou pensativo, já a Rêh revoltada, pois, o fofoqueiro do Quintino contou que os netos favoritos do Vô Aroldo éramos o Lukas e eu. A parte do dinheiro e recompensas, ele preferiu deixar de lado, uma vez que passamos tudo para o André. Chegamos e meus irmãos ficaram impressionados com a estrutura montada pelo nosso avô.
— Quantos livros. — Disse Rêh. — Quer dizer, que o tal Rodolfo era o crush do vovô. Que safadinho. — Ela soltou parecendo muito animada.
— Eu queria ter feito algo. — falou Lukas. — Não imagino o que é sofrer todos esses anos, sabe, não podendo ser quem você realmente é. — Sentando em uma das poltronas.
— Ele fez uma escolha, Lukas. O amor pela família. Talvez, se o Rodolfo não tivesse morrido...
— Nós teríamos dois avôs! — Gritou Quintino levantando as mãos para cima.
— Enfim. Temos trabalho a fazer. Eu não trouxe vocês aqui para ficarem de conversa fiada não.
Temos que arrumar esse estrago que o Quintino fez. — Expliquei apontando para cima. — A gente deu um jeito, mas molha bastante quando chove. A Rêh vai limpar aqui dentro, quando acabar vamos decorar. — Anotando as obrigações na minha caderneta.
— Que ditador. — Resmungou Rêh pegando uma vassoura.
— Não vai voar, irmãzinha. — Brincou Lukas tirando a camisa e colocando um chapéu.
— Nossa, que engraçado. Vou rir depois.
O meu irmão tinha um físico bonito, não vou negar. Ele sempre trabalhou bastante para se manter saudável, mesmo com os problemas que enfrentava. Seu corpo era coberto por tatuagens, algumas, o idiota fez escondido dos nossos pais. Aconteceu algo, Doutora, que eu não estava esperando. No meio de todo meu devaneio, vi o André tirando a camiseta.
Deixei cair a caneta que segurava para anotar nossas tarefas, acho que dei muito na cara. O corpo do André me dava arrepios. Como posso descrevê-lo? O André tem 1,79alt, pele morena, olhos castanhos claros, cabelos castanhos escuros e curto, pesa uns 76kg, ele não é magro, mas também não chega ser forte igual ao Lukas.
— Terra para Higor. — Cochichou Quintino no meu ouvido.
— Estou prestando atenção. — Disse pegando a caneta no chão.
— Sei!
Para não ficar atrás, o Quintino tirou a camisa também, mas não tinha muita coisa para ver ali. Começamos o trabalho, fiquei impressionado com o desempenho do Lukas. Ele parecia um profissional da marcenaria. A ideia era construir uma cabine ao redor do buraco, dessa forma, poderíamos fazer o local de depósito. A Rêh levou uma caixa de som, então, o tempo passou rápido.
Dei o braço a torcer para a minha irmã. Limpou tudo sem reclamar. Será que é uma forma de redenção? Espero que sim. No fim da tarde, conseguimos nosso objetivo. O Quintino trouxe algumas luzes de LED que funcionava com pilhas. Os móveis "novos" também serviram para deixar o ambiente mais bonito. Acho que foi a primeira vez que trabalhei em conjunto aos meus irmãos.
Voltamos cantarolando algumas músicas compostas pelo Lukas. A minha preferida era "Tente", que fala sobre a importância de persistir em seus objetivos. "Nós ensinamos uns aos outros, como verdadeiros irmãos. Então, tente ser melhor, para que o amanhã valha a pena", diz uma parte da canção.
Me ofereci para deixar os cavalos com o André, uma desculpa para provar mais daqueles lábios. Eu não estava reconhecendo aquele Higor, Dô. Sério! Cada vez que os meus lábios encontravam com o do André, mais eu queria. O beijo dele era doce e provocante.
— Higor. — Soltou André entre um beijo e outro. — Você pode me encontrar no celeiro à noite?
— Bem, não deve ser para aula de português, não é? — Questionei levantando a sobrancelha esquerda, um dos meus muitos charmes.
— Digo, claro, se você estiver preparado. Não quero apressar nada. — Ele tentou justificar, de uma forma enrolada e fofa.
— Eu quero. Só que eu tive uma ideia muito melhor. — Sugeri, mas fazendo certo suspense.
Corri para casa, o meu tempo era curto. Precisava programar um mega jantar romântico em menos de 40 minutos. Tomei banho em tempo recorde, a água do banheiro do Quintino quase arrancou meu couro, mas não tinha brecha para lamentações. Vesti uma roupa bonita, na real, um suéter da Lux de LOL, uma calça preta e minha cueca da Calvin Kline, a mais usável que encontrei.
