Lucca chegou no dia seguinte. Meus olhos estavam pesados, meu pescoço doía, provavelmente por causa da posição desconfortável em que dormi. Acordei de súbito no que uma corrente de vento vinda da porta aberta me fez tremer.
A algumas horas atrás, eu podia jurar para mim mesmo que iria matar Lucca quando ele chegasse, que brigaria feio com ele por ter dormido fora. Mas quando finalmente o vi ali, na minha frente, com seu olhar triste, um alivio tomou conta de mim de modo com que eu me senti despreocupado.
Só consegui me levantar, e sem proferir uma palavra à o de cabelos castanhos, entrei na cozinha e comecei a preparar o café. Lucca ficou ali com os olhos baixos, apenas parado na porta da cozinha. Se aproximou um tanto e disse:
—Me desculpa. Tudo que eu queria era que você fosse meu amigo, para que nossa estadia aqui fosse melhor...
Não deixei que ele acabasse a frase, apenas entreguei-lhe uma xícara do café e disse:
—Não se preocupa.
Aquele foi o momento em que percebi que precisava dele, que se não o tratasse bem, provavelmente ele não iria falar bem de mim no programa, e que consequentemente iria adiantar de nada para a minha imagem. Andei de um lado para o outro, tentando formular como iria pedir para ele falar o que eu queria no talk-show.
Lucca ergueu a sobrancelha com um sorriso de canto de boca. Encostou o lábio na xícara e, por causa do calor do líquido, acabou tirando-o rapidamente.
—Eu juro esquecer que isso aconteceu se você fizer um favor para mim — complementei, sentando-me à mesa entre goladas de café. Ele franziu o cenho, olhou para mim e se aproximou. Fez que sim com a cabeça, para que eu continuasse. — Preciso que fale bem de mim em um programa de TV.
Ele deu uma gargalhada tão forte que acabou balançando o braço e derrubando o café em sua mão. Revirei os olhos enquanto ele fazia aquilo, era nojento. Apenas fiquei o olhando, esperando pela resposta.
—Todo esse drama só para me pedir isso?— disse sorrindo, aparentemente aliviado. Pegou um guardanapo em cima da mesa, e limpou a mão suja— Pensei que fosse algo mais sério. Claro que sim, claro que te ajudo. Um favorzinho para um amigo que me faz muitos outros favores não é quase nada, né?
Fiz que sim com um sorriso leve. Peguei o jornal, e nós tomamos o café ali mesmo, sem trocar uma palavra. Lucca ficava olhando para mim, entre sorrisos eufóricos e goladas, e eu apenas tentava evitar a existência dele encarando o papel em minha mão.
Observei que ele sentou à mesa pelo meu olhar periférico. Ele comia as bolachas que pegou no armário. Não sei qual era a dele, o cara comia todo tipo de bobeira e ainda assim tinha um corpo de invejar qualquer um.
Ele mordia a bolacha entre sorrisos, e aquilo me irritava. Eu não conseguia prestar atenção nas notícias quando ele sorria. Era como evitar olhar para uma estrela nascendo bem no meio da sua cozinha. Uma estrela que brilha e chama a atenção de qualquer um que por ela passar.
—Para com essa porra! — falei por fim. Não consegui me segurar, eu sei que eu deveria fingir ser legal até, pelo menos, a entrevista. Mas não dava quando o assunto era Lucca. Ele me irrita dos pés à cabeça.
—Com o quê? — Me perguntou inocentemente calmo.
—Com esse sorriso.
—Por quê?
—Me atrapalha... — engoli a seco assim que percebi o que falei, acabei de assumir que ele me desconcentrava.
—É que faz tempo que eu não me sinto assim, sei lá, amado por alguém.
Novamente, me senti furioso, mas me contive. Não podia empurrar Lucca novamente, pelo menos não agora.
Como assim amado? Eu não o amava.
—De qualquer forma...— ele disse — eu sinto sim que você sente o mesmo que eu sinto. Que nós não somos inimigos, que somos amigos, e eu vejo em você, Isaac. Você é um cara do bem, me ajudou por livre e espontânea vontade. Você não quer o meu mal, então tá tudo certo. Eu já desisti de saber por que você não gosta de mim, mas não quero mais... Agora eu quero só gostar de você.
—Por que diz isso?— perguntei olhando ainda para o jornal. Ele jogou o dorso sob a mesa, para que eu o olhasse. Eu apenas o encarei com o cenho franzido. Ele estava com aquelas mechas cor de avelã caídas sob as sobrancelhas.
