Desde 1990 moravamos naquele apartamento minusculo da Vila Madalena, no oitavo andar, com vista para outros predios feios e cinzentos. Esticando o pescoço na sacada pequena, dava para ver um pedaço maior de ceu à esquerda; nao era o ideal, claro, mas foi o que nosso bolso pode pagar, logo que rompi com meus pais e tive, obviamente, minha conta bancaria bloqueada.
Meu pai havia dado um ultimato assim que abri o jogo sobre aqueles gastos (omitindo, é claro, a doença de meu anjo), as retiradas de dinheiro de minha conta para o tratamento do Marquinhos. "Ou ele, ou sua familia, Alexandre", dissera logo apos me esbofetear, chocado com o que ouvira, a confissão de minha sexualidade e meu relacionamento. E eu já havia escolhido, fazia tempo. "Vou morar com ele. E sim, sou gay, sempre fui, e isso nunca vai mudar". Minha mae, de palida e incredula, caiu no choro, abandonando a sala. Clarice, minha irmã, me olhava com apreensao. Doía deixa-los assim, mas nao vinha de minha parte aquele extremismo, e o que meu pai exigia era impossivel, eu jamais deixaria o Marquinhos, ele estava em primeiro lugar na minha vida. "Nao espere que depois dessa palhaçada voce sera admitido outra vez aqui dentro. Eu nao criei filho indecente e depravado", disse ainda meu pai quando apareci com minhas malas e passei pela porta, sem responder, sem encara-lo, com uma dor profunda no peito. Seria dificil agora, minha mesada era volumosa, e graças à ela pude pagar a conclusao da minha faculdade,da de Marcos e o Chevrolet branco modelo 86. Prevendo aquele rompimento, jà andava vendo um apartamento de aluguel mais barato para nos, e finquei pe' no emprego do escritorio de Perdizes, onde trabalhava havia quase um ano. Era uma luta, uma guerra suada para nunca faltar o medicamento dele, no final.
No saguao, Clarice me alcançou, agitada, segurando meu braço.
- Nao podem fazer isso com voce _ ela tentava nao chorar _ Onde voce vai morar?
- Já estou arranjado... E sou maior de idade, esqueceu? A casa e' dele.
Chorando, ela me ajudou a colocar as malas no bagageiro do carro. Entrou comigo no veiculo, e se acalmando, falou :
- Como assim voce e' gay? Serio isso?
- Sou, oras! Vai me recriminar tambem? _ olhei para ela com desconfiança.
- Nao, mano. Porque faria isso? _ disse, se olhando no espelho retrovisor; a maquiagem tinha borrado _ Meu professor de moda e' gay, os garotos do curso tambem... gente boa demais. Nunca tive preconceito... Porque nao me contou antes? Nunca poderia imaginar, voce nao tem jeito, nem nada. Deve ser um come-quieto.
- Meu Deus! _ sacudi a cabeça, meio sorrindo; devagar, ela tocou no lado de meu rosto, onde o tapa de meu pai acertara em cheio.
- Ficou vermelho _ falou, um tanto indignada _ Ele age como um tirano, um rei insultado em sua "honra".
- Deixa pra lá _ suspirei, dando partida no carro _ Vai, agora preciso ir.
- Nao! Espere um pouco, vou subir e pegar minha bolsa. Quero conhecer sua nova casa e seu namorado _ disse, saindo, sem tempo para que eu retrucasse _ Me espera!
No final, ela acabou indo mesmo para nosso apartamento, onde conheceu Marquinhos. Da outra vez, quando ele ficou là em casa naquele dia em que Tony bateu nele, Clarice nao teve a chance de conhece-lo por um desencontro de horarios. Achei incrivel que eles tenham simpatizado um com o outro logo de cara e Clarice, espevitada como era, nao deixou de exclamar assim que o viu:
- Mas essa coisinha linda tinha que ser gay, meu Deus?
Tinha surgido ali uma grande amizade entre eles, e sob muitos aspectos Clarice o adorava mais do que a mim. Trazia-lhe agrados, doces, revistas, roupas confeccionadas por ela mesma no cursinho de moda. Tingiu uma camiseta em amarelo vivo e estampou o simbolo dos ThunderCats, o desenho preferido de Marquinhos, em rosa choque. Ele adorou, virou uma de suas peças favoritas. Muitas vezes suspeitei que minha irma tinha uma paixonite tola e surreal por ele, porque a admiraçao era muita, nunca esfriava, nem quando ela soube da doença dele. Entretanto, certo dia soubemos que ela estava namorando um estudante de musica chamado Alan, e o namoro ainda durava.
- Cadê meu gostoso? _ dizia ela entrando como ventania em nossa casa, deixando a bolsa espalhafatosa no sofá e indo á procura do Marquinhos; na sacada, ele descansava ouvindo radio FM no walk-man _ Tudo bem, querido? Como estamos hoje?
- Mais ou menos _ ouvi ele responder _ Senta ai, mulher. O carinha já deve ter terminado as pizzas, logo vem...