Na correria, acabei olhando para a porta do meu quarto. Enquanto, eu me preocupava com coisas de adolescente, a pobre da Rosa lutava pela vida. Aquilo acabou completamente com o clima. Desci, cabisbaixo, o Lukas jogava uma partida de Mário Kart com o Quintino e a Rêh. Eles perguntaram se eu queria jogar, porém, acabei desconversando e segui para o celeiro.
O André estava lindo. Vestia uma roupa diferente da que sempre usava. Uma camisa xadrez vermelha e preta, calça jeans e um tênis preto. Eu não queria decepcioná-lo, mas a pessoa que mais amava na vida estava correndo um grande risco. Cheguei perto dele e lágrimas começaram a descer pelas maçãs do meu rosto.
— Ei? — Perguntou o André. — Tá, tudo bem?
— Não. — Respondi em prantos e o abraçando.
— Higor. Não fica assim. — Ele tentou me tranquilizar.
— Ela está muito mal. Essa doença maldita pode leva-la.
André podia ter ficado chateado, mas não. Ele me ajudou a deitar no chão, colocou minha cabeça em seu colo e afagou meu cabelo por horas. O toque dele fazia algo mágico dentro de mim. Nunca senti nada parecido na vida. Esse era o significado da paixão? A pessoa ter um poder tão absurdo pela outra.
— Eu sou tão feliz, sabe? Ver a Rosa nessa situação. Sei lá, parece que não é justo com ela. — Comentei limpando minhas lágrimas.
— Higor. É normal se sentir triste. Vocês tem uma ligação forte. Assim, como o seu Nestor e eu. Ele me criou, cuidou de mim da melhor maneira que pôde. — Ele falou pegando no meu cabelo.
— Você deve estar achando que sou fraco, não é?
— Pelo contrário, Higor. Te acho a pessoa mais incrível desse mundão. Quero que saiba, não estou chateado. Longe disso, prefiro mil vezes estar assim com você. Nessa troca tão legal.
— Droga. — Soltei fazendo o André rir.
— Qual o problema? — Ele quis saber, passando a mão no meu rosto.
— Acho que estou apaixonado por você. — Revelei.
— Estou apaixonado há semanas. Desde o dia que caí do Nescau por sua causa. Deve ter sido a pancada na cabeça. — Ele brincou rindo.
— Idiota. — Disse admirando o André por alguns segundos.
Ali, deitado no chão e com a minha cabeça deitada no colo dele. Ali que eu queria ficar. Nada mais importava, a segurança do André era tudo o que eu precisava. Na real, sempre achei que viveria sozinho no mundo, afinal, nascemos só e morremos da mesma forma.
Dormi nos braços dele pela segunda vez. Acordei o relinchar do Nescau, ou seja, no susto. Levantei rápido e bati no queixo do André, tadinho. A gente ficou em pé de uma forma muito estranha e pedi desculpa pelo acidente. Sorte que não o machucou. Ficamos nos olhando e rindo, infelizmente, o frio nos obrigou a sair dali.
Entrei em casa e toda minha família tomava café. Dentre tantos dias, logo aquele. Mal sentei para apreciar meu Nescau matutino, o Lukas me encheu de perguntas, algumas até indecentes. A pior parte? Todos estavam curiosos, principalmente, o fofoqueiro do Quintino.
Eles eram o tribunal, júri e juiz. Cada um deu o pitaco ou imaginou onde passei à noite. Para a Rêh, o André e eu, cavalgamos pela madrugada a dentro. O Quintino disse que passamos todo o tempo trocando juras de amor. Graças a Deus, a mamãe veio ao meu socorro e cessou a sessão dos fofoqueiros.
Após o café, subi e tomei um banho demorado. Para a minha surpresa, o papai bateu na porta e quis ter uma conversa de homens. Doutora Cida, quis morrer ou me jogar em um buraco. Ele trouxe uma cartela de preservativos, de um discurso sobre cuidados com o "amiguinho", antes e depois do sexo. Na verdade, parte do texto, ele pegou de um comercial da televisão.
— Higor, quero que saiba de uma coisa. O seu corpo deve ser respeitado. Não deixa ninguém tirar vantagem dele, principalmente, sem sua permissão.
— Pai, acho que já entendi tudo. Não precisa continuar. — Pedi segurando a cartela de camisinhas.