—Você me esperou na sala de estar, você se preocupa comigo... Eu estava me sentindo tão sozinho, mas agora eu tenho você para cuidar de mim.
Eu daria de tudo para ter um modo de não prestar atenção no que ele dizia, até tentei fazer enquanto lia, mas parecia que tudo que via era apenas as frases de Lucca.
—Diga isso para o Jacob, na sexta.
***
O que eu poderia dizer sobre aquela situação? Um monte de gente olhando para nós dois nos bastidores. Era pinceis de maquiagem de um lado. Do outro lado haviam pessoas penteando nossos cabelos. Me senti extremamente desconfortável ali, naquele camarim com luzes encrostadas no espelho.
Mariana havia vindo conosco, mas estava na plateia a muito tempo atrás, bem ao lado da poltrona onde Lucca se sentaria. Era óbvio que o garoto iria aparecer no meio do programa, fingindo não ter combinado nada conosco, falando sobre o quão hospitaleiro eu sou. Pensei mil vezes antes de realmente trazer Lucca para o programa, afinal, ele poderia destruir tudo.
Logo, tudo que pude perceber é que estávamos ambos sentados, um ao lado do outro, naquela poltrona enquanto o show continuava.
Jacob parecia estar pelos seus 50 anos. Era um rapaz bonito e divertido, tinha uma legião de fãs que assistiam seus programas. Não assistiam pelos entrevistados, mas por ele ser um dos rapazes mais influentes que existia na televisão brasileira.
Eu estava com medo, as luzes do estúdio iluminavam tudo. Inclusive, ao vivo, aquele fundo com a cidade noturna parecia tão falso quanto a maquiagem que usávamos.
E então, deu comercial. Pediram para eu me levantar e gravar uma chamada para quarta-feira, quando o programa seria exibido. Sorri para a câmera e dei meu melhor para parecer gentil e suave com minhas palavras.
Sentei-me novamente, o Jacob começou a conversar com a câmera novamente, e me chamou para o sofá vermelho que estava ao lado de sua bancada. Levantei-me, cuidadosamente, enquanto ouvia as palmas atrás de mim. Sorri enquanto caminhava até lá, o senhor apresentador saiu de trás da sua bancada e apertou minha mão, enquanto dizia “Bem-vindo”. Depois sentamo-nos ambos cada um em seu lugar.
—Desnecessário falar sobre quem você é— desenrolou Jacob, enquanto eu sorria ao lado dele, sem perder aquela pose de quem quer ser amigo —Já esteve no topo das mais vendidas da New York Times, com seu último livro “A garota que morava ao lado”, da editora Go. Mas é claro que estou falando com meu autor preferido, Isaac Alberto!
E houve aquela comoção de palmas, enquanto eu sorria calmamente para a câmera, encenando aqueles movimentos de quem está satisfeito, de quem queria realmente estar ali sentado naquela entrevista supérflua.
—Obrigado, Jacob. É um prazer estar aqui no teu programa.
—O prazer é todo nosso — ele disse colocando as mãos sob as minhas enquanto estávamos ali sentados.
Veio a minha mente logo a imagem de Lucca, quando ele tocava minha pele e eu achava aquilo extremamente desconfortável. Percebi que com Jacob as coisas eram diferentes, não me sentia do mesmo modo em que me senti com Lucca.
—Eu li aquele seu livro do New York Times, e meu Deus, que livro incrível!— ele prosseguiu— Me fez afundar nos personagens de modo com que eu não sabia como lidar quando terminei.
As pessoas riram e bateram palmas, tudo que ele fazia soava extremamente confortante e engraçado.
—Ainda bem que gostou, Jacob...
—E esse seu sotaque? Você é mineiro?
—Sim, deu para perceber? — Dei risada — Faz tempo que me mudei para São Paulo, não fazia ideia de que meu sotaque ainda estava parecido com o dos mineiros. Eu amo Minas, é incrível, passo algumas férias lá, com minha amiga Mariana, e logo logo vou levar Lucca também.
Ele espreitou os olhos atrás dos óculos, e disse:
—Eles estão aqui?
Eu fiz que sim, e apontei para a plateia onde eles estavam sentados. Lucca estava com aquela mesma cara que ele fazia quando estávamos sozinhos no meu apartamento, aquele sorriso irritante, que naquele momento simplesmente me reconfortou. Mariana dava uma leve gargalhada enquanto batia palmas.
