Eu estava no meio de uma floresta com roupas banhadas a sangue. Ao longo, um garota corria por entre as árvores e eu a seguia desesperado. Vozes ecoavam por ali me deixando atordoado, e um cheiro de madeira queimando avançava pelo ar. Nada parecia real, era como se fosse um sonho de um sonho... Eu cheguei a uma queda d'água e por pouco não cai. Flutuando nas águas estava Marinho já sem vida, com sua barriga completamente aberta. Não havia sinal da criança ali. De repente, várias pessoas começaram a me cercar e por instinto tentei me defender deles, nas era inútil pois todos eram feitos de sombra. Tudo ao meu redor era fogo e eu estava desesperado, quando em um gesto muito rápido uma menina me ataca com uma faca fazendo eu cair sobre o corpo de Marinho, que me abraça com toda sua força e me arrasta para o fundo daquele lago. Era meu fim e tudo o que eu ouvia era um barulho de sinos ao fundo depois do absoluto silêncio.
O despertador soava pelo quarto enquanto eu tentava desligá-lo depois de acordar quase gritando. Foi tudo um sonho! Por um segundo pensei que tudo aquilo estava acontecendo, mas não. Tudo não passou de um sonho. Eu imaginei que seria assim durante alguns dias devido a essa carga de estresse e excesso de trabalho. Tratei de afastar esse pensamentos quando lembrei onde e com quem eu estava. Luciano sequer se mexeu em meio ao barulho, ele parecia em paz e eu só consegui dar beijos na sua cabeça enquanto ele despertava lentamente. Apesar de admirar sua coragem, não gostaria de vê-lo morrer como eu já vi tantos outros que eram ou não importantes para mim em algum grau.
Eu também estava cansado, mas feliz pela noite que tive. Precisava me acostumar a dormir abraçado com alguém depois de tantos anos. Em um determinado momento ele tentou levantar, mas beijei seu pescoço e ele voltou para a posição inicial. O homem sorria divertido. Ele me beijou tranquilo antes de levantar de fato e começar a mexer em alguns envelopes na sua mesa de cabeceira, gostei muito de sentir seu hálito logo pela manhã, era realmente muito bom. Ainda estava escuro, mas precisávamos trabalhar logo cedo. A chuva lá fora agora era apenas uma garoa fina, e apesar do frio dentro de casa tudo era calor.
Quando já estava bastante desperto, ele olhava para mim, agora um pouco mais sério, falando:
_ Lembra que você perguntou se existem elementos comuns no ambiente em que encontramos os corpos? Então, a paisagem aqui se repete e pode ser só coincidência, mas as vítimas são sempre colocadas aos pés dessa árvore. – Me mostrou as fotografias em um envelope de papel, que estava na sua mesa de cabeceira entre alguns outros. Comecei a analisar foto por foto, tanto as atuais como as do crime na década de oitenta.
A paisagem da floresta se repetia continuamente e poderia ser só o acaso, mas mesmo assim achei curioso e queria verificar. Perguntei qual era a espécie e se ela possuía alguma utilidade específica para alguma população, ele só respondeu que geralmente era usada para a extração de madeira. O que se sabia era que a espécie era nativa, e que sua exploração era outra atividade econômica comum na região.
Eu o ajudei no banho. Acabamos por tomar banho juntos para poupar tempo, já que eu teria que fazer as duas atividades de toda forma. Mesmo mancando e sentindo dor ele fez a maior parte das coisas sozinho, mais por pura teimosia do que por necessidade. Nosso café da manhã foi tranquilo, acabamos não falando do que aconteceu ontem, mas não havia um clima estranho nisso. Pelo contrário, tudo parecia bem e ele me fazia algum carinho as vezes de forma muito natural, sem afobação ou receios de qualquer forma.
Existia uma espontaneidade entre nós que parecia sempre estar ali, algo que eu gostava muito. Mesmo não expondo minha sexualidade para o mundo, eu já não sentia mais necessidade de me submeter a certas coisas. Ainda vivi algumas experiências por puro vício ou carência, mas esse tipo de relação já não me agradava em nada. Tive sorte de viver aquilo nessa espontaneidade e sem medos os receios de ambas as partes. Estava começando a ficar claro quando saímos e se eu soubesse o quão infernal seria esse dia eu teria ficado na cama.
***
Durante o percurso do hospital, ele não parava de dar ordens por meio das ligações. Até o momento três pontos de apoio dentro da mina foram analisados mas sem sinal de serem usados na prática dos crimes, mas existiam outros que precisavam dessa atenção.
