Continuação da série Reuniões e você somente o entenderá na íntegra se ler os anterioresREUNIÕES, SOB O LUAR DO SERTÃO - As tias
Estávamos muito cansados da viagem, mas a alegria em estar de volta e rever os lugares de minha infância se sobrepunha sobre qualquer cansaço físico. Senti um frio me subindo o corpo quando olhei, ainda longe, a porteira por onde passei tantas vezes. Na fazenda ainda existe aquele mesmo celeiro onde meus sonhos me levam ainda hoje para reviver os momentos de prazer...
(Impressões iniciais de Carmem)
Cíntia conhece a história das tias
2º Dia
Na casa grande todos estão reunidos na mesa grande onde Izidora voltou a por bolos, frutas e jarras de sucos.
Os tios conversam animadamente traçando planos para o período de férias e comem com voracidade, o que são acompanhados por Larissa, Flávia e Isabelle. Entro conversando com o primo e as garotas se retraem, Nat não liga. O papai chama o primo.
- Esse aqui é muito mais filho que se meu filho fosse. É quem tem colocado ordem nesse caos – abraça Nat que me puxa pelo braço.
- A Cíntia já está uma mulher formada... – comenta o tio João.
- E não larga por nada esse primão aqui... – falou papai também me abraçando. – Não sei onde conseguem assunto para tanta conversa.
Tia Nininha percebe algo de errado entre os primos.
- Que foi gente! Algum problema – fala olhando para a filha Flávia que baixa os olhos e permanece em silêncio.
- Foi nada não, tia – responde Silvia.
- Então qual a causa desse silêncio pesado? – insiste a tia.
Segredo no ouvido de papai o motivo do constrangimento que deixa escapar uma gostosa gargalhada e olha sorridente para Nat.
- Ih, cara! Deves ter mais cuidado... Elas não são daqui e vão estranhar um pouco.
- Que aconteceu? – perguntou o tio Manoel com curiosidade.
- Nada não mano, é coisa de criança – tenta encerrar a conversa.
- Qual é Julio, vai ficar de segredinho? – rechaça o irmão.
- É que não temos o costume de fechar as portas dos quartos e o Nat entrou no quarto da Larissa sem avisar... – olhou pro irmão. – E já viu a bronca que levou!
- Ô Larissa, deixa de ser fresca. Por acaso isso tirou pedaço teu? – repreende tia Carmem lembrando de seu passado.
Ela não replicou, as meninas também calaram.
- Isso não é motivo para se criar esse clima pesado, garotas – aconselhou tia Nininha. – Conversem entre vocês e tracem suas regras para esses dias que estaremos juntos.
As meninas saíram e fico com Nat conversando com os tios.
A tia Nininha é assim o tempo todo - pacificadora. É formada em psicologia e tem uma clinica em sociedade com outros três psicólogos no Rio de Janeiro. Conheceu tio Manoel no Centro Acadêmico onde exercia a função de coordenadora de eventos culturais. Universitária bonita, corpo bem feito e líder estudantil utilizava-se com maestria sua aparência e seu dom inato da oratória para arrebanhar adeptos nos comícios durante a era negra do autoritarismo brasileiro, seus discursos inflamados chegou a lhe causar problemas com a polícia política do campus e uma ficha nos arquivos do DOI-COD. Expansiva consegue manter contatos com sua turma do C.A. até hoje e incentiva as filhas para o exercício da livre Cidadania responsável não aceitando que se tornem patricinhas desmioladas. Dez anos mais nova que o tio Manoel adora cavalgar e usar roupas provocantes, que não incomodam seu marido.
Tia Carmem é bem diferente apesar de também haver participado da política estudantil e ter sido merecedora de ficha no DOI-COD. Sua seara é a conversa, o papo tête-à-tête, exercido com maestria. Devoradora de livros, formou-se em filosofia e é professora catedrática da Universidade Federal de Minas Gerais e em outra faculdade, além de ensinar em colégios secundaristas. Um pouco baixinha de cor moreno claro, é alegre e ainda conserva seu corpo bem torneado em seções de academias. Não gosta muito de cavalgar e sim de andar pelas trilhas selvagens da mata virgem. Não tem opinião formada contra o naturismo, mas se sente a vontade com pouca roupa no corpo.
