Kath e eu fazíamos o percurso entre o prédio que abrigava o consultório onde eu trabalhava e uma famosa sorveteria, localizada numa das esquinas de um grande cruzamento de ruas. Aquele era o grande centro da cidade. Pessoas apressadas, rostos vermelhos e testas suadas nos faziam crer que logo o verão daria o ar - muito quente - de sua graça.
Nosso ritmo contrastava com a pressa adotada pelas outras pessoas. Claramente nós e nosso caminhar lento éramos obstáculos para a multidão que passava com seus olhares ora perdidos, ora precisos demais. Quando tão observadores eram capazes de assustar.
- Toda essa pressa me assusta – eu pensei alto antes de lamber o meu sorvete de passas ao rum sem frescuras.
- Você estava me escutando, Ez?
- Estava? – Fingi perguntar para mim mesmo. É claro que eu não estava.
- Não sei por qual motivo ainda aceito seus convites para almoço. – Eu a ouvi resmungar.
- Porque eu estou sempre sozinho e você é uma ótima amiga?
- Você deveria mudar isso.
- Mudar o quê? Eu não estava mentindo, você é sim uma ótima amiga.
- Não é disso que estou falando. Sei que sou uma amiga perfeita, mas me refiro ao “sozinho” – ela disse logo após cavar com a colher o potinho com sorvete de chocolate gourmetizado.
- Ah, claro. Novamente com aquele discurso de que ninguém é feliz sozinho e blá blá...
- Estou mentindo? – Ela me interrompeu para reafirmar seus dizeres.
- Escute... – e logo fui interrompido por um pedestre apressado que me fez sair da linha reta em que eu caminhava. – Não tenho culpa de não ser namorável. Eu também não tenho culpa dessa geração ser tão rasa e se limitar aos amores de uma noite só.
- Menos julgamentos e mais ações.
- Meus Deus, quando você ficou tão insuportável? – Eu quase deixei minha casquinha cair quando ergui minhas mãos levando meus questionamentos ao universo.
- Essa geração está falida? Está sim, mas não é por isso que você vai deixar de procurar por alguém.
Tais palavras ditas na voz suave e muito fina de Kath soavam como um toque de esperança e me faziam crer que sim, eu poderia achar alguém no meio da multidão.Talvez naquela multidão que quase nos atravessava. Mas revirar os olhos em tom de brincadeira naquele momento era muito melhor que admitir que ela estava certa. Antes mesmo que eu pudesse rir, senti o forte tapa que ela deu em meu ombro e então gargalhamos exageradamente, não nos importando com as várias pessoas que passavam trajando suas angustias e pressas desnecessárias. O cenário cinza e urbano combinava perfeitamente com a monotonia que por pouco não se estendia até mim.
Nossa curta caminhada se findou quando ambos paramos na frente da entrada do prédio. Dali em diante Kath seguiria para o estacionamento, pegaria seu carro e voltaria ao seu trabalho. Fazíamos aquele encontro acontecer sempre que precisávamos da companhia um do outro. Ou apenas das implicâncias e palavras de conforto mesmo. Os meninos Luiz e Alan apenas serviam para a bebedeira, como era de se esperar de dois garanhões do tipo deles. Caminhar por uma calçada abarrotada de pessoas ironicamente sem vida não era um programa divertido para o par de galãs. Na verdade, não era divertido nem para nós mesmos, mas nos ancorávamos sempre na presença um do outro.
- Nos vemos no sábado? – Ela perguntou observando o próprio sorvete que acabaria com mais algumas colheradas. Parecia desolada.
Eu me servi de alguns segundos para pensar e quando estava com a resposta na ponta da língua outra voz tomou meu lugar de fala e me fez tropeçar nas palavras. A grande questão é que aquele tom de voz era muito familiar.
- Ezra! – Dizia ele. - Não é minha intenção atrapalhar, mas...
- David! – Eu quase gritei quando me virei e o vi tão próximo de nós.