Quando estávamos próximos ao nosso destino, notamos a presença de policias ali. Além dos civis, algumas pessoas da mídia estavam presentes. Ignoramos os repórteres, mas cumprimentamos alguns moradores da cidade e profissionais da saúde do hospital. Dentro do ambiente, as vítimas estavam em uma ala isolada. Ainda não poderíamos coletar os depoimentos, as meninas pois estavam em choque. Houve uma tentativa de falar com cada uma delas, mas sem sucesso. Seguimos então com nossos outros afazeres.
Antes disso, fiz Marinho ser avaliado novamente, em que se refez alguns pontos no braço e ficou novamente na tipóia. Dessa vez, ele seguiu as recomendações médicas, sabendo que eu iria encrencar caso não o fizesse. Foi então que voltamos a delegacia.
Nesse ponto, buscamos organizar toda a informação e repassar para a equipe. Mesmo com semblante de dor algumas vezes, ele manteve-se firme. Eu só o apoiava com palavras as vezes, no momento de trabalho nossa dinâmica era estritamente profissional. Precisávamos interrogar os dois suspeitos da comunidade pesqueira, bem como nos aprofundar na situação do suspeito que acabou falecendo na sela, já que aparentemente ele estava algumas horas antes do ocorrido. Ainda tinha o fato da desconfiança quanto a algum agente não ser confiável e vazar algumas informações chaves para uma rede de apoio, porque a esse altura ninguém acredita mais que isso era trabalho de uma ou duas pessoas. Em meio a essas incertezas o clima na cidade ficava cada vez pior, com moradores locais contra a comunidade pesqueira e suas tradições e contra os trabalhos da mineradora, respectivamente.
Antes dessas questões, algo mais básico demandava nossa atenção. Já com o grupo reunido na sala de reuniões tratei de falar:
_ Antes de convocar essa reunião eu solicitei mais agentes para as buscas dado a extensão do território. Até o meio dia uma parte dos homens ja estará aqui. Agora precisamos de um plano de prioridade para as regiões que serão analisadas. Podemos trabalhar com a hipótese de mudança de localidade das vítimas pelo sequestrador, mas por hora permaneceremos com a ação nas minas. – Expliquei, enquanto todos me olhavam com atenção, continuando:
_ Equipes três e quatro como está o andamento do mapeamento nos túneis que foram descobertos? – Perguntei me dirigindo as agentes ali presentes, que me explicaram em seguida que o rastro foi encerrado em uma saída a leste, rumo a represa da cidade. Além disso, indicaram um acesso a madeireira. Assim, deu-se início as buscas nessa região. Marinho parecia incomodado com alguma coisa para além da demanda profissional.
_ Quero que a equipe de inteligência verifique se existem possíveis motivações para as vítimas serem colocadas sobre as raízes do Neve-da-montanha. Acreditamos que o padrão se repete para todos os casos. – Disse Marinho se dirigindo aos especialistas que agora anotavam o pedido em cadernetas, saindo da sala em seguida.
Apesar de forte, sabia que Marinho estava debilitado. Sugeri que ele fizesse outra atividade, mas não me deu ouvidos. Já na sala que estávamos dividindo, pedi que ele fizesse algum trabalho na inteligência ou visitasse o escritório das minas e da madeireira. Ele parecia não me ouvir, enfatizando que iria junto a equipe nas busca em campo e que não queria discutir aquilo.
As passagens nas minas eram estreitas e escorregadias em alguns trechos, o que com toda certeza viria a dificultar sua locomoção lá. Ele tomou mais dois analgésicos e disse que se sentia bem, e que iria. Ele tomava um analgésico fortíssimo recomendo para ser tomado de 24/24 horas. Antes de sairmos ele já havia tomado um, mesmo tendo tomado outro antes de dormir após fodermos. Eu ainda pedi com paciência para ele fazer outra atividade na tentativa de aconselhá-lo da melhor forma possível. Ele fingiu não me ouvir e um policial entra na sala rapidamente com várias amostras de solo em duas caixas, explicando que a perícia feita por eles na tentativa de encontrar alguma evidência havia detectado a contaminação do solo em diversas regiões nas colinas. Imediatamente pensei nas atividades de mineração da companhia que explorava a região.
Tudo em torno daquela família era nebuloso. Eles detinham um capital financeiro gigante para aquela região, mas já não moravam ali. Aliás, poucos eram os que conheciam os verdadeiros donos, ainda sabíamos que um dos filhos cuidava dos negócios da família presencialmente algumas vezes por mês no escritório da sede. Sabendo agora desde caso de contaminação, era muito provável que os responsáveis diretos pela acontecimento pouco se importavam com tudo aqui. Era ainda mais triste por saber que o conflito entre a comunidade pesqueira e os civis só aumentava.