—Uau, muito bonitos — acrescentou Jacob — eles são seus amigos?
Eu ergui a sobrancelhas, enquanto tentava argumentar do modo que mais parecesse verdade.
—Bom, a Mariana é minha amiga desde os 19, eu acho — fiquei encarando o teto enquanto pensava— 18, 19, por aí... não me lembro exatamente qual era minha idade. Mas ela foi extremamente importante para mim, me deu moradia quando ninguém mais queria acolher um garoto que até então estava morando na rua. E o Lucca está morando lá em casa, porque assim como eu, ele também não tem lugar para morar. Então eu pensei “Caraca, vou ajudar esse garoto que eu encontrei em uma rede social”, e desde então tudo vem sendo...— demorei um pouco para formular. Aquela seria a maior mentira que já contei— perfeito!
Depois disso eu até pude sentir a mentira nas minhas costas, fazendo peso para eu cair, mas me mantive seguro nas palavras.
—Uau, podemos falar com ele um pouco?
Aquilo até parecia não ter sido marcado antes da entrevista, era aquele famoso modo de fazer as coisas rolarem naturalmente que os programas de TV têm. Logo um microfone foi dado para Lucca. Ele ainda sorria, com aquela feição angelical. Uma das câmeras estava totalmente direcionado para ele, enquanto ele olhava para Jacob.
Era realmente lindo, Jacob tinha razão. Lucca tinha algo que fazia todos os olhares virarem para ele, todos os sorrisos se acenderem para ele. Era um garoto lindo.
—Eu amo viver com o Isaac, está sendo uma experiência muito legal, e diferente. Ele é uma ótima pessoa. Apesar de que ele come tudo que vê pela frente. A gente tem que dividir a comida do apartamento, e ele come tudinho! — arrancou gargalhadas da plateia, Lucca era bom em mentir, no final das contas...— Mas não o culpo, ele tem que comer muito para manter esses músculos de lenhador.
—Esse garoto é um comediante— eu disse enquanto olhava para a câmera.
—Mas falando sério, Jacob...—completou Lucca— ele é o rapaz mais bom que eu conheço.
Eu fingi comoção, e aquele foi o fim. A partir daí eu não precisava mais de Lucca, não precisava mais fingir ser legal. No fim, toda a mentira que eu contei no programa valeu a pena.
Tudo passou rápido, desde então. Fomos para casa, eu Mariana e Lucca. Comemoramos com sushi e refrigerante. Depois, Mariana foi para casa e eu fui dormir, tão indiferente quanto eu podia ser com Lucca. Apenas o encarei, enquanto me trancava no quarto.
Na manhã seguinte, acordei com o som no último volume. Fui para sala, no que quando cheguei me deparei com Lucca, pulando no centro da sala de estar com uma revista em mãos. A música era um misto de eletrônica, com uma pitadas indies. Odiei. Mas ele ficou ali, dançando feito um louco.
Não hesitei em desligar o som assim que o alcancei. Fui para a cozinha, agora no silêncio. Lucca estava lá, ainda pulando feito um louco. Olhei para ele por instantes e eu senti como se estivesse feliz, mas aquela sensação só me deixou mais triste ainda. Quando vi Lucca ali, sorridente, me senti tão amado. Era algo extremamente maldoso, um sentimento horrível que eu nutria por ele.
Os raios de sol entravam pela porta de vidro que dava para a varanda, fazendo tudo ali dentro brilhar como uma leve fumaça que rondava o corpo magro e forte de Lucca. Ele usava uma daquelas camisetas de manga curta, seus braços saltavam sensualmente dela. Eu gostava tanto de vê-lo daquele jeito.
—Por que tanta alegria?— perguntei servindo-me uma xícara de café.
—Você não sabe? Eu saí na capa da revista Lup-Lup. Colocaram aqui aquela nossa foto no bar de sushi. Ainda falaram que eu sou sensual.
Eu não pude acreditar, andei até a sala e puxei a revista da mão dele. Lá estava, estampado “SENSUAL!” bem grande e amarelo na capa. Enquanto víamos o rosto de Lucca sorrindo. Aquela foto que o paparazzo havia tirado, realmente saiu linda. Eu olhei para ele, e ele olhou para mim. Eu não pude acreditar que aqueles abutres da mídia estavam querendo Lucca.
Andei até a cozinha, e coloquei um ovo na fritadeira. Lucca me seguiu, como sempre, com aqueles passos delicados no chão.