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A mamãe se destaca das cunhadas por sua beleza natural de quem herdei o encanto – segundo palavras do primo. Não estudou muito, parou ainda no primário, mas mesmo assim é uma mulher que gosto de estar atualizada. É bastante perspicaz e absorve as novidades com rapidez. Desde muito tempo é a fiel protetora do sobrinho e aceita seu modo de viver e de vestir sem qualquer restrição. Durante boa parte de sua juventude chegou a se tornar adepta de um naturismo caboclo que lhe rendeu algumas broncas e surras da mãe conservadora, mas que lhe dava prazer. Órfã de pai, sua mãe veio morar na fazenda a convite do vô Candido onde ajudava na lida da casa. Sua beleza rara despertara o interesse de rapazes casadoiros que passaram a freqüentar a fazenda em busca da “santinha do Câindu”, mas aos poucos foram sendo desencorajados pelo espírito de liberdade de uma garota que sabia sonhar e que traçara a vereda de seu futuro: uma rebelde sem causa - diziam. Deixa transparecer que apoiaria sem pestanejar uma relação mais afetiva minha com o primo. Casou nova e nasci quando ela tinha apenas quinze anos de idade. Nunca mais engravidou.
Tia Maria a irmã caçula, mãe de Nat, enviuvou quando o filho tinha seis anos e logo depois veio morar foi morar conosco. Conservadora tenta mudar a maneira de viver do filho com quem se atrita constantemente.
Eu e Nat participamos da conversa animada por longo tempo até que papai perguntou sobre o Ataliba. O primo lembra que havia combinado ajudá-lo no abate do novilho.
- Vamos lá amorzinho – Nat me puxa pela mão e saímos abraçados em direção à vila dos moradores.
- Não são lindos os meus filhos... – comenta Nadir com os cunhados.
Nat ajudou Ataliba abater o boi e fomos dar uns mergulhos na lagoa. Voltamos com o sol já se pondo e Silvia veio correndo em nosso encontro.
- Onde vocês estavam? – perguntou. – Procurei por toda parte.
- Fomos ajudar abater um novilho com o Ataliba – responde o primo. – Depois fomos dar uns mergulhos na lagoa.
Silvia dispara uma saraivada de perguntas. Queria saber onde era a lagoa, o que poderiam fazer e um mundo de coisas mais. Paramos debaixo do sapotizeiro e conversamos até o céu escurecer quando então voltamos para a casa pequena.
As meninas estavam deitadas no chão da sala assistindo DirecTv e quando entramos elas cessaram a conversa. O primo não liga para isso, nem ao menos notara alguma modificação em suas atitudes, mas Silvia e eu estranhamos, e Nat direto trocar de roupa e bate na porta do quarto vazio.
- Dona Larissa! – fala alto. – A senhora permite que eu entre?
Risinhos na sala e volta a bater e a pedir licença, novos risos. Entra, veste uma bermuda limpa e volta para a sala sentando ao lado de Larissa e deita apoiando a cabeça em seu colo.
Todas olhamos espantadas aguardando a reação da prima. Alguns instantes de tensão até que Larissa deu um sorriso, afaga a cabeça do primo e se curva para beijar sua testa. Alívio total.
- Tu não tem mesmo jeito, Nat. – falou acariciando seu rosto e virou-se para as primas que não entenderam. – Da outra vez que estive aqui aconteceu a mesma coisa e esse peste também deitou no chão e colocou a cabeça em minhas pernas...
Suspiros de alívio geral. Elas retornaram a conversa interrompida. Falavam sobre a viagem, sobre a paisagem exuberante e dos planos que tinham para as férias.
Silvia também deita e apóia a cabeça na barriga do primo. Estava selada a trégua.
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- E aí primo? Quando vais nos levar para conhecer a fazenda – perguntou Flávia.
- Amanhã cedo vamos dar um passeio a cavalo – respondo.
Alvoroço geral.
- Quem nunca montou? – pergunta Nat.
Apenas Larissa e Isabelle sabiam montar, as demais eram marinheiras de primeira viagem.
- Podemos levar a charrete – falo.
- Mas não poderíamos entrar na mata – rebate.
- Façamos o seguinte – sugeriu Larissa. – Quem não tiver coragem de montar vai na garupa com alguém que saiba. A sugestão foi aceita por todas e ficou acertado que Silvia iria comigo, Flávia com a Cíntia e Larissa com Isabelle iriam cada uma em um cavalo.
