Miguel:
Acordei com o som de burburinhos nas celas vizinhas. Madeira batendo contra o metal. Um carcereiro sacana passando seu cassetete pelas grades. O barulho ecoou pela cela abafada, em que cada som parecia mais alto do que o necessário. Já havia perdido a noção dos dias, mas sabia que minha rotina dentro daquele lugar seguia um ciclo repetitivo e sufocante.
Um despertar frio, um banho de água gelada, o café da manhã que mal passava de um pão seco e um café ralo. Depois, o tempo se arrastava entre o banho de sol e as refeições sem sabor, até a chegada da noite, quando a escuridão da cela parecia devorar tudo ao meu redor. O único alívio eram as visitas do advogado. Família era permitida apenas uma vez por semana.
Respirei fundo, sentindo o cheiro de mofo e ferro oxidado. Mais um dia. O mesmo inferno.
Mas então, a porta da cela se abriu, e um dos carcereiros me olhou com uma expressão que eu não consegui decifrar de imediato.
— Se levanta aí. Você vem comigo.
Meu corpo enrijeceu. Me levantei devagar, estudando o rosto dele, tentando entender se aquilo era um problema. Normalmente, quando um preso era chamado assim, não significava coisa boa. Mas não vi hostilidade em seu olhar. Apenas algo diferente. Uma neutralidade contida.
Caminhei ao lado dele pelos corredores, sentindo os olhares de outros detentos sobre mim. Nenhum de nós gostava de surpresas ali dentro. Passei pelo pátio e depois por um longo corredor que levava até a área de processos administrativos. Só então percebi para onde estava indo.
Meu coração acelerou, mas segurei qualquer esperança. Poderia ser um engano, algum trâmite burocrático qualquer. Eu não queria me dar ao luxo de acreditar em esperanças vazias.
Mas então, quando virei a última esquina, vi a figura familiar do meu advogado. Ele estava parado ao lado de um homem que vestia um terno escuro, com um distintivo da corregedoria pendurado no bolso do paletó. O advogado sorriu ao me ver e se aproximou.
— Miguel, você está livre. — Sua voz carregava um alívio sincero, mas também um peso. — Conseguimos reverter tudo. Você está oficialmente inocentado.
Meu peito pareceu explodir de dentro para fora. Por um momento, as palavras não faziam sentido. Depois de tudo, depois de cada segundo que passei ali dentro, sentindo o gosto amargo da injustiça, agora eu estava ouvindo aquilo. Eu estava livre.
O oficial da corregedoria pigarreou e me olhou com uma expressão que misturava seriedade e constrangimento.
— Senhor Miguel, quero expressar oficialmente nossas desculpas pelos transtornos que lhe foram causados. O sistema falhou com você, e estamos tomando as providências para que isso não volte a acontecer. Espero que consiga reconstruir sua vida fora daqui.
Eu não sabia o que responder. Parte de mim queria explodir, gritar que desculpas não eram suficientes, que nada traria de volta o tempo que passei ali. Mas outra parte, mais cansada, apenas queria sair, respirar ao ar livre, sem sentir as grades ao meu redor.
Assinei os papéis que me entregaram, cada traço da minha assinatura parecendo uma despedida silenciosa daquele inferno. Quando a última formalidade foi concluída, fui conduzido até a saída. A porta pesada de ferro rangeu quando abriu, e o sol da tarde me cegou por um instante.
Foi então que os vi. Meus pais estavam ali, parados, esperando por mim. Minha mãe cobria a boca com as mãos, os olhos marejados de lágrimas. Meu pai mantinha a postura firme, mas vi a emoção contida em seu olhar. E ao lado deles, Carolina.
Meu coração deu um salto ao vê-la. O cabelo preso de qualquer jeito, como se tivesse vindo correndo. Seus olhos estavam vermelhos, mas brilhavam de um jeito que eu não via há muito tempo. Ela deu um passo hesitante à frente, como se não soubesse se podia se aproximar.
Meu peito apertou ao vê-los ali, me esperando, e quando minha mãe correu para me abraçar, senti o peso daqueles dias se dissolver um pouco.
— Meu filho ... — Ela murmurou contra meu ombro, a voz embargada.
Meu pai, mais contido, apertou meu ombro com força, um gesto silencioso, mas que dizia muito. Quando olhei para Carolina, vi seus olhos marejados, a hesitação em sua expressão. Então, ela deu um passo à frente.
