Explicar que passei o resto daquela noite em claro, rememorando tudo o que vi na casa de Fleury, atormentado com a lembrança persistente de seu beijo, seria inutil. Aquele desconhecido universo desvairado, libertino, livre, que se descortinava ante meus olhos me parecia de uma beleza vivaz e insuperavel.
Eu era um rapaz que me vestia bem, com cuidado e elegancia em roupas feitas por bons alfaiates, chapeus sempre limpos, sapatos engraxados. Branco, de cabelos castanho-escuros lisos, nao usava bigode nem barba, como a maioria. Georgiana afirmava que eu era bonito.
Minhas poucas experiencias sexuais se limitavam à raras idas a bordeis nos tempos em que ainda estudava. Geralmente, pressionado por colegas, acabava levando uma meretriz qualquer para cama; nunca pude entender porque sempre a coisa toda me parecia tao insatisfatoria no final, porque vinha uma prolongada sensaçao de enojante desgosto apos tudo ter acabado. Fazia muitos anos que nao me via "disposto" a repetir aquilo.
Portanto, esse desejo abrasador e estranho pelo Fleury me espantava. De onde viera esse interesse inusitado? Essa vontade de me unir a ele como faziam seus colegas pederastas? Eu era, tambem, um deles? Dificil de acreditar...
Todavia, assim que terminei de atender meus clientes no escritorio, no dia seguinte, sai para a Gavea sem pensar duas vezes. O meu relogio de bolso marcava as quatro horas de uma bonita tarde com ares outonais, de vento melancolico. Jean, o criado, me saudou assim que cheguei e maravilhado, descobri que Fleury estava sozinho em casa.
Estendido num canape' de veludo cor oliva, tomando o sol debil que entrava à larga pela janela, ele lia e fumava, vestido num robe diferente, de seda branca bordada com pequenos losangos dourados. Resplandecia como num quadro fabuloso de alvura e beleza. Jovem, sensual, entediado.
- Voce veio! _ ele sorriu, largando livro e cigarro na mesa de canto, vindo me abraçar numa nuvem quente de fumaça, sabonete de rosas e agua de colonia de lavanda _ Emanuel passou o dia todo fora... Deve estar gastando meu dinheiro por ai... Sabia que ele nao faz absolutamente nada alem de jogar poquer e cobiçar esses garotos impuberes? A familia dele esta falida, viviam mendigando em Paris. Apanhei-o na rua, vendendo bilhetes de loteria e charutos ordinàrios, sob um frio de menos dez graus. Estava maltrapilho, faminto, infeliz... mas o danado era tao bonito!
Falava enquanto se movia pela sala numa leveza de cisne, servindo ele proprio licor em copos trabalhados estilo bico de jaca. Dentro da seda fina, seu corpo certamente nu delineava-se como num sonho helenistico; mandou Jean trazer brioches, estavam ainda frescas, e enquanto comiamos ele indagava sobre toda a minha vida, tecendo comentarios àcidos sobre Georgiana, que ele teve a chance de ver no teatro: "mulherzinha reles e insignificante", "cara de peixe seco". Incapaz de me ofender com aquelas observaçoes, ria delas, notando com uma inquietude crescente, um apetite denso, os pedaços de pele branca que aquele roupao exibia vez ou outra, pequenos presentes dos deuses que Fleury oferecia com displicencia.
Recuava a tardinha quando, sem nada dizer, ele me tomou pela mao e me conduziu ao quarto principal, no andar superior ostensivamente luxuoso. Um comodo todo arejado, numa riqueza exuberante de mobiliario frances saturados de dourado que o sol, inclinando-se, fazia refletir como numa mandala luminosa, de mil sois là dentro.
Meu rosto queimou quando Fleury começou a me despir lentamente, sem pedir licença, com modos habilidosos de quem tinha feito aquilo muitas vezes, em muitos outros homens. Quando terminou, eu jà estava "pronto" em minha virilidade plena, respirando ansiado, a boca seca. Ele sorriu, recuou dois passos me fitando com cobiça, desfez o laço do robe e deixou-o cair num amontoado macio e fluido sobre o chao lustroso; era incrivel, ele tao branco, com partes rosadas estranhamente livre de pelos, orgaos sexuais de tamanho harmonioso, um peito amplo, de atleta, as pernas grossas que toquei com desespero e fome. Na cama de dossel, imensa e silenciosa, entre lençois ingleses que cheiravam à alfazema e cigarro, Fleury, deitado de bruços, exibia a alvura de sua anatomia perfeita, onde minha boca em chamas depositava beijos sofregos. Um traseiro mais bonito do que de qualquer mulher que jà tive, o qual abri e enfiei a lingua com apetite na aureola rosada, fazendo-o arfar e agarrar o travesseiro de rendas, empinando o quadril, implorando por mais numa voz sufocada. Depois, girando-o na cama como um boneco, entre beijos violentos, segurando seus cabelos de cachos de trigo perfumado, devassei-o sem pena, observando sua expressao que alternava dor e felicidade, com a cabeça quase para fora da cama, na borda do colchao, sendo empurrado, erguendo as pernas deliciosas, emitindo gemidos longos. Era tao quente, tao estreito, macio, e ele parecia se esbaldar tanto comigo, percorrendo com as maos tremulas meu peito de pelos grossos e escuros, arranhando minhas costas nas unhas nacaradas, e me puxando mais para si, para entrar tudo.
Cerca de duas horas mais tarde era quase noite. Exaurido na cama, ainda tomado por espasmos de um prazer sublime, nunca antes experimentado por mim, vi Fleury se levantar, pegajoso de suor e outros fluidos. Vestiu-se com o robe e acendeu as velas de um castiçal, espantando a penumbra.
- Nunca fez isso antes? _ indagou, ajeitando seus cachos rapidamente ao espelho.
- Nao _ suspirei, sentando-me na cama.
- Pois fez muito bem. Tem talento para a coisa, meu caro _ ele sorriu, fitando-me pelo espelho de moldura barroca _ Aposto como agora voce nao vai querer saber de outra coisa...
Quando descemos para a sala, encontramos Emanuel jà de volta, fumando de um jeito despreocupado e observando o seu projeto de Antinoo arranhar um Chopin no piano de Fleury. Me fitou, sem surpresa, mordendo de leve a ponta do charuto. Fleury ralhou com o garoto, mandando-o parar de dedilhar o teclado do instrumento, e Emanuel, soprando a fumaça do charuto para cima, chamou Jean e mandou que ele trocasse os lençois do quarto principal e providenciasse um banho para o menino. Peguei meu chapeu, a bengala, me despedindo do loiro com um longo olhar, uma promessa muda de outra visita para o dia seguinte. Torcia para que as horas corressem depressa ate là.
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