- E o Jonas? – pergunto. – Ele sabe montar?
- Saber ele sabe, mas acho difícil que aceite ir – responde Isabelle. – Aquele ali não desgruda do velho por nada.
O jantar foi animado e descontraído. Para demonstrar que tudo estava resolvido Larissa sentou-se do lado do primo com quem conversa animadamente o tempo todo. Do outro lado eu acariciava a perna de Nat, vez por outra, interferia na conversa.
Fomos tomar o cafezinho novo da Izidora na varanda, a conversa continuou animada com os tios deitados nas redes ou nas espreguiçadeiras. As meninas ficam orbitando em suas voltas enquanto Nat deita numa rede um pouco afastada comigo e namorar as estrelas, sinto o corpo cheiroso do primo colado a mim.
A algazarra de gritos e sorrisos dos adultos criava um ambiente diferente do cotidiano. Escutam com atenção os casos contados das infâncias na fazenda e das travessuras infantis.
- Deixa eu deitar também... – escutamos Silvia pedir baixinho.
Nat se ajeita abrindo espaço e ela se aconchega passando a perna sobre seus corpos.
- Aqui tem estrela do céu... – fala mansinho olhando o universo negro pontilhado de luzes tremulantes. – Lá em BH a gente não consegue ver o quanto é bonito...
Em silêncio escutamos a voz calma da prima descrevendo suas descobertas e Nat acaricia meu braço. Meus pelos eriçarem a respiração ficar mais forte, viro a cabeça e meto a ponta da língua em sua orelha.
- Vamos dar uma volta na lagoa... – sussurro entrecortando a respiração cadenciada.
Nat balança a cabeça dizendo não, pois o pessoal iria estranhar.
Aos poucos as garotas se aproximam e iniciam conversas sobre assuntos diversos.
- Nat! – mamãe chama. – Será que o Nezinho ta sóbrio?
- Sei não tia – responde deitado. – Não o vi hoje a tarde quando fomos pro curral com Ataliba... A senhora quer que eu vá ver?
- Vá lá meu filho, e se tiver pede p’rele trazer a viola...
Nezinho da Loura é um morador da fazenda – o faz tudo – que bebe feito bode pelo amor da mulher que o abandonara. Alto, falador, toca viola caipira como ninguém e canta com uma voz rouca muito bonito de se ouvir.
- Ele não ta aqui, Dona Nadir – falou Ataliba que ouvira o pedido quando chegava trazendo uma bacia – mandei ele na cidade buscar as cervejas e refrigerantes.
- Que pena... – lamuriou mamãe. – Tava pensando numas toadas para animar o pessoal...
- Mas o Rob está aqui... – atalha o sobrinho.
Roberto Carlos é filho do Nezinho e aprendeu a tocar e cantar com o pai. Mora na cidade onde se casou com Das Virgem uma mulata linda que inferniza a vida do marido ciumento.
- Vai lá buscar ele, meu filho... – pede papai.
- Precisa não tio, espera um pouco que ele chega logo – levanta da rede e dá dois toques breves e um longo no sino. Aguarda uns instantes e repete o sinal por mais duas vezes e volta a deitar.
Ninguém, a não ser o tio eu. papai e Ataliba, entendeu o que fiz. Tia Maria, espevitada, levanta e reclama.
- Vai logo lá, seu preguiçoso. Teu tio mandou tu buscar o Roberto! Vamos, levanta dessa rede...
- Pode deixar D. Maria, que o Rob chega logo – sorriu para Nat e entrou na casa balançando a cabeça.
Realmente o Rob não demora a chegar trazendo a viola com Das Virgem e Marieta.
- Não entendi! – observa papai.
- O Nat tem um código com a gente – fala alto Ataliba de dentro da casa. – Cada sinal no sino quer quiser uma coisa... É criação do seu Caindo...
Foi o avô que ensinou seu código particular de comunicação através do sineiro. Era uma maneira de falar à distância com seu pessoal sem que outras pessoas soubessem o que dizia ou queria. Com o passar do tempo incorporou outros toques aos originais. Da família só eu conhecia todas e papai alguns.
- Ih, olha aí o cara praticando tan-tan de tempos modernos! – observou o tio Manoel rindo.