Ele não estava completamente vestido e engomado como nos outros dias. Vi que a causa disso era o calor daquele começo de tarde quando percebi que ele segurava o blazer com a mesma mão que segurava uma bolsa que deveria estar presa ao seu corpo transversavelmente, abraçando seu tórax maduro. O primeiro botão da camisa branca estava aberto, mas pouco eu conseguia ver de sua pele. A barba acinzentada estava lá tão bem aparada como parecia estar da última vez que eu a tinha notado em seu rosto e o mesmo sorriso simpático também. Além de fazer isso com as palavras, ele também se desculpava com um par de olhos tão brilhantes que eu sequer notei que o sorvete derretia e escorria livre pelas pontas dos meus dedos.
- Você de novo!
- Rude demais – bradou Kath em toda sua liberdade, como sempre fazia.
Eu somente ri também usando meu olhar para me desculpar.
- Culpo o acaso pelos nossos encontros? – Ele continuou perguntando em um riso faceiro. – A verdade é que eu aproveitei o horário livre para tentar te encontrar por aqui. Acho que esquecemos de trocar alguns números, não é?
- Eu somente percebi isso quando já era tarde demais. A vida é assim mesmo.
- Só se a gente quiser – ele brincou ao mesmo tempo em que erguia sua bolsa e tirava um pequeno cartão de um bolso externo. – Aqui!
Imediatamente vi que ele me oferecia seu cartão de visita, mas eu antes que eu pudesse pegá-lo vi Kath moldando a cena outra vez. Certamente algum pensamento rondava a cabeça dela e eu já poderia imaginar qual fosse.
- Formal demais – disse pelas minhas costas como quem não queria nada, fazendo seu olhar vagar para o alto dos prédios propositalmente. Em seguida ela riu descontraída, eu ri de nervoso e David riu elegantemente, como sempre fazia.
- Tome – ele disse me entregando seu celular depois do cartão.
No automático, segurei o celular que acabara de sair do bolso dele e inevitavelmente me deliciei com o calor que ele exalava em meus dedos. Aquela situação era um misto de sensações: numa mão o sorvete gelado, na outra o calor do corpo dele. Com a única mão livre eu digitei meu número deixando para ele a ação de salvar.
- Cartões ficaram para os velhos e os exibidos – Kath falou e somente caiu na real que aquilo poderia soar ofensivo depois de calar a boca.
Eu teria desconversado se David não tivesse gargalhado e concordado com aquela afirmação com uma piscadinha encantadora.
- Hoje você está mais solta do que de costume.
- Está calor demais para carregar coisas que deveriam ser ditas – ela retrucou. Aquilo soava como uma desculpa esfarrapada.
- Concordo com você. – David projetou sua voz grossa entre nós dois. – Aliás, se você não quer, eu quero – ele disse apontando para o meu sorvete.
- Sai – eu o repreendi em um riso quase infantil para então lamber despreocupadamente as pontinhas dos meus dedos. Não havia nenhuma outra intenção além de não desperdiçar algo tão bom. – Aliás, a inconveniente se chama Kath – eu completei apontando para os cabelos vermelhos ao vento que começava a soprar suavemente.
- Encantadora – ele disse apertando a mão alva e delicada dela. O toque dele parecia possuir igual delicadeza.
- Eu sei – ela brincou, provocando obviamente outra gargalhada grossa que terminava em uma rouquidão muito sedutora.
A forma como eu o olhava, a aproximação dele. A frequência com que os olhos dele encontravam os meus, a frequência com que eu queria que eles me encontrassem. Aquilo tudo estava ficando muito perigoso. Eu reafirmava isso toda vez que, de relance, colava meus olhos na aliança presa ao dedo dele e a via cintilar, como um aviso que explicitava: “MANTENHA DISTÂNCIA.”