Da cozinha eu os ouvia. Coloquei as duas formas com as redondas no forno e fui para a varanda. Clarice mexia no walk-man do Marquinhos, bem bonita num vestido de listras rosas e seu cabelo cor de caramelo, como o meu, enfeitado com uma tiara de miçangas que ela fez. Tinha acabado de vir da casa de Alan, onde passava a manha e as noites de sabado e domingo.
- Tambem nao gosto do Pearl Jam _ disse ela, concordando com uma critica de Marquinhos à banda _ Sao um pouco depressivos.
- O que era bom começou e terminou nos anos oitenta: The Police, Smiths... Agora, pra mim, quase nada presta _ disse ele.
- E Madonna, querido? Quem ouve Madonna nao precisa ouvir mais nada! _ ela sorriu fazendo pose de esnobismo.
- Boa tarde! _ cheguei, abraçando-a _ Entra e nem me cumprimenta, vem toda louca para ver ele...
- Olha o livreiro com ciumes! _ Clarice riu, desenterrando um apelido de minha adolescencia _ Lindinho, ele e' meu idolo, aceite.
- Um idolo doente? _ caçoou Marquinhos.
- Para mim, isso o torna ainda mais digno de admiraçao _ disse ela com um sorriso franco _ Meus grandes herois eram homens doentes: Rock Hudson, Ian Curtis, Dostoievski... Voce e' apenas mais um deles.
Quando as pizzas ficaram prontas, fomos comer na sala mesmo, tomando refrigerante na garrafa cujo vidro estava esfolado, tanto era o uso e reuso. Clarice contou que nossos pais iam bem, mas desde que sai de casa afirmou que era raro ve-los sorrir. Minha mae chorava pelos cantos, com saudade e inconformada com minha vida. Falei à mana que se mamae quisesse me ver, sem recriminaçoes nem julgamentos, seria muito bem vinda.
- Vamos ver se ela aceita. Vou falar, pode deixar _ falou a moça, limpando a boca no guardanapo de papel _ Olha, fiz o deposito anteontem, ok? O dinheiro já esta là, pode usar.
Censurei-a um pouco, contrangido, como sempre, com aquele gesto. Fazia tempo que ela me ajudava com o tratamento do Marquinhos; dependendo apenas de meu salario e o dele, nossa renda nao era o suficiente para custear aquele caro medicamento. Mudando para o apartamento menor e mais barato, ficamos um tanto mais aliviados, porem ainda assim nao dava, e era desesperadora a possibilidade de que nao houvesse dinheiro para aquele penoso tratamento. Felizmente Clarice ganhava uma mesada generosa de meu pai, alem de vender muitas peças de roupa feitas no curso; tinha talento para a moda e cobrava caro pelos modelos exclusivos que as garotas queriam.
- Sem dramas, por favor _ dizia ela, nos olhando seriamente _ Faço questao de ajudar voces.
Marquinhos nao quis tomar o refrigerante, sentiu-se saciado com tres pedaços de pizza de mussarela, com pouco tempero para ele nao enjoar. A anemia provocada pelo remedio, que apareceu em meados de 1990, ia e vinha, contida com vitaminas e sulfato ferroso. Ultimamente eu o achava muito desanimado e sonolento; certamente a anemia tinha voltado, e o medico precisava saber e cuidar disso. Jà ate imaginava suas birras e reclamaçoes quanto à dieta rica em ferro que ele odiaria seguir outra vez: muito bife de figado, brocolis, espinafre, beterraba, feijao... Que Deus me desse ainda mais paciencia com aquele menino!
Nao saimos naquela noite de sabado, como geralmente faziamos. Ele estava um pouco cansado, quis apenas passar a hora ouvindo discos no quarto, e enquanto rodava o seu preferido, "Louder Than Bombs", em formato de CD, transamos, pegando leve. A libido dele sempre foi algo bem marcante, intenso, mesmo apos a doença.
"Nao te amo, cara. Nem vou te amar", dissera ele depois de nossa primeira vez, anos atras, num ataque de crueldade que inaugurou para mim muitas noites de choro e tristeza enquanto eu ouvia baladas bregas no meu antigo quarto e lamentava ser tao esquisito, bobo e apaixonado.
- Te amo, gatinho... Muito _ sussurrou ele, perfumado do banho que tomamos juntos depois do sexo; aconchegou-se a mim, vestido apenas de camiseta velha e cueca branca _ Abaixe o som e me acorde na hora do remedio, ok?
- Daqui a uma hora _ falei, beijando seus cabelos umidos que se cacheavam quando molhados; abracei-o ao meu peito, e estendendo a mao peguei o controle remoto, diminuindo o som; ele dormiu depressa, fatigado, e enquanto o resto do CD rodava, eu acariciava sua cabeça, lembrando de nossos passos ate ali. Logo seria a hora do medicamento dele, a alta dosagem do bendito AZT, e eu precisaria estar acordado para chama-lo. Vigilancia total.
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Thanks, gente! :)