— Miguel ... eu ... — Ela engoliu em seco, como se estivesse reunindo coragem. — Eu preciso me desculpar. Eu devia ter dito antes que acreditava em você. Eu hesitei, eu ...
Balancei a cabeça antes que ela terminasse.
— Não há nada para desculpar, Carol. Eu entendo. Foi muita coisa para você processar. Eu só estou feliz por estar aqui, fora daquele inferno.
Ela segurou minha mão por um instante e apertou levemente, um pequeno gesto de apoio que significava muito.
O advogado deu um passo à frente, chamando minha atenção. Seu semblante sério denunciava que ainda havia muito a ser dito.
— Miguel, agora que você está livre, preciso que esteja preparado para o que vou te contar.
Eu me endireitei, sentindo a tensão no ar.
— A mandante de tudo isso foi Mina. — Ele disse sem rodeios. — Com a ajuda do Thiago, que levou as intenções dela ao extremo, as coisas chegaram nesse ponto.
Meu estômago revirou. Mesmo sabendo do que ela era capaz, ouvir aquilo em voz alta fazia meu sangue ferver.
— Mina ... — Murmurei, sentindo a raiva crescendo. — O que mais vocês descobriram?
O advogado trocou um olhar rápido com Carolina e meus pais antes de continuar.
— Há muitas provas contra ela. Pagamentos feitos a pessoas chave, manipulação do sistema judicial, a morte do Leandro, o envolvimento direto no esquema que resultou na sua prisão ... Thiago executou boa parte do plano, mas foi Mina quem puxou os fios.
Minha respiração ficou pesada. Tudo o que eu passei, tudo o que me tiraram, foi por causa dela. Por causa da mulher com quem eu tinha dividido anos da minha vida.
— E agora? — Perguntei, minha voz saindo mais firme do que eu esperava.
O advogado sorriu satisfeito.
— Agora, Miguel, chegou a vez de ela pagar por tudo o que fez. Você está livre.
Eu ainda tentava assimilar tudo. O ar fora da prisão parecia mais leve, mas dentro de mim, os sentimentos se misturavam: alívio, indignação, gratidão … e uma enorme vontade de recomeçar.
Foi então que meus olhos captaram um detalhe que passou despercebido, até aquele momento. Atrás do carro do meu pai, estacionado discretamente, havia outro veículo. No interior, uma silhueta conhecida. Meu coração acelerou: Viviane.
Minha mente tentou encaixar as peças. Por que ela estava ali? Será que tinha vindo me ver? O que ela sabia que eu ainda não sabia?
Virei-me para Carolina, buscando respostas. Ela notou minha confusão e logo se adiantou.
— Foi tudo a Viviane. — Ela disse, com um sorriso misturado à emoção. — Sem ela, não teríamos descoberto os planos da Mina.
Senti um aperto no peito. Viviane. Minha amiga. Alguém que passou pelo mesmo inferno que eu. E, no entanto, ela estava ali, quieta, esperando … o quê? Minha reação?
Soltei-me do abraço de Carolina e caminhei até o carro. O vidro estava fechado, mas eu podia ver claramente seus olhos atentos, inseguros. Ela não sabia o que esperar de mim.
Bati de leve no vidro.
— Abaixa isso aí, Vivi.
Ela hesitou por um segundo antes de apertar o botão, fazendo o vidro deslizar para baixo. Antes que ela dissesse qualquer coisa, me adiantei.
— Obrigado, amiga.
Seus olhos se arregalaram, e ela abriu a boca para falar, mas eu a interrompi.
— Carolina me disse que você é minha salvadora.
Sem esperar resposta, abri a porta do carro e puxei Viviane para um abraço apertado. Ela ficou rígida por um instante, talvez surpresa, mas logo relaxou e retribuiu o gesto.
— Você não precisava fazer nada disso, mas fez. — Eu estava emocionado. — Não sei como te agradecer.
Viviane suspirou, tentando parecer indiferente.
— Eu só fiz o que era certo, Miguel.
A voz grave do meu pai soou logo atrás de nós, firme e cheia de autoridade.
— Vamos sair daqui. Chega desse lugar.
Soltei Viviane do abraço e me virei para ele. Havia um peso naquelas palavras, como se ele também estivesse exorcizando um fantasma.
Minha mãe sorriu para Viviane e, com a doçura que sempre carregava na voz, decretou:
— Você vem com a gente. Não aceito "não" como resposta.