Marinho pegou a caixa mais pesada e foi até a sala de provas guardar com outras evidências para serem integradas a um processo de crime ambiental. Uma advogada ativista era responsável pelo caso, e aparentemente a algum tempo ela vinha promovendo a denúncia ao lado da comunidade tradicional. O delegado perdeu a força do braço e deixou a caixa cair assim que passou pela porta, seu braço agora sangrava parecendo que os pontos estavam sendo mais uma vez arrebentados pela falta de cuidado dele.
Além disso, roupas infantis foram encontradas em um novo rastro em uma região de difícil acesso no raio da saída dos túneis de onde as garotas foram encontradas, o que fez Marinho querer correr para lá imediatamente. Pedi cautela nisso, pois poderia ser o caso de criarem postas falsas para seguirmos e o que levaria a ignorar outras rotas realmente importantes.
Não me importei com as amostras, bastava que nossos profissionais atestarem os resultados que haveria a fé pública sobre a informação e estava tudo certo. O que me irritou profundamente foi o fato dele não se cuidar minimamente diante de tudo o que estava acontecendo. Ele estava literalmente arrebentado e acredito que só pararia quando estivesse acamado. Era louvável sim, mas não custava facilitar sua recuperação. Já sem muita paciência eu o repreendi, explicando meu ponto e dizendo que ele deveria dar um tempo e se resguardar fazendo outra atividade de igual importância sem condenar sua integridade física. Ele me olhava com raiva, o que só fez aumentar minha irritação pois eu não estava falando nada de errado.
_ Essa investigação ainda é minha. Seu trabalho tem sido de grande ajuda, mas eu decido onde e como vou agir. – Falou, continuando em seguida – Eu irei agir em campo, não vou ficar cercado de papeis enquanto vocês da capital tomam o meu crédito em todos os avanços que fiz até aqui. Você sabe que isso é o que mais acontece. – Concluiu irado, nas abrandando mais um pouco a sua voz e chegando mais perto de mim. Ele continua a falar:
_ Você sabe o quanto esse caso é importante pra mim, eu te disse, porra. Se tu não entende o porque de eu fazer tudo isso significa que tu é um egoísta de merda, e não tem espaço na minha casa pra gente assim. – Disse saindo da sala enquanto um policial muito jovem juntava as amostras do chão, tentando entender o que foi tudo aquilo.
Eu queria esmurrá-lo naquele momento. Pela primeira vez na vida eu estava me colocando de uma forma para alguém que eu me orgulhava, sem que eu pensasse em mim primeiro. Não vou ser hipócrita em dizer que os furtos de protagonismo não existem, pelo contrário. Eu inclusive já agi de forma desonesta com o crédito de algumas pessoas, mas entendo que isso foi em um passado remoto e hoje sou mais que qualificado para lidar com casos assim. Me entristeceu ver que ele não percebeu o outro lado da coisa: um eu preocupado com ele. Tratei também de voltar a mim e ser o profissional que eu era. Liguei para meu supervisor e o pressionei para me dar a titularidade compartilhado da investigação, alegando que os vazamentos de informação estavam prejudicando ainda mais o decorrer dela. Uma ligação mais imediata foi feita a Marinho, que agora parecia ainda mais furioso comigo me olhando no final daquele corredor. Eu só olhei para ele imóvel sem pouca reação. Estava decidido, eu iria protegê-lo a qualquer custo mesmo que isso fosse contra a vontade dele.
***
Segui rumo as minas em outro veículo com alguns policiais que estavam ansiosos para começarem os trabalhos. Passei boa parte da manhã e começo da tarde nas fontes e pontos de apoio. Depois de muito trabalho encontrei alguns respingos de sangue em um deles, mas não era significativo já que ara comum que os trabalhadores se machucassem.
Vi Marinho nesse meio tempo novamente com a tipóia. Ele falava com um policial que lhe entregou um relatório da inteligência sobre algumas tensões entre as comunidades locais e mineradora e a madeireira. Além de outras informações que achei importantes, mas não falou muito comigo. Eu apenas disso que dada a divisão de titularidade do caso acha importante ele trabalhar a documentação necessária para avançarmos com as buscas até que estivesse minimamente recuperado, depois disso ele assumiria o campo e eu ficaria em seu lugar. Não queria falar nada irônico ou do gênero, eu estava cansado e só queria que ele percebesse que eu estava preocupado com ele.
A entrega dos licenciamentos de exploração das atividades das minas foi entregue de forma muito técnica, mal me olhando nos olhos. Chegava a ser revoltante saber que ele estava agindo assim comigo depois da noite incrível que tivemos. Não nos vimos mais depois disso. Acabei pensando que o melhor a se fazer mesmo seria sair de sua casa. Eu já não tinha idade para lidar com alguém com esse tipo de comportamento, depois dos trinta a gente fica assim.
