Três dias se passaram desde a grande revelação do seu Aroldo. A notícia tinha que recair sobre meus ombros? Sério! Tentei criar discursos para a mamãe, sabe, não queria dar a carta de qualquer jeito. Havia muito significado.
— Mãe, a senhora sabe que as pessoas devem ser livres, não é? — Treinava meu discurso, quando a Nadine entrou com uma plaquinha.
— Higor! Saiu o resultado do exame. — Ela anunciou cantarolando e mostrando uma plaquinha escrito "Venci o Covid-19".
Ah, essa foi uma das maneiras que os meus pais conseguiram contratar uma equipe hospitalar. Eu teria que fazer fotos e vídeos para as redes sociais da empresa responsável. Como dizia o meu avô, coloquei a máscara da alegria e fiz minha parte.
— Fica mais para a direita. — Pediu Nadine, enquanto fazia uma verdadeira sessão fotográfica comigo.
— Cara, Nadine. Você faz tudo, não é? É enfermeira, terapeuta, gamer, otaku e fotógrafa. Queria esses talentos. — Brinquei.
— Higor, fico tão feliz que você esteja curado. Claro, que faremos outros exames, mas você não é mais transmissor do vírus. Graças a Deus!
— Sim. Obrigado por tudo. — Agradeci a abraçando.
— E qual item da sua lista vai fazer primeiro? Vi vários círculos no André. — Ela comentou, enquanto guardava a placa em uma mochila.
— Não sei. Quero conversar com a mamãe primeiro. Mas, Nadine, tira uma dúvida. Por acaso, se eu quiser beijar alguém, assim, hipoteticamente falando, claro. Teria algum problema? — Lancei para ela.
— Pode beijar, Higor. — Ela respondeu rindo e desligando os aparelhos que estavam no meu quarto.
— Eu posso ir? — Questionei, antes de pegar a carta do vovô.
— Claro. Vai lá. Hoje a equipe vai retirar essa mini enfermaria do seu quarto. — Ela explicou abrindo a porta e saindo.
Liberdade. Após 14 dias de tensão, colocaria o meu pé para fora do quarto. Uma sensação libertadora. Nem tive muito tempo para refletir, o Quintino correu e me abraçou. O primeiro em dias, eu não sei o que aconteceu, mas comecei a chorar e o idiota também, os dois chorando no corredor.
— Por que estamos chorando? — Ele quis saber, ainda me abraçando.
— Eu te amo. Senti sua falta. Ah, e o vovô era bissexual. — Soltei de uma vez.
— O vovô era o quê? — o abraço de Quintino ficou mais forte, então, precisei me desvencilhar para não ser esmagado.
Mostrei a carta e o relicário para o Quintino. Tivemos reações parecidas, tirando os palavrões. Ele tem a boca muito suja para um adolescente de 15 anos. Nós entramos em um debate sobre contar ou não para as nossas mães. Segundo o meu primo, o melhor era deixar em segredo, afinal, a história mudaria a forma como nossa família enxergava o vovô.
Fui contra, óbvio, como o lado gay da relação, tentei justificar a vontade do seu Aroldo. Ele não queria mais a máscara, o desejo dele era ser livre, mesmo após sua morte. Chegamos em uma conclusão e o combinado foi entregar a carta.
— Fique sabendo que você é o responsável por tudo. — Comentou Quintino saindo do quarto.
— Ei, o vovô merece isso. Você teria vergonha de mim? — Perguntei, andando um pouco atrás dele.
— Claro que não, Higor. Mas, cara, é o vovô. Eu entendo o seu ponto de vista, mas vai lá. Entrega. Vamos acabar com isso.
Caramba, parecíamos aqueles jurados de programas gastronômicos. Eles andam até o competidor com o envelope que vai eliminar alguém. Cheguei na cozinha e levei um susto, o pessoal havia preparado uma festa de "boas vindas", ou melhor, superação.
A primeira que me abraçou foi a Rêh, a culpa é complicada, não é? Ela confirmou o arrependimento, postou um vídeo de retratação e abraçou a causa do Covid-19. Doou até dinheiro para os órgãos de saúde. O Lukas estava todo suado e, ainda assim, me parabenizou com um abraço.
— Estou tentando, juro. — Ele falou em meu ouvido, enquanto me abraçava.