—Eles me acham sensual!
Ele correu para o quarto, demorou uns minutos para eu vê-lo de novo. Estava já comendo meu pão com ovos mexidos quando ele apareceu.
Aquele sorriso, me sufocando lentamente.
—O que foi?— perguntei.
—E você me acha sensual?
Me senti tonto assim que ele acabou de falar. Foi um choque, e eu não pude me manter em pé. Senti-me quase desmaiando. Senti-me estúpido também. Me levantei, e ele ergueu a revista em minha direção. Eu apenas a peguei, e vi o rosto dele sorrindo ali na capa.
Rasguei a revista no meio, com as duas mãos.
Ele ficou boquiaberto, olhando para o meio onde os dois pedaços se separavam.
—Não me enche o saco— eu disse, enquanto caminhava até meu quarto.
Passava os dias assim. Apenas ia para a sala, onde eu tinha contato com Lucca, por obrigação. Os dias me sufocavam a medida em que passavam. Eu me sentia cada vez mais preso a ele. Por isso, na primeira oportunidade, usei-a a meu favor.
Era noite de véspera de natal, João estava em casa, Mariana estava em casa, e alguns amigos de Lucca também. Não que eu houvesse os convidados, tudo foi arquitetado pela Mariana, e infelizmente minha casa era o palco para esse show. Trocamos os presentes. Eu sou péssimo em escolher presentes, mas tudo bem, porque os três amaram.
Lucca como sempre fez aquela sua cara de quem está muito feliz, e me abraçou. Sim, na frente de todo mundo. Aquilo foi horrível. Mas logo passou.
Chamei João para me acompanhar até lá fora, ele gostava de fumar. Logo o rapaz acendeu o cigarro, enquanto a cidade gritava ao nosso lado. Olhei mais ao longe e vi a grande concentração de luzes dos prédios se misturando às luzes das estrelas. Ficávamos muito próximos da torre da Paulista, no que ela iluminava a faceta cinzenta das construções mais próximas.
—Precisamos conversar sobre Lucca — comecei, enquanto ele acendeu o cigarro.
—Eu sei, esse garoto é uma figura, não é!? — disse, tragando um pouco o cigarro— foi tímido no começo, mas agora todo mundo o ama, inclusive a mídi...
—Quero que ele vá embora — eu disse, assim sem enrolar. Apenas disse.
Vi o rosto do rapaz se contrair.
—Não esperava por essa.
—Ele já fez o que ele veio fazer aqui, já foi um ótimo ator mentindo no programa, já me ajudou a melhorar minha imagem— eu disse. Naquele momento meus olhos começavam a lacrimejar, eu adorei finalmente contar para alguém como eu me sentia, cheguei a engrossar a voz, tentando engolir as lágrimas enquanto narrava aquilo — Eu não aguento mais, esse garoto tá acabando com tudo que eu construí agora, ele já ajudou em tudo que podia. Você bem sabe que agora que o usamos, temos que joga-lo fora! Eu só preciso que me diga que está tudo bem, que não precisaremos mais dele.
—Uau, tem certeza disso?
Eu não o respondi, apenas deixei de encara-lo e comecei a olhar a cidade, torcendo para que as lágrimas não caiam dos meus olhos.
—Acho que agora já podemos o liberar.
Um alívio tomou conta de mim. Um peso saiu das minhas costas.
Ouvi o barulho da porta de vidro se abrindo, era Lucca. Estava com o cenho franzido, parecia ter ouvido tudo. Mas como? Ele estava atrás da porta? Isso não importava, apenas olhei para ele enquanto ele se aproximava.
—Sobre o que estão conversando? — Perguntou, enquanto uma lágrima rolava em sua bochecha.
—Eu estou te expulsando da minha casa.
Fui frio, fui rápido. Aquilo me libertou. Lucca correu para dentro da sala, e passamos o resto da noite sem vê-lo sorrir feito um idiota. Todos perguntavam porque ele estava com aquela cara triste, e ele apenas balançava a cabeça, sem proferir uma palavra se quer.
No dia seguinte mesmo, lembrei de vê-lo sair pela porta, acompanhado de Mariana que se recusava em falar comigo. Mas ela me perdoaria em alguma altura da nossa amizade, e voltaríamos a ser quem éramos, e então pareceria que nada havia acontecido, que Lucca nunca existiu.
Quando a porta se fechou me senti livre.