As buscas a leste estavam intensas. Logo mais eu precisaria também investigar nos espaços da madeira. Cães farejadores encontraram as roupas há 8 km de lá, o que deixou a equipe ainda mais ansiosa. Sai da mina e senti o vento gelado da região no meu rosto, dei graças a Deus por isso. As minas eram abafadas e essa sensação era muito desconfortável, passei muitas horas lá. Passavam das 14h quando uma viatura me levou para o restaurante. Ainda pensei em ligar para Marinho, mas desisti. Aos poucos eu voltava a mim entendendo que havia serviço a ser feito.
Me sentei em uma mesa com vista para a rua, que nessas horas era muito tranquila. O céu estava nublado, mas não chovia, as vezes tímidos raios de sol apareciam, mas não fazia calor ali. Não consegui ser tão forte assim e liguei para Marinho, que não me atendeu. Queria saber se ele havia almoçado ou se queria que eu fizesse seu pedido e o aguardasse. Quando minha refeição chegou, noto o homem entrando pela porta. Ele estava sujo de lama e muito suado, acenei com a mão e por um momento acho que ele cogitou não sentar comigo. Como uma mula, ele foi para o trabalho de campo mesmo assim.
Ele sentou-se a minha frente dando um longo suspiro de alívio. Perguntei se ele estava bem, o mesmo adiantou-se em falar que estava ótimo. Sabia que era mentira dado ao seu semblante de dor. Vi um filete se sangue seco que escorria pelo seu braço, o encarando de forma séria em seguida. Pelo menos ele estava com a tipóia e o local estava coberto por um antisséptico.
Ele começou a descrever todo o trabalho de buscas me atualizando sobre alguns elementos que poderiam ser de interesse para o caso como um todo. O delegado pediu apenas um café, mas acabei pedindo uma refeição completa pra ele o obrigando a comer demostrando minha pouca paciência para ele naquele momento. Ele acabou comendo tudo o que estava no prato, mas seguia dizendo que estava perdendo tempo ali. Fizemos o resto da nossa refeição em silêncio.
Voltamos para a delegacia e organizamos algumas coisas na nossa sala. Pegamos documentos, demos instruções e fomos para a casa dele. Precisaríamos visitar uma comunidade de pescadores e o escritório da mina. Iríamos falar com um dos responsáveis diretos das atividades. Um sobrinho do dono que visitava a empresa toda quarta-feira. Como já sabia, os donos moravam em outro país, e pelo que sei não costumavam visitar a propriedade.
Já na casa dele, comei a ler alguns documentos enquanto Marinho estava tomando um banho. Ouvi alguns gemidos de dor vindo dele, mas ignorei. Só ajudaria se pedisse. A teimosia de Luciano era algo muito irritante, tornando a convivência com ele quase insuportável. Ele saiu do banho apenas de toalha e ficou na cozinha passando um café, as vezes ele me olhava, mas não falava comigo. Tomei um banho rápido e já sai vestido do quarto, encontrei ele lendo alguns papeis e tomando seu café. Fui em direção a geladeira e peguei um pequeno embrulhado de lá e servi duas porções de pudim para nós, eu comprei pensando que provavelmente ele gostaria. Ele me olhou surpreso e sorriu com o gesto, em seu olhar havia certa tristeza. Ele não percebeu que eu havia comprado a sobremesa para nós enquanto fui atender uma ligação fora da sala. Eu iria deixar para mais tarde, mas pensei em apaziguar um pouco as coisas. Ele estava sentado apoiado no balcão que separava a sala da cozinha e eu o abracei por trás, beijando sua nuca e pescoço. Ele se encostou completamente no meu corpo e ficou em silêncio descansando seu corpo no meu.
_ Não vou me desculpar. – Disse ele firme, mas com calma na voz. Eu o abracei mais forte nessa hora, nas sem machucá-lo. Eu fechava os olhos sugando seu cheiro implorando que aquele momento durasse para sempre.
_ Eu ainda tô morrendo de medo de ter perder, imploro que não faça isso comigo. Se não por mim, por tua filha. Se cuida de verdade, por favor – Falei com a voz embargada, já não raciocinando direito sobre a chantagem emocional em situação de desespero que fiz. Dessa vez ele se virou para mim bem abraçando muito terno.
_ Você não entende o quanto resolver o caso é importante pra mim. Não é só a realização pessoal, é o cansaço também. – Explicou beijando meu rosto. – Eu estou cansado e não quero que mais ninguém morra, então só me ajuda e confia em mim. Prometo que não vou morrer e nem sequer um arranhão vai acontecer comigo daqui pra frente. Mas você tem que confiar em mim. – Concluiu o delegado, me deixando completamente entregue e preocupado.