— Eu sei. E vou te ajudar. — Falei o abraçando mais forte.
— Quanto amor fraternal. — Disparou meu pai, ao entrar carregando uma caixa de verduras e colocando em cima da mesa.
— Gente, cadê a mamãe? — Perguntei.
— Acho que no jardim. Ela disse que quer deixar a vista bonita para a Rosa. — Disse papai, separando algumas verduras da caixa.
Respirei fundo. Não sabia qual seria a abordagem que usaria para revelar o grande segredo do vovô. Encontrei mamãe regando algumas flores. Ela usava um top preto e sua calça da mesma cor, claro, que a viseira era rosa chiclete. Dona Helenna quase dei um grito ao me ver, jogou o regador e correu na minha direção.
— Filhote. Graças a Deus! — Ela berrou antes de me dar o abraço mais caloroso do universo. — Fiquei tão assustada. A ditadora da Nadine nos proibiu de te ver.
— Tudo bem, mãe. O importante é que o pior passou. Mãe, tenho algo para falar, mas não sei como começar...
— Oras, pelo início. Vamos nos sentar nas espreguiçadeiras. Aproveitar que o dia está gostoso. — Ela falou me cortando, pegando em minha mão e caminhando em direção a piscina.
Nossa, Doutora. Queria vomitar. Comecei a contar toda a história da caça ao tesouro, mas dessa vez, tive a total atenção da mamãe. Expliquei sobre as cartas deixadas pelo vovô. Contei da biblioteca secreta. Percebi que a Dona Hellena se emocionou, não imaginava que a caça ao tesouro tinha sido uma experiência tão profunda.
— Achamos a última dica, mãe. Acho melhor a senhora ler. — Sugeri entregando a carta para ela.
Os olhos dela ficaram vidrados na carta. Ela não esboçou nenhuma reação e, claro, acompanhei toda a leitura. Foram os 15 minutos mais assustadores da minha vida. Em seguida, mostrei o relicário com as fotos do seu Aroldo e Rodolfo. Por alguns minutos, a mamãe ficou em choque, mas não aguentou muito tempo e lágrimas escorreram.
Era um choro de pesar, o impacto foi tanto que ela nem se importou com a maquiagem sendo estregada pelas lágrimas. Mamãe assumiu que já sabia, havia encontrado cartas antigas e fotos, mas por medo e preconceito nunca comentou nada. Delicadamente, ela dobrou a carta e pediu para mostrar para a tia Ana, mãe do Quintino.
— Claro, mãe. Desculpa, sabe, por trazer essa notícia. Pensei bastante. — Expliquei pegando na mão dela.
— Filho, você fez a coisa certa. É complicado. Sempre lutei pelas coisas que quis e o papai sempre esteve ao meu lado. Não imagino o quanto ele sacrificou para ter nossa família. — Ela comentou, enquanto limpava as lágrimas.
— Só não quero que fique decepcionada com ele. O vovô fez uma escolha por amor. Mas, lembre que eram outros tempos. — Tentei ajudar.
— Higor. Quando você se assumiu fiquei com medo. Primeiro, por causa da imprensa. Você sabe que eles podem fazer um estrago, sei que não pediu por pais famosos, então, não sabia como reagiria, afinal, teve aquele incidente ao vivo. Depois, pensei na sua segurança, ser gay neste país é complicado. Mas, não pense, nem por um segundo, que fiquei com vergonha. Você é um jovem lindo, com um futuro brilhante pela frente. Ser gay não te diminui em nada.
As palavras me atingiram legal, Doutora. Abracei a mamãe em prantos. Nunca duvidei do amor dela por mim, pelo contrário, mas ouvir aquilo fazia a vida ter um sentido. Ficamos abraçados um bom tempo. Depois fomos para dentro da casa, encontramos nossa família preparando o almoço.
O Quintino colocava as louças na mesa. Meu irmão preparava um suco de maracujá, enquanto a Rêh temperava uma salada. Papai ficou responsável pela frango no forno. Pela primeira vez, a gente agia como uma família normal, sabe? Eu gostava daquilo. Apesar das nossas diferenças, o amor continuava nos rondando, lembrando que cada um possuía um papel importante.
Após o almoço, a mamãe ligou para a tia Ana, acho que para mostrar a carta do vovô. Saí para procurar o André. O encontrei alimentando os cavalos. Ele estava lindo, como sempre conversando com os animais. Fiquei assistindo a cena por um tempo, não queria perder um minuto daquilo.
Nunca pensei em me apaixonar por outro homem, mas o André extraia o melhor de mim. Além de bonito, ele era gentil, atencioso e humilde, sempre disposto a aprender e vencer as dificuldades. Sabia também que o André gostava de mim. Não sei se foi toda a história do vovô ou o fato de uma doença quase acabar comigo, mas cheguei perto dele e o beijei.
Não foi um beijinho ou selinho. Explorei cada parte do André naquele momento. Não me importei se alguém poderia olhar. A senhora deve estar rindo, mas caramba, fiz o meu primeiro beijo valer a pena. O André também não ficou para trás, acariciava meus cabelos com uma mão, enquanto usava a outra para pegar em meu rosto.
— Higor. — Ele disse se afastando, mas ainda abraçado comigo. — Estou todo sujo e...
— Ei, não estraga o momento. — Pedi o cortando e beijando seus lábios novamente.
Ficamos no celeiro por um bom tempo. Esqueci o mundo naqueles braços. Não liguei para o corpo suado do André, talvez isso tenha deixado a situação mais excitante. Ele me encostou contra a parede e sorriu. Aquele maldito sorriso, sempre ele. A minha cabeça não entendeu o que estava acontecendo, imagino os meus neurônios brigando para decifrar quais eram aqueles sentimentos. Afinal, como um adolescente virgem e BV, os coitados tiveram que decifrar tudo aquilo.
— Ei, Romeu e Julius! — Gritou Quintino nos assustando.
— Não é o que você está pensando. — Tentou explicar, André, nervoso.
— Sei muito bem o que vi. Você tentando tirar as amígdalas do Higor. — Ele falou num tom irônico.
— Relaxa, André. Ele sabe. — Disse pegando no rosto do André. — Ele sabe. Não se preocupa.
— E não ligo a mínima. — Soltou Quintino. — Agora vamos para a parte interessante? Quero fazer amor com os dois. — Ele sugeriu se aproximando de nós.
— O quê? — Perguntou André assustando e se afastando do Quintino.
— Para Quintino. Deixa de ser idiota. — Repreendi batendo na cabeça do meu primo.
— Desculpa. Não resisti. Poxa, homem do campo, sinto muito te decepcionar, mas sou hétero. — Ele comentou pegando no ombro do André, que suspirou aliviado.
Peguei no ombro do André e pude sentir o seu coração palpitar forte. Tadinho. Aproveitei o momento para falar do prêmio deixado pelo vovô. Nós decidimos pegar os cavalos e partir para a biblioteca. Na carta, o seu Aroldo revelou que o tesouro estava localizando atrás de um quadro.
Chegamos em um tempo recorde, nem amarramos os cavalos direito. O Quintino abriu a porta e entramos desesperados. Haviam poucos quadros, mas encontramos o cofre atrás de um quadro de dois homens se abraçando. Ao abrir, mais uma surpresa: era necessário uma senha para acessar o interior do cofre.
Lembrei da data que o vovô falou que havia conhecido o Rodolfo. Dia 20 de março de 1978. Girei o mecanismo para os números correspondente e um clique nos deixou na expectativa. Olhei para os dois e quase chorei. O vovô era a melhor pessoa do mundo. Acredito que ele nunca pensou que iríamos fazer a caça ao tesouro durante uma pandemia.
Os olhos do Quintino quase saíram da órbita quando viu dois relógios. Quase não esperou e tirou os objetos. "Os rolexes são meus", ele gritou se afastando de nós. Revirei os olhos e continuei tirando as coisas de dentro do cofre. Haviam documentos, na verdade, aplicações feitas pelo vovô no ano anterior. Além de dois maços de dinheiro.
Enquanto contava o dinheiro, Quintino corria de um lado para o outro soltando informações sobre os relógios. O André apenas sorria, ainda sem entender o que estava acontecendo.
— Quintino, você está parecendo uma adolescente que marcou o primeiro encontro. — Falei, sem tirar os olhos do dinheiro.
— Lasquem—se. Tenho dois rolexes. — Soltando gritinhos e saltitando de um lado para o outro.
— Caramba. Tem 10 mil reais. — Anunciei olhando para eles.
Dividi o dinheiro em três maços diferentes. Olhamos também os documentos para saber mais sobre os investimentos feitos pelo seu Aroldo. Percebemos que todos estavam ligados com a fazenda. Um deles dava direito a 100 cabeças de boi. Como aquilo estava sendo administrado? Acho que teríamos que recorrer aos advogados dele.
— Pega. — Entreguei dois maços para o André.
— Higor, não precisa. — Ele tentou negar.
— Pega minha parte também homem do campo. — Pediu Quintino entregando o resto do dinheiro para o André.
— Gente, isso é de vocês. Eu não preciso.
— André, você merece esse dinheiro tanto quanto a gente. Você nos deu coragem para continuar, sempre esteve disposto a nos ajudar. Aceita, por favor. — Falei pegando na mão dele que tremia bastante.
— Nunca tive tanto dinheiro assim. Vou poder fazer um supletivo. Obrigado. — Ele agradeceu nos abraçando.
— Fica muito estranho se eu usar os dois relógios? — Perguntou Quintino.
— Sim. — Soltei.
— Infelizmente. — Disse André rindo.
Retornamos para a fazenda com sorrisos nos nossos rostos e a sensação de dever cumprido. O Quintino estava no céu, e em cinco a cinco minutos soltava uma curiosidade sobre os relógios. Quase mandei ele calar a boca, mas não queria estragar a felicidade alheia. Deixamos os cavalos nos estábulos e dei um jeito de me livrar do chatonildo. Queria aproveitar mais os lábios do André.
Aquilo tudo era novo para mim. Não sabia se tinha algum tipo de etiqueta para relacionamentos. Novamente pude sentir aquela boca perfeita colada na minha, o André sabia exatamente o que estava fazendo, cada beijo e toque. Os hormônios de adolescente estavam à flor da pele. Tentava explorar o corpo do André, só não tinha ideia de como fazer.
— Ei, relaxa. Vamos ter todo o tempo do mundo. — Ele interveio. — Higor, gosto muito de você. Quero fazer as coisas com calma.
— Eu entendo, desculpa. Nunca tive um namor... digo, nunca fiquei com ninguém. Desculpa, esquece tudo o que eu falei e...
— Você é muito fofo, Higor. Caramba, você conseguiu virar minha vida de cabeça para baixo. Lembra que eu caí do Nescau quando a gente se encontrou no estacionamento? — Lembrou André, tocando no meu rosto.
— Sim. Fiquei preocupado. — Confessei.
— Falei para a Rosa que tinha me distraído, e não menti. Você foi responsável pela minha distração, Higor. Só que nunca imaginei que isso fosse se tornar realidade. Afinal, sou um analfabeto, pobre e sem qualquer tipo de atrativo.
— André, longe disso. Pode ter certeza que você é a pessoal mais íntegra que conheci. Valeu a pena tudo o que vivi contigo.
— Higor!!! — Gritou Quintino entrando desesperado no celeiro.
— Que susto, Quintino. — O repreendi.
— A Rosa. Está acontecendo alguma coisa. — Ele explicou quase chorando.
Não pensei em nada, Doutora. Apenas corri de volta para casa. Encontrei meus pais conversando com a equipe médica. A Nadine não parecia nada animada. Segundo eles, a Rosa reagiu ao tratamento inicial, mas seus pulmões estavam ficando comprometidos. Um novo equipamento para uma abordagem mais intensa chegaria na fazenda.
O doutor explicou que eles precisariam de um quarto maior e com portas largas, pelo jeito, a única opção seria o meu. O Quintino ofereceu para me abrigar se fosse necessário. Eu nem ligava para onde dormiria, só queria que o novo tratamento começasse logo. A Rosa era uma das pessoas mais importantes da minha vida.
— Vou ser sincero, a dona Rosa está lutando para sobreviver. Mas, vocês precisam estar preparados. — Falou o médico.
"Beija eu!
Beija eu!
Beija eu, me beija
Deixa
O que seja ser
Então beba e receba
Meu corpo no seu
Corpo eu, no meu corpo
Deixa!
Eu me deixo
Anoiteça e amanheça"
(Marisa Monte)