— Graças a Deus. — Disse meu pai aliviado da árdua missão de ensinar o filho gay.
— Ei, obrigado. Sei que não está sendo fácil.
— Filho. Você sempre será meu caçulinha. O acidente mais lindo desse mundo. — Brincou meu pai me abraçando.
Como ainda não havia rolado nada entre o André e eu. Acabamos nos encontrando perto do lago. Ele sempre se comportava tão bonitinho, acho que a nossa relação despertava o lado protetor dele. Levei minha caixa de som e mostrei algumas dos meus cantores e bandas favoritos, como o Cartola, Cachorro Grande, Lulu Santos, Armandinho, Sandy e Júnior e Nando Reis.
A melhor parte era a conversa. Ela nunca morria, sério. Descobri que o André sentia falta do carinho da mãe, odiava dormir no escuro e escondia as galinhas que seriam mortas pelo seu Nestor. Contei alguns fatos sobre mim também, a maioria sobre ser solitário, algo que a gente compartilhava.
— Engraçado, não é? — Questionou André.
— Depende. — Brinquei tirando um sorriso dele. — Pode falar.
— A gente veio de lugares tão diferentes, mas buscamos a mesma coisa, amor.
— Verdade. — Concordei esfregando minhas mãos por causa do frio.
— Vem cá. — Ele disse passando a mão em volta do meu pescoço e me abraçando.
— Tão quentinho. — Soltei, me deixando ser aquecido por aquele abraço.
— Pelo menos, algo posso te oferecer.
— Para, André. Você já me ofereceu tantas coisas boas. Sério! Você conseguiu quebrar tantas paredes que criei dentro de mim. Obrigado.
— Não foi fácil para mim também. Agora, imagina para um garoto do campo descobrir que gosta de homens.
— E como foi para você?
— Dia 22 de abril. Lembro como se fosse hoje. Estava na quinta série, quando os meninos estavam no banheiro se exibindo, sabe, brincadeira besta de adolescentes? O meu é maior que o seu e essas palhaçadas. Eles riam e balançavam seus pênis, eu não achava graça, mas acabei olhando demais. Eles tentaram me agarrar à força, só que consegui fugir. De repente, virei assunto na cidade. Alguns pais proibiram seus filhos de brincarem comigo. Acabei largando a escola e focando apenas na fazenda. — André contou sem olhar para mim.
— Que horror, André. Ninguém merece passar por isso. — Pegando em sua mão e fazendo carinho.
— Tudo bem. Isso me deixou mais forte.
— Você já ficou com outros homens? — Perguntei ficando vermelho.
— Sim. Já tive outras experiências. — Ele confessou me olhando.
— Você é o primeiro, André. — Revelei ficando vermelho e olhando para o lago que estava à nossa frente.
— Ei, tudo bem. Já disse que vamos fazer tudo com calma. Estou gostando do que estamos criando, Higor. Você é muito especial.
Depois de uma tarde maravilhosa e cheia de amor, voltamos para casa. Encontrei minha família na sala. Eles estavam apreensivos, o meu coração começou a palpitar mais forte. Perguntei para o papai e nada de resposta. Nadine apareceu e explicou que a Rosa teve uma parada cardíaca, aquelas palavras quase me sufocaram. André segurou firme na minha mão, só não pude evitar as lágrimas.
— É tudo culpa minha! — Gritou a Rêh se levantando e chorando. — É tudo culpa minha.
— Rêh, para com isso. — Pediu Lukas tentando abraça—la.
— A Rosa vai morrer por minha causa!!! — Ela gritou assustando todos.
Nunca vi a Regina daquele jeito. Finalmente, a culpa chegou, tentei ficar com raiva dela, mas senti pena. A minha irmã ficou histérica e saiu correndo para fora da casa. Tentamos correr atrás, porém, acabamos a perdendo de vista. Nem tive tempo de chorar direito pela Rosa.
— Ela está muito transtornada. — Disse minha mãe chorando e se cobrindo com um xale.
— Vamos atrás dela. Está ficando muito frio. — Sugeriu Lukas.
— Esse horário é perigoso. — Alertou André, ainda segurando na minha mão.
— Amor. — Falou meu pai beijando minha mãe. — Nós vamos atrás dela. Fique aqui para ter notícias da Rosa.
— Por favor, tragam a Rêh em segurança, por favor! — Implorou a mamãe chorando.
***
"Nós ensinamos uns aos outros, como verdadeiros irmãos.
Então, tente ser melhor, para que o amanhã valha a pena"
(Lukas Duarte)