Ele percebeu que possuía certa culpa em ter deixado o clima daquela forma e agiu de forma mais divertida agora, me contando causos de quando era um estagiário ali. Comemos o pudim em um clima mais leve, mesmo eu sabendo que ele fazia aquilo como forma de me tapear ou tentar amenizar o estrago. Uma parte era vergonha e culpa também por ter agido da forma que agiu, mas arrependimento não houve. Ele saiu dali rápido dizendo que precisávamos correr para resolver as as visitas.
Primeiro íamos a comunidade pesqueira, depois iríamos ao escritório da mina. O caminho até os grandes rios que cercavam a região acompanhado por grandes rochedos de pedra. Apesar de perigoso, o caminho era muito bonito. Olhava admirado a paisagem enquanto ele permanecia em silêncio, dirigindo concentrado. Em determinado momento colocou minha mão sobre sua coxa. Sorri brevemente com aquele gesto, e segurei sua mão.
Vimos ao longe uma canoa com dois homens colocando uma rede, era um lago gigantesco que se extendida por muitos quilômetros entre a mata fechada. No local, mulheres e homens desempenhavam suas atividades, enquanto crianças brincavam.
Fomos atendidos por uma mulher, que nos deu algumas informações sobre o território e as as atividades da mina.
Marinho parecia gostar dali, foi bem recebido pela maioria. O fato de dois deles estarem sob custódia deixava o clima tenso acerca do encontro, mas isso era compreensível. Conversamos com um casal que provavelmente eram os líderes do grupo, nos explicaram detalhadamente as contribuições ao caso e explicaram que estavam dispostos a ajudar e que as prisões não faziam sentido. Vi verdade naquelas pessoas simples, mas era cedo para qualquer julgamento. Fomos embora assim que o céu começou a fechar.
***
O escritório das atividades da Companhia Castanho atendia o funcionamento da madeireira, mineradora e um locadora de veículos classe E (caminhões, tratores e afins). Além disso, eles possuíam diversos pontos comerciais alugados no local, bem como possuíam representação política na região. Isso obviamente influenciava toda a estrutura do poder daquela região, de forma que as doações feitas pelo grupo aos serviços locais sempre os colocavam a frente de alguma coisa, como era o caso de cinco viaturas novas doadas por eles ao corpo policial assim que as investigações começaram. Luciano estava tenso e fiquei muito curioso para saber o motivo.
No escritório, vimos um ambiente muito iluminado, possuindo janelas de vidro que iam do chão ao teto. O lugar era muito sofisticado, e parecia muito caro. Tive a impressão de que teria que pagar para respirar lá dentro. Um sujeito de terno nos recebeu, algo nele me dizia que não se tratava de uma pessoa confiável. Conversamos de forma cordial, com ele sempre enfatizando que o grupo contribuía com as investigações e que as buscas poderiam sim avançar pelo perímetro da madeireira, mas pediu que isso não fosse realizado com o auxílio de alguns funcionários dali para evitar algum acidente. Eu concordei com ele.
Algum tempo se passou e ele me direcionou a sua secretária, que me aguardava com alguns documentos de me interesse. Nesse momento, me afastei de ambos e fui até ela que me tratou muito bem e elogiou dois trabalhos que participei como investigador. Ela parecia um pouco eufórica e por um momento achei aquilo engraçado, uma outra funcionária de lá apareceu e pediu para tirar fotos comigo e a secretária acabou pedindo também, no qual eu aceitei sem problemas. Marinho conversava com o sujeito, mas sempre me olhando de canto de olho. As vezes percebia que eles falavam de forma mais intensa, mas até então tudo bem.
Após pedir que eu desse um autógrafo em um livro que escrevi dois capítulos, Marinho entrou na sala do homem, e eu fiquei do lado de fora aguardando. Aproveitei e pedi água, elas me serviram junto a café, doces e algumas outras coisas. Acabei comendo e fiquei revisando aquela documentação na tentativa de encontrar alguma coisa que fosse útil. Comecei a achar que eles estavam demorando mais do que deveriam lá dentro e isso me incomodou muito. Estava muito contrariado e pensando no que estava acontecendo, eu não sou idiota e naquela altura eu já imaginava que algo de pessoalmente estava sendo resolvido ali.
Alguns minutos se passaram, sem retorno. Eu já estava ficando sem paciência e a secretária parecia manter-se ocupada fazendo seu trabalho. Em determinado momento escuto um barulho de alguma coisa quebrando lá dentro, o que chamou a minha atenção e a da mulher. Levantei imediatamente e fui para mais próximo da porta, ouvindo ruídos e barulhos diversos no ambiente.