Viviane olhou para mim, e eu apenas sorri.
— Você ouviu a minha mãe. Eu não discutiria com ela, se fosse você.
Ela bufou, mas um pequeno sorriso surgiu no canto de sua boca.
— Está bem. Mas eu dirijo meu próprio carro.
Meu pai assentiu.
— Contanto que vá.
E, com isso, deixamos para trás os muros que me aprisionaram. Era hora de seguir em frente.
{…}
Mina:
O telefone tocou e eu atendi no terceiro toque, impaciente.
— O que foi agora, Thiago? — Resmunguei, olhando de relance para minha filha, que assistia a um desenho no sofá da sala.
A resposta veio rápida e ríspida:
— A casa caiu, Mina. Você tem quinze minutos para arrumar uma mala pequena. Eu já estou indo te buscar. Não dá tempo de discutir, só faz o que eu estou mandando!
Meu coração disparou.
— O quê? Do que você está falando? — Minha voz saiu mais aguda do que eu gostaria.
Thiago soltou um suspiro nervoso do outro lado da linha.
— O jogo virou. A polícia tem todas as provas que precisa. Tudo, Mina. Eles sabem do nosso envolvimento na morte do Leandro. E, para piorar, Miguel já está sendo solto.
Engoli em seco. Uma sensação fria percorreu minha espinha. Aquilo não podia estar acontecendo. Eu fiz tudo certo ... tinha certeza de que eu tinha feito tudo certo ...
— Como assim, Miguel foi solto? Isso não faz sentido! Nós cuidamos disso! — Minha mente girava em confusão … e desespero.
— A gente cuidou mal. E agora, se você não quiser ser presa, vai pegar a porra da sua filha e esperar na calçada. Já estou chegando. Não discute! — Ele desligou.
Por alguns segundos, fiquei paralisada. Minha mente gritava para eu correr, fazer algo, mas meu corpo parecia enraizado no chão. Depois, como se um estalo me despertasse, em modo de sobrevivência, corri para o quarto. Peguei uma mala de mão e, com as mãos trêmulas, enfiei algumas roupas aleatórias dentro.
— Mamãe? O que foi? — A voz infantil da minha filha me trouxe de volta.
Respirei fundo, forçando um sorriso tenso.
— Vamos dar uma volta, meu amor. Vai ser rápido, tá bom? Pegue seu casaco.
Ela obedeceu sem questionar, e eu a carreguei nos braços até a porta. Assim que pisei na calçada, Thiago apareceu em um carro preto de vidros escurecidos. Ele abriu a porta e me puxou para dentro sem gentileza. Mal bati a porta, e o carro já estava acelerando.
— Para onde estamos indo? — Perguntei, segurando minha filha contra o peito.
— Aeroclube. Temos um avião pronto para nos tirar do país.
Minhas mãos suavam. O estômago revirava. O carro cortava as ruas da cidade em alta velocidade. No banco da frente, um segurança dirigia, e o outro, no banco do carona, carregava uma submetralhadora no colo. Tudo aquilo era surreal. O que eu estava fazendo? Como deixei as coisas chegarem naquele ponto?
Pisquei algumas vezes, sentindo meu coração apertar.
— Você ... Você precisava mesmo matar o Leandro? — Minha voz saiu fraca, sem convicção.
Thiago bufou.
— Eu fiz o que você queria! Você não sabia o que estava pedindo? — Ele riu, mas era de nervoso. — Não me venha com essa agora, Mina.
Preferi ficar quieta, desviando o olhar. Sim, eu queria que Leandro desaparecesse do meu caminho. Mas não daquele jeito brutal. Não daquela forma tão cruel.
O carro entrou em alta velocidade no aeroclube privado. O jato estava a poucos metros, com a escada abaixada e as turbinas ligadas. O piloto nos esperava. O segurança do Thiago parou o carro bruscamente, mas antes que qualquer um de nós pudesse abrir as portas, um comboio de viaturas invadiu o local.
Luzes giratórias. Gritos. Desespero …
— Polícia! Saíam do carro com as mãos para cima!
O barulho de tiros rompeu o ar. Thiago e os seguranças abriram fogo primeiro.
Minha filha gritou e eu, sem pensar, a joguei para baixo, me colocando por cima dela, me abaixando entre os bancos do carro. Os tiros pareciam vir de todos os lados.