- Não sei vocês, mas eu preciso ir. E correndo. – Kath anunciou já me dando um beijo no rosto dizendo que me ligaria e estendendo a mão ao homem que acabara de conhecer para então seguir na direção da garagem externa do prédio.
Como sempre e a segui com os olhos até que sumisse de vez e quando retornei meu olhar para David, o flagrei esperando por esse momento e por esse encontro. Ele me entregou um sorriso curtinho no canto dos lábios e esticou seu braço deixando que as pontas dos dedos tocassem meu ombro coberto pela minha camisa. Um pequeno carinho e um apertão suave me fizeram acordar para aquele momento. Havia algo ali ou eu estava imaginando coisas que não deveria.
- Eu devia sair correndo como ela saiu – ele disse ajeitando a bolsa como ela deveria estar. A alça marrom escuro pressionava o tecido contra a pele e aquilo revelava demais à minha imaginação. Perigo!
- Vá antes que eu também saia e deixe você falando sozinho.
- Você faria isso, Ezra? – Ele dramatizou com certeza.
- Eu esqueço canecas em táxis. Você acha mesmo que eu não sairia correndo sem me despedir? Eu sou um erro – brinquei.
- Eu quase fiquei com a caneca, aliás. Mas antes que você me deixe falando sozinho... Até logo, né? – ele disse em outro riso, desta vez aqueles típicos de despedidas.
- Minha caneca, não! – Eu deixei bem claro. – E até logo, Sr. Acaso.
Eu não consegui me mover um centímetro e fiquei vendo ele seguir até a rua para muito provavelmente tomar um dos táxis que sempre ficam na porta dos prédios comerciais do centro da cidade. Ali mesmo era sempre cheio deles. “Eu te ligo” ele praticamente soletrou ao girar seu corpo para uma última troca de olhares antes de seguirmos nosso caminhos.
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Suspirei pesadamente quando fechei a porta do meu apartamento e vi que ele não estava completamente limpo. Ainda tinha coisas para serem organizadas, mas não naquele dia. Já era noite e a única sequência em que eu conseguia pensar era banho, comida e cama. Algo além disso poderia ficar para outra hora.
Tirei minha camisa e a joguei com certa culpa sobre uma cadeira no canto do quarto. Ao tirar o celular do bolso da calça, algo chamou minha atenção caiu dele. O cartão de visita era totalmente preto para destacar, em cinza, o nome e o número de David. Eu sorri para mim mesmo sentindo o relevo das coisas escritas após pegar aquele pedacinho de papel. “Então você é advogado” eu constatei além do pensamento, falando em voz alta. Tudo em mim dizia que eu deveria ligar, mas racionalmente aquilo não era a coisa certa a ser feita. Ele fez questão de dizer que ligaria então eu não acumularia culpa ligando para ele quando atender sua ligação já seria algo muito, muito errado. Em vez disso apenas salvei o número na agenda do celular. “Todo mundo precisa de um advogado uma vez na vida” eu falei para as paredes e os móveis como uma desculpa bastante descarada.
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Eu tinha terminado de arrumar a coberta em volta do meu corpo quando ouvi o celular tocar e vibrar sobre o banquinho ao lado da cama que eu usava como um móvel de apoio. Imediatamente tomei o aparelho em minhas mãos e vi que a ligação não vinha de muito longe. Eu não tinha um sentimento concreto acerca daquela ligação mas a atendi no automático levando o celular até a altura da orelha sem respirar. David também parecia mudo do outro lado e eu escutava apenas o ruído de uma conversa ao fundo. Uma mulher e uma criança. Só podia ser a família do homem ao telefone. Eu evitei com muita dificuldade não pensar em nada.
- David? – Eu disse ao mesmo tempo que suspirava. Uma hora alguém falaria.
- Eu disse que ligaria – rompeu o silêncio de sua parte, enfim.
- Você disse – eu dei um risinho que queria ter evitado.
- Como estão as coisas?
- “Indo” é uma boa resposta?
- Para os dias malucos, “indo” é a resposta perfeita – ele me respondeu.
- Tudo bem, então eu estou indo. E como estou as coisas por aí? Adianto para pedir desculpas pela inconveniência de Kath. Eu nunca sei quando ela está em um ótimo dia.
Ele riu. Ele riu e sua risada obviamente penetrou minha pele, fazendo arrepiar cada pequeno espaço. Até os mais escondidos. Eu não poderia e nem conseguiria ignorar o fato de que a voz dele ao telefone era tão sedutora quanto em minha presença. E naquele momento, quando ele parecia sussurrar para que não escutassem sobre o que conversava, era ainda mais grave. Eu estava excitado e isso era outra coisa que eu não poderia negar, além de não conseguir evitar.
- Eu estou tranquilo e não se desculpe pela garota, eu a achei divertidíssima. Você sabe que as pessoas não conseguem mais ser sinceras hoje em dia. É engraçado ver alguém como ela – ele disse em um tom de voz que parecia ser influenciado por um sorriso que infelizmente eu não conseguia ver.
- Ah, pode colocar sinceridade nisso. Aquela ali extrapolou os níveis. É surreal!
Ele preparava sua resposta quando notei que tinha travado pela proximidade de alguém. “Qual destes?” a mulher perguntou. Sabiamente eu fiquei em completo silêncio. “Sem dúvidas o azul” ele respondeu após alguns segundos.
- Desculpe-me – sussurrou ao voltar para a ligação. – Você sabe que eu liguei para marcamos o almoço que combinamos.
- Ah, sim. Isso!
- Talvez... Eu... – Como se soubesse que afetava a minha ansiedade, ele tomava um tempo para si no meio das palavras. – Talvez possamos nos encontrar naquela calçada. Talvez na sexta-feira.
- Vou ignorar o talvez e ver isso como um compromisso, pode ser?
- Ótimo – ele concordou ansiosamente. – Veja isso com um encontro prometido.
- Encontro prometido. Eu gosto desse termo. – Confessei como se estivesse apenas pensando alto demais.
- Eu gosto de tudo nesse termo. – Aparentemente ele também extrapolou os limites da sinceridade.
- Bom, então...
- Até lá? – Ele me interrompeu ao perceber que nenhum assunto cabia mais entre nós dois. Não naquela ligação.
- Até lá – eu disse vagarosamente antes de desligar.
Ao deixar o celular ainda com o visor iluminado sobre o banquinho, voltei meus olhos para a direção das minhas pernas e ri com o tamanho do volume que eu guardava na região do quadril, criando uma nítida saliência na coberta. Aquela seria uma noite difícil e eu ainda teria uma quinta-feira inteira para sofrer a ansiedade que o encontro me causava.
Talvez eu estivesse sozinho nessa e criar tantas expectativas fosse um erro sem volta, mas parecia surreal pensar que ele não estivesse muito bem intencionado. A parte mais dolorosa era admitir que eu gostava daquele erro. Eu estava gostando muito daquele erro.
Tratei de apertar a saliência do meu membro contra minha virilha e num sorriso enfiei minha cara no travesseiro, evitando os julgamentos daquelas paredes que sabiam demais.
“Chega. Hora de dormir” minha voz saiu abafada pelo tecido.
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Jades, ele é do tipo que com toda certeza esqueceria a caneca novamente, né? Coitado! O que será que vai rolar com esse David aí, hein? Não crie super expectativas, você sabe que eu sou lentinho ao criar situações emocionantes. haha
J. K., por experiência própria eu digo que não é a melhor coisa do mundo andar SEMPRE com a cabeça nas nuvens como eu, mas às vezes isso é uma salvação, viu. Já me livrei de muitas situações por estar pensando em qualquer coisa, menos naquilo que acontecia. haha Começar a escrever para desviar o foco foi a melhor coisa que você fez. Provo isso ao ler seus escritos. Todos os abraços para vocês dois. :)