Entrei de uma vez, num misto de raiva e curiosidade. Marinho estava no chão com uma mão no pescoço e outra dando socos na barriga do homem, enquanto ele o socava no rosto. Na sala, algumas coisas estavam quebradas, mostrando que o conflito estava acontecendo a algum tempo. O isolamento acústico da sala era realmente bom, constatei isso imediatamente.
Marinho estava com seu rosto ensaguentado, e parecia tentar tirar o homem de cima dele. Eu corri em direção aos dois, dando um chute nas costelas do sujeito que estava o agredindo que voou para o outro lado da sala. Fui para cima dele e dei vários socos em seu rosto, até que estivesse desacordado. Fiz isso sem pensar muito, tudo vendo como meu delegado estava que nesse caso era ainda mais arrebentado que nunca. Como eu gostaria de ver esse homem sem apanhar, meu Deus.
Marinho levantou cambaleando, mostrando o quão péssimo estava. Peguei ele pelo braço e sai daquele lugar, deixando pra trás uma secretária que parecia apaixonada por mim e um homem desacordado com uma surra que o dei. Tomara que eu não tenha o mato pelo meu acesso de fúria. Levei o delegado para o hospital e lá ele foi medicado devidamente, os pontos do braço estavam arrebentados e ele estava com outros hematomas espalhados no corpo. Uma enfermeira idosa e firme passou a dar um sermão imenso em Luciano, do que eu fiz parte e endossei. Estava com a paciência esgotada e só queria tomar um banho e comer alguma coisa. Ele me olhava com uma expressão indefinida, e sinceramente eu não ligava. Decidi não falar nada, mas provavelmente nem precisava devido a minha cara. Eu precisava saber exatamente o que houve.
Para completar deixei todos os documentos no escritório e precisava pegá-los muito em breve, pois tinha que analisar algumas possibilidades de falsificação. Como eu não sou idiota e queria me poupar do desgaste mandei Fred pegá-los para mim, ele era o jovem polícia que vez ou outra fazia alguma coisa por nós. Gente boa... Sempre solícito e buscando aprender alguma coisa seja do ponto de vista prático ou burocrático.
Já dirigindo para a casa dele, ele fez algumas ligações sobre o andamento das buscas. Dessa vez pude ver que ele estava mal de verdade e eu disse que o levaria para casa e que ficaria dois dias de repouso enquanto eu conduziria a investigação em campo, com ele auxiliando as equipes por telefone. Ele discordou, mas o ameacei com uma denúncia a corregedoria. Ele disse que estava blefando, mas me mantive muito sério no que eu faria caso ele não fizesse o que eu disse. Foi a gota d'água quando o homem falou que não confiava em mim, e que era pra eu cuidar da minha vida. Queria entender a briga tão violenta que vi a algum tempo atrás, mas deixei de lado e me preocupei em não batê-lo eu mesmo.
***
Eu estava muito irritado com ele. A última coisa que se passava em minha mente era de tomar seu crédito ou de excluí-lo das atividades da investigação. O que fiz foi por puro cuidado. Tudo que eu queria era que ele ficasse bem. Ele estava irredutível, explicando que não poderia se dar ao luxo de ficar na delegacia ou em casa enquanto as jovens poderiam ser mortas a qualquer momento. Eu buscava explicar que ele poderia ser igualmente útil no trabalho documental se nós desse a informação correta.
No geral, eu não queria mais discutir. Ele estava arrebentado e eu estava furioso. Já em casa, ele se apoiou em mim e eu o levei até o sofá uma vez que Marinho mal conseguia andar. Com toda certeza ele estava com muita dor, mas não disse nada sobre isso. Eu olhei para ele e exigi que desse explicações, do contrário eu iria embora dali e o deixaria sozinho.
Em um ato de fúria, ele levantou-se do sofá e foi até o banheiro, dizendo que quando terminasse não queria me ver em sua casa. Eu respirei fundo para não esganá-lo ali mesmo. Uma voz interior só me mandava ter paciência e pensar na investigação, essa era a única demanda que me faria gastar energia. Eu ainda estava cansado desde que cheguei. Ele sabia que isso seria prejudicial para todos. Eu ouvia ao fundo ele resmungar no banho e peguei meu celular para ligar para um táxi me buscar e me deixar na casa que ele me mostrou antes. Eu estava disposto a me isolar naquele momento em função de alcançar uma melhor qualidade dos resultados no trabalho.
Mas não o fiz. Eu passei minha vida toda repetindo as mesmas ações, só que de formas diferentes. Nenhuma delas me colocou em nenhum lugar novo. Decidi que dessa vez faria diferente. Fui para a cozinha e adiantei um pouco da refeição, deixando alguns preparos para o final.