Vi, pelo vidro, Thiago e seus seguranças disparando rajadas em sequência, mas a polícia estava em maior número e mais bem posicionada. Eles não tiveram chance.
Outro estampido e vi Thiago ser atingido no peito. Seu corpo bateu contra o carro e deslizou até o chão.
O tiroteio cessou segundos depois. Os corpos de Thiago e seus homens estavam espalhados pelo asfalto. Eu tremia, segurando minha filha com força.
— Por favor ... Por favor, não machuquem ela — Supliquei quando um policial abriu a porta e apontou a arma para mim.
— Sai devagar e com as mãos visíveis! — Ordenou ele.
Eu obedeci, com lágrimas escorrendo pelo rosto. O oficial me puxou para fora, algemando minhas mãos para trás. Eu não resisti. Não havia mais nada a fazer.
Fui levada até a viatura e jogada no banco de trás. Minha filha foi retirada dos meus braços, e vi uma policial levá-la para outro veículo. Meu coração doeu mais do que qualquer coisa.
Na delegacia, um oficial de rosto sério me observou com desdém. Ele cruzou os braços, balançando a cabeça.
— O que vamos fazer com a criança? — Ele perguntou, se dirigindo a outro oficial.
— O Conselho Tutelar foi acionado. Vão decidir o melhor para ela.
Ouvi, ao longe, um telefone tocando e uma voz feminina atendendo.
— Boa noite. Sim ... Eu entendo ... Pode deixar. Farei a ligação imediatamente.
Fechei os olhos, deixando a escuridão me engolir. O fim tinha chegado.
{…}
Miguel.
O cheiro forte da feijoada se espalhava pela casa, misturado ao aroma cítrico da caipirinha que meu pai e o advogado, amigos de longa data, saboreavam com satisfação. A mesa estava repleta de pratos, farofa, couve, arroz soltinho e torresmo crocante. O riso fluía solto, e eu sentia uma paz genuína. Só faltava a minha filha comigo para eu estar completo novamente.
— Eu disse que você ia sair dessa, garoto! — O advogado ergueu o copo, os olhos brilhando de alegria. — A justiça tarda, mas não falha.
— Se tivesse falhado, a gente ia dar um jeito de resolver! — Meu pai sorriu, batendo a mão na mesa.
Todos sorriram animados, e até eu soltei um sorriso verdadeiro. Carolina, ao meu lado, não largava minha mão. Seus olhos me fitavam com ternura, e vez ou outra, seus dedos deslizavam pelo meu rosto, como se quisesse ter certeza de que eu era real.
— Eu ainda não consigo acreditar … Você está aqui. — Ela sussurrou, e eu levei minha mão até seu rosto, afastando uma mecha de cabelo.
— Estou aqui. E não vou a lugar nenhum.
Dona Lúcia surgiu na sala com um pano nas mãos, sorrindo satisfeita.
— Se precisar de mais arroz, eu fiz bastante!
— Dona Lúcia, eu vou acabar engordando uns cinco quilos depois dessa refeição — Falei, rindo.
— Pois que engorde! Depois de tudo que você passou, precisa recuperar essa cara de caveira! — Ela rebateu, arrancando gargalhadas de todos.
A alegria era contagiante. Meu coração, antes esmagado pelo peso da injustiça, parecia pulsar com vida nova. Eu olhei ao redor, gravando aquele momento, aquele calor humano que me lembrava o que realmente importava.
Então, o telefone tocou.
Meu riso morreu no instante em que o som agudo preencheu o ambiente. Todos pararam de conversar, os olhares voltados para o aparelho sobre a mesa de centro. O número era desconhecido. Meu estômago se revirou.
Atendi, desconfiado.
— Senhor Miguel Novaes? — A voz do outro lado era feminina, profissional.
— Sim, sou eu.
Ela fez uma pausa breve, como se escolhesse as palavras.
— Meu nome é Camila, sou assistente administrativa da delegacia central. Estou ligando para informá-lo que sua ex-esposa, Guilhermina Novaes, foi presa há pouco.
Minha garganta secou.
— O quê?
O silêncio na sala ficou pesado. Todos me observavam, esperando minha reação.
— Sim, senhor. E … bem, sua filha está aqui. O Conselho Tutelar foi acionado, mas como o senhor tem a guarda compartilhada, gostaríamos de saber se pode vir buscá-la imediatamente.