Ele apareceu na sala apenas de toalha e me viu fazendo aquelas coisas com bastante calma, mesmo eu estando fervendo por dentro. Com um tom de deboche ele perguntou o que ainda estava fazendo ali, se eu era surdo ou algo assim. Eu não respondi, continuei em silêncio fazendo nosso jantar. Ele então se dirige bufando para o banheiro novamente. Eu ignorei todo o seu chilique e o mandei calar a boca e ir enchendo a banheira, que iria em seguida. Ouvi apenas um sonoro "vai se foder!". No final das contas eu ri, não sabia de onde surgia aquela calma em mim. Deve ser o desespero batendo na porta.
Depois de um tempo, quando percebo que ele estava em silêncio acendo a lareira e coloco a estação de country que ele gosta para tocar. A essas horas a chuva caia com força e eu estava detonado física e mentalmente. Honestamente, tudo o que eu queria era me concentrar na busca subindo a montanha que poderia render bons frutos e descansar um pouco aquela noite, bem como cuidar da mula pela qual eu estava apaixonado.
Tirei minha roupa e fui em direção a ele, sua expressão de raiva era muito evidente. O homem estava na banheira, com água até o peito. Ele não me disse nada, permaneceu com os olhos em mim. Eu coloquei alguns sais de banho na água e achei muito agradável a temperatura. Havia uma janela um pouco perto de onde estávamos que mostrava a força da chuva lá fora, junto a galhos batendo nela e barulhos de vendo percorrendo os arredores das árvore.
Eu o mandei se afastar um pouco, o que ele fez relutante. Ameaçou sair, mas segurei ele pela cintura e fiz com que apoiasse suas costas no meu peito, não fazendo esforço nenhum pra me repelir. É o típico caso da pessoa que manda o outro embora, mas não faz nada real para o afastamento. Eu o abracei com cuidado e ficamos ali um tempo, logo mais o clima já estava diferente. Ele se apoiava sem limitações em mim e eu gostava da sensação do seu corpo no meu.
Fui fazendo carinho em sua barriga e pernas, e ele foi aos poucos descansando seu corpo. Em determinado momento ele estava com a cabeça no meu ombro, olhando para frente sério. Eu comecei a beijar seu rosto, fazendo uma massagem suave no seu couro cabeludo. Ele me pediu desculpas e disse que só estava cansado. Em determinado momento seus braços já estava envoltos nos meus. Faziam anos que eu não sentia nada, e agora era como se um raio me atravessasse toda vez algo em relação a ele surge. Só quem já sentiu sabe o quanto é louco essa sensação de ver a pessoa que você ama perturbada.
Foi então que eu comecei a falar:
_ Meu pai perdeu a fortuna da minha mãe no vício em jogos. Chegamos ao ponto de perder nossa única casa, e fomos morar de favor com uma tia que não gostava da gente. Eu era criança quando nos mudamos, e desde então não vi mais meu pai. – Ele nada dizia, só me escutava.
_ Minha mãe se foi muito antes de eu terminar a faculdade, e se não fosse o meu tio eu não estaria aqui hoje. Se dependesse da minha tia eu seria um serviçal na mansão deles. Cresci ouvindo todo o tipo de coisa ruim, não me sentindo pertencente a um lugar nem amado. Eu tive um relacionamento dos 22 aos 29 com uma pessoa que não me respeitava, e depois disso só barcas furadas. Para ser honesto eu nem me importo tanto assim com o amor. – Ele permanecia em silêncio.
_ Minha família se resume a duas primas filhas dela, e ao meu tio. Também tenho dois bons amigos da época de faculdade. Fora isso, sou completamente sozinho no mundo e estou acostumado a isso. Desde cedo o trabalho me preencheu de uma forma que nenhuma outra relação o fez, e passei a ter muito êxito nele. Mesmo assim, não sinto como se fosse o lado mais importante de existir. Eu já vi muita coisa ruim trabalhando, mortes de todos os tipos, pessoas ruins de todos os tipos. Eu nunca tive medo. – Ele segura minha mão nessa hora.
_ Quando você mergulhou lá na mina eu tive medo. Fiquei em choque, porque não sabia o que era sentir isso. Eu tive medo de te ver morto, mesmo te conhecendo tão pouco, eu fiquei apavorado. – Continuo:
_ Quando eu te vi lá embaixo eu me desesperei, só queria te ver salvo e bem. O mesmo se mantém agora, onde só quero ver você recuperado. Sei que isso está acontecendo mais rápido do que o comum, mas gosto de você. E se gosto me preocupo. – Eu já estava perdido nesses sentimentos, então só concluiu:
_ Não é minha intenção te ver preso na burocracia ou tomar teu crédito. Só quero que sejamos uma equipe e que no final todos estejamos vivos e bem. Estamos avançando no caso, e sei que iremos conseguir. Mas você precisa aceitar ser cuidado também. – Virei seu rosto para mim, ele mostrava estar pensativo e um pouco envergonhado. Eu beijei seus lábios em agradecimento dele estar bem e não disse mais nada depois disso, só pedi para ele se cuidar de verdade porque eu estava gostando dele.