Meus olhos se arregalaram. Meu coração disparou como se eu tivesse levado um soco no peito.
— Minha filha está aí? — Minha voz saiu mais rouca do que eu pretendia.
— Sim, senhor. Está assustada e perguntando pelo senhor.
Eu me levantei num impulso, sentindo um frio correr pela espinha.
— Estou indo agora.
Desliguei o telefone e peguei a chave do carro rapidamente.
— Miguel? — Meu pai se ergueu, a voz carregada de preocupação. — O que aconteceu?
Eu olhei para ele, ainda atordoado.
— Prenderam a Mina. Estou indo na delegacia buscar minha filha.
O impacto da minha fala foi instantâneo. Minha mãe levou a mão ao peito. O advogado arregalou os olhos. Carolina ficou boquiaberta. Meu pai segurou meu braço firme, tentando me conter.
— Espera. Você está em choque. Me deixa ir com você.
— Não, pai. Eu preciso fazer isso sozinho.
Eu respirei fundo. Meu mundo havia virado de cabeça para baixo de novo, mas agora, minha prioridade era uma só: minha filha.
— Eu preciso ir. Depois eu explico tudo.
E antes que pudessem me segurar, saí apressado, sentindo meu coração martelar no peito a cada passo. Eu já estava na porta quando senti Carolina segurar meu braço.
— Você não vai sozinho.
Olhei para ela, minha respiração ainda descompassada.
— Carolina …
— Nem discute. — Seus olhos estavam determinados, firmes. — Eu vou com você.
Não insisti. Eu precisava sair dali o mais rápido possível, e se ela queria ir, eu não ia perder tempo discutindo. Entramos no carro, e eu liguei o motor com pressa. Minhas mãos estavam suadas no volante, e meu coração batia tão forte que eu mal conseguia respirar direito.
O trajeto até a delegacia foi um borrão. Minha mente girava, tentando processar tudo. “Mina presa. Minha filha esperando por mim. Como as coisas tinham mudado tão rápido?”
Carolina não disse nada. Apenas colocou a mão sobre a minha perna, um gesto silencioso de apoio.
Quando chegamos à delegacia, estacionei de qualquer jeito e desci do carro às pressas. Carolina veio logo atrás. A entrada do distrito policial tinha um movimento incomum para aquele horário, com viaturas chegando e saindo. O ambiente era tenso, mas eu só conseguia focar em uma coisa.
Assim que entrei, uma policial que estava atrás do balcão me reconheceu.
— Miguel Novaes?
— Sim! Minha filha … onde ela está?
— Acalme-se, senhor. — Ela gesticulou para que eu a seguisse. — Venha comigo.
Caminhei atrás dela pelo corredor iluminado por luzes frias, sentindo o peso da espera me esmagando. Meu peito estava apertado. Então, a policial abriu a porta de uma sala pequena. E lá estava ela, a minha pequena.
Sentada em uma cadeira, segurando uma boneca contra o peito. Seus olhinhos arregalados, assustados. Quando me viu, congelou por um instante. Meu coração parou junto com ela.
— Filha … — Minha voz quase falhou.
— Papai! — Seu choro veio em seguida.
Foi o suficiente. Ela pulou da cadeira e correu até mim, os bracinhos pequenos se fechando ao redor do meu pescoço com força. Eu a segurei tão firme que parecia que nunca mais ia soltar.
— Papai! Eu fiquei com medo!
— Eu sei, meu amor … eu sei. Mas já passou. O papai tá aqui.
Fechei os olhos, sentindo o cheiro do cabelo dela, sentindo seu coração batendo contra o meu. Carolina, ao meu lado, enxugava as lágrimas silenciosamente.
A policial nos deu um instante antes de pigarrear e chamar minha atenção.
— Senhor Miguel, podemos conversar um momento?
Engoli em seco e assenti, ainda segurando minha filha. Pedi que Carolina ficasse com ela, enquanto fui levado para outra sala, onde dois investigadores estavam à nossa espera. Eles tinham expressões sérias, mas havia algo diferente ali. Eu percebia um certo respeito no olhar deles.
— Senhor Miguel … — Um deles começou — … antes de mais nada, quero pedir desculpas pelo que aconteceu com você. Sabemos que foi injustamente acusado, e estamos cientes do erro que foi cometido.
Eu apenas agradeci, ainda sentindo a adrenalina correr no meu corpo. O outro policial continuou:
— A captura da suspeita, senhora Guilhermina, aconteceu há algumas horas. A operação foi rápida. Ela tentou fugir com a sua filha, mas conseguimos interceptá-los antes que embarcassem em um avião.
Eu ouvia em silêncio, chocado com as revelações.
— Ela está detida e vai responder por diversos crimes. O caso ainda está em andamento, mas pelo que já levantamos, há evidências suficientes para mantê-la presa por um longo tempo.
Eu não sabia o que sentir. Ódio? Alívio? Talvez um pouco dos dois.
— E o Thiago? — Perguntei, a voz carregada de tensão.
Os policiais trocaram olhares antes de um deles responder:
— Ele morreu no confronto. Assim como os seguranças que os escoltavam.
Um silêncio pesado pairou no ar.
— Eu só quero ir pra casa com a minha filha — Pedi.
O policial concordou.
— Você tem esse direito. Só precisamos de uma assinatura e estará tudo resolvido.
Eu assinei os papéis rapidamente. O peso de tudo que aconteceu ainda não tinha me atingido por completo. Mas naquele momento, nada importava mais do que tirar minha filha daquele lugar. Finalmente, ela estava segura.
Finalmente, eu estava livre. Das acusações e da Mina.
{…}
Mina:
As paredes da sala de interrogatório eram frias, sem janelas, e a luz fluorescente piscava de tempos em tempos. Eu já estava ali há não sei quanto tempo, sentada numa cadeira dura de metal, os pulsos algemados sobre a mesa. Meus olhos estavam vermelhos, o rosto molhado pelas lágrimas que escorriam sem controle.
Do outro lado, dois policiais me observavam. O mais velho soltou um suspiro impaciente. O outro, um pouco mais jovem, mas com a mesma expressão endurecida, jogou um fichário sobre a mesa.
O barulho ecoou pelo ambiente.
— Vamos direto ao ponto, senhora Guilhermina. — O mais velho começou, sua voz cortante. — Já temos provas suficientes para enquadrá-la. Mas queremos ouvir de você.
— Minha filha? Cadê ela? — Perguntei, genuinamente preocupada.
Com um sorriso cínico, o mais novo disse:
— Fique tranquila. O pai já está vindo buscá-la. A senhora tem problemas maiores para se preocupar.
Eu funguei, tentando parecer ainda mais frágil.
— Eu … eu não sei o que está acontecendo. Isso tudo é um engano terrível.
O mais jovem abriu o fichário e deslizou uma foto para mim. Era uma imagem do corpo de Leandro, caído no chão, com uma poça de sangue ao redor. Minha garganta se fechou, mas eu segurei a reação.
— Esse é o resultado das suas ordens. — Ele disse. — Thiago seguiu exatamente as suas ordens.
Balancei a cabeça freneticamente.
— Não! — Minha voz falhou. — Não foi assim! Thiago … ele entendeu errado! Eu nunca pedi para ele fazer isso!
Os policiais trocaram olhares. O mais velho puxou outro documento.
— Vamos ver … — Ele folheou as páginas. — Aqui temos registros bancários de transferências que o Thiago fez para você. Pagamentos bem generosos, aliás. Rastreamos o dinheiro, sabemos onde ele foi usado.
Engoli em seco.
— Ele … ele estava me ajudando com algumas coisas. Mas nunca pedi pra ele … — minha voz falhou novamente, e eu me agarrei à minha única chance. — Eu amava o Leandro!
O mais jovem riu debochado, descrente.
— Amava?
— Sim! Eu estava apenas magoada com o Miguel. Queria que ele sofresse, queria humilhá-lo do mesmo jeito que ele fez comigo! Mas nunca desejei que alguém morresse!
O mais velho empurrou outra foto na minha direção. Era uma captura de tela de mensagens enviadas do meu telefone.
— "Ele merece pagar pelo que fez. Acabe com isso de uma vez". — Ele leu em voz alta. — Reconhece essa mensagem?
O sangue sumiu do meu rosto.
— Isso não prova nada! — Eu tentei argumentar. — Eu poderia estar falando de qualquer coisa!
— E estava falando do Leandro. — O policial rebateu sem hesitar. — Como você explica essa outra mensagem? "Não quero mais rastros, Thiago. Já fomos longe demais".
Minha boca se abriu, mas nada saiu.