Ele me beijou de volta, me abraçando com toda sua força. Sabia que a forma com a qual ele agia estava mais relacionada a impulso e estresse pelo momento, mas isso machucava igual. Eu chorei. As vezes quando é tarde da noite eu choro. Chorei em silêncio, dando somente algumas fungadas no ato. Ele parecia preocupado agora. Seus olhos estavam marejados e provavelmente ele derramou algumas lágrimas também. Não nos soltamos dali. Eu beijei sua testa e pedi outra vez para ele se cuidar e ficar bem, que não queria perdê-lo de forma nenhuma. Foi a primeira vez na vida que fiz isso, mostrar vulnerabilidade para alguém daquela forma, mostrar quem sou de verdade. Passei a vida performando minhas melhores partes em relacionamento, mas ali estava eu, nú. Era eu quem estava ali, sem me esconder em alguém que eu não era e que não queria ser.
Ele não dizia uma palavra se quer, mas seus olhos falavam por ele. Percebi um desespero escancarado quando ameacei levantar. Ele de prontidão de agarrou e disse que não era pra ir, pediu para que eu ficasse com ele e que disse aquelas coisas na hora da raiva. Eu ri nessa hora, explicando que ficaria, mas que ele precisava me ajudar a querer ficar. Acima de tudo, precisava se cuidar e permitir ser cuidado, que ali não era uma competição.
Pedi que fossemos cuidar em nossas atividades e dormir em seguida, ambos estávamos cansados. Saímos com cuidado da banheira, nos secamos e refiz seus curativos. Ele estava de cabeça baixa na maior parte do tempo e nada falou. Perguntei se queria ajuda até o sofá, mas ele disse que estava bem. Enquanto eu terminava nosso jantar, ele organizou alguns documentos e fez ligações. Encerrou falando com sua filha durante um tempo, foi o único momento que sua voz ficou mais amena e feliz.
Quando ele colocou o celular para carregar, veio até mim e ficou me abraçando por trás enquanto eu terminava nossas coisas. Depois disso jantamos, com um clima bastante agradável. Eu disse que ia lavar a louça, mas ele impediu tomando a frente nisso, nessa hora eu quem o abracei por trás beijando e cheirando sua nuca. Se ele não estivesse debilitado eu iria comer ele ali mesmo na bancada, maltratando muito seu rabo para ele aprender a me escutar.
No rádio, uma música cantada por uma mulher soava lenta e romântica. Fiquei pensando em quantos romances aquela canção já embalou ao longo no tempo. E no sofá eu o olhava terminar de lavar a louça do jantar. Ele me olhava enigmático, e quando acabou veio até mim extendendo a mão:
_ Dança comigo? – Perguntou me olhando nos olhos. Eu não sabia dançar, mesmo assim fui. Isso diz muito sobre mim e o que eu sinto por ele.
As suas mãos foram para os meus ombros, enquanto as minhas foram para a cintura dele. Estavamos bem próximos e eu podia sentir sua respiração. Apenas a luz da lareira iluminava o ambiente, e de forma lenta ele foi me conduzindo. Sorriu ao perceber que eu não tinha muito jeito para a coisa, mas que estava me esforçando. Senti ele me abraçar ainda mais, e seu rosto repousar em meu pescoço. Ele me beijou diversas vezes, com calma e carinho. Fiquei feliz em ver que as coisas agora estavam em outro rumo, por mais que soubesse que depois teríamos que lavar uma quantidade absurda de roupa suja.
A sensação do seu corpo no meu era divina. Eu sentia uma imensa alegria, já não estava mais me sentindo na terra. Era como se agora, eu pertencesse a outro mundo. Ele aproximou seu rosto do meu e me beijou, me deixando completamente derretido em seus braços. Demos um beijo demorado, que foi afastado por ele para olhar nos meus olhos e pedir desculpas outra vez, dessa vez com arrependimento genuíno. Sequei a lágrima que descia e o beijei novamente. Era linda a imagem da silhueta do seu rosto sendo iluminada pela lareira. Mesmo estando com o rosto esfolado, ainda era lindo.
Já estávamos na cama quando deitei com o rosto em seu peito e ele fazia um cafuné em mim. Eu estava quase dormindo e ele também. Eu só disse um boa noite e estava de olhos fechados, já quase dormindo também ele me diz:
_ Eu me permito ser amado. – Eu dormi com um sorriso no rosto, ciente de que fiz a coisa certa em ficar.