— E tem mais, senhora Guilhermina. — O outro policial pegou outro documento. — Temos registros de ligações entre você e Thiago nos dias que antecederam a morte de Leandro. Vocês conversaram por horas. Depois, no dia da execução, apenas uma mensagem curta: "Está feito".
Meu coração disparou.
— Isso não quer dizer que eu …
— E então tem esse áudio. — O mais velho pegou um pequeno gravador e apertou o play. A minha voz preencheu a sala.
"Não me interessa como você vai fazer, Thiago. Só quero que ele suma da minha vida".
O som do meu próprio tom frio me atingiu como um tapa. O silêncio que seguiu foi sufocante.
— Você quer tentar de novo? — O policial perguntou.
Minhas lágrimas se intensificaram, mas não havia mais saída. Eu estava encurralada.
Minha mente trabalhava a mil, buscando uma saída. Eu sabia manipular as pessoas. Sempre soube. Só precisava encontrar a brecha certa. Respirei fundo e forcei mais algumas lágrimas.
— Eu juro, vocês estão interpretando tudo errado! — Minha voz saiu embargada. — Thiago era um louco, um psicopata! Ele me usou! Ele fez tudo isso e agora vocês querem jogar a culpa em mim?
O policial mais jovem riu, balançando a cabeça.
— Interessante. Mas vamos ver se essa versão, se mantem, depois disso.
Ele pegou um controle remoto e apertou um botão. A TV na parede ligou, e a imagem de um homem apareceu. O segurança do condomínio. Meu estômago afundou.
Ele estava sentado na mesma sala em que eu estava, mas em um outro momento. Algemado, olhar baixo, e uma câmera gravando cada palavra.
— Eu … eu fiz o que a madame pediu, a dona Guilhermina. — Ele confessava, a voz trêmula. — Ela me pagou para desativar as câmeras e deixar ela entrar sem registro. Ela e o seu Thiago.
Tentei disfarçar meu pânico, mas o policial mais velho me encarava com um sorriso satisfeito.
— Esse homem está mentindo! — Eu insisti. — Ele deve ter sido coagido!
O policial mais jovem nem piscou.
— Certo. E esse vídeo aqui?
Ele mudou a gravação. Agora era uma filmagem em um shopping. Eu aparecia na tela, sentada ao lado de Thiago. O segurança do condomínio estava na nossa frente. Dava para ver claramente quando Thiago entregava um envelope para ele.
— Isso não prova nada! — protestei, desesperada.
O policial mais velho ergueu uma sobrancelha.
— Não? Vamos continuar.
A tela mudou para outra filmagem. No mesmo estacionamento subterrâneo. Meu coração disparou. O carro estava ali. O maldito carro. O veículo alugado, com a placa clonada para parecer com o de Miguel.
Dava para me ver ao lado de Thiago, apontando para o carro enquanto ele falava com um homem de boné. Depois, Thiago entregava mais um envelope.
— O carro que usaram para incriminar Miguel. — O policial mais jovem bateu na mesa. — Manipulado, plantado, pronto para ferrar a vida dele.
— Eu não sabia disso! — Tentei me justificar, desesperada. — Isso era coisa do Thiago!
— Jura? — O policial mais velho apertou outro botão.
A tela mudou de novo.
Dessa vez, o cenário era um restaurante sofisticado. Eu estava sentada com Thiago e uma mulher de cabelo preso em um coque. Meu sangue gelou. A assessora do tribunal.
O policial puxou o histórico financeiro do Thiago, com a transferência feita para ela.
— Aqui temos sua tentativa e do Thiago de comprar sentenças judiciais para te inocentar e devolver a farmácia — o policial mais velho explicou. — Só que … deu ruim.
Meu corpo tremia. Eles tinham tudo. Cada passo meu, registrado.
Respirei fundo, tentando me recompor. Ainda havia um jeito de sair daquilo.
— Olha … — Minha voz saiu mais controlada. — ... Eu admito que fiz algumas escolhas ruins. Que confiei em pessoas erradas. Mas eu nunca quis matar ninguém. Eu só queria justiça! Miguel me humilhou, me destruiu! Ele acabou com tudo o que eu tinha! Vocês realmente acham que eu não tinha o direito de reagir?
Os dois policiais me encararam. O mais velho apenas sorriu e disse:
— Obrigado, dona Guilhermina. Você acabou de confessar.
Continua …
Texto: Lukinha
Revisão e consultoria: