O Conto dos Traidores

Um conto erótico de Bryan
Categoria: Homossexual
Contém 2384 palavras
Data: 22/04/2018 23:55:07
Última revisão: 23/04/2018 00:03:46

A cidade parecia gelada, com seus prédios tão altos erguendo-se entre o concreto e o asfalto, com seus vidros reluzindo a luz do pôr-do-sol. Era tudo limpo e vazio, com o alaranjado do entardecer passando dos prédios para a rua. As lojas fechadas e os bancos vazios da principal rua comercial de Curitiba começavam a ser engolidos pelas sombras geladas. O clima sempre foi assim nessa época do ano, mas não nos dias atuais. O frio certo era escasso, assim como muitas previsões perdidas. Não havia sinal humano na cidade, assim como não havia sinal dos faraós em meio as pirâmides. Ambas construções eram resquícios de povos mortos. Ao menos, morrendo.

Eu estava em meio ao calçadão, olhando para a cidade escurecer como se não lembrasse de toda vivacidade dos tempos passados. Sinceramente, a sociedade sempre foi pouco ou demais para mim. Era odiar ou amar. E por isso, sempre me afastei aos cantos e beiradas dos tumultos e multidões. Eu era do tipo que observava atemporalmente os erros dos séculos anteriores serem repetidos, porque gritar não adiantaria em meio a surdos. Mas não é sobre a estupidez social de todas as eras que vocês querem saber. O que lhes contarei, talvez seja a história de um anônimo, ou de um morto ou de um preso.

Eu sempre tive essa mania de ficar parado, olhando para pequenos detalhes e sensações que me animavam. Eram cinco anos atrás, o terceiro ano do mandato do nosso presidente militar. Ele era a segurança do povo, o defensor máximo das liberdades que nosso país precisava que fossem garantidas. E ele combateu em todos os seus anos a opressão que temíamos, mas para alguns, como eu, isso ainda era pouco. O mundo vivia um caos silencioso de pessoas desesperadas por paz e em meio aos perigos, o maior ato do nosso presidente foi uma lei anti-gilead, similar as proibições de propagação nazista que vigoravam no país desde o século XX.

Meu trabalho era num laboratório estadual, acordava todo dia as seis. Pegava metrô as sete, descia as sete e meia. Caminhava pela calçada e nos últimos meses eu encontrava do outro lado da rua em frente ao prédio do laboratório, os mesmo dois soldados. Um deles excessivamente alto, e outro um pouco mais alto que eu. Eles representavam uma fina linha de medo e advertência as pessoas que os vissem, uma segurança contra a mínima possibilidade de ataques ou protestos contra as pesquisas governamentais, dos quais eu fazia parte.

O soldado mais baixo tinha cabelos castanhos, olhos verdes e um maxilar definido. Ele sempre sorria para mim quando eu passava. Quando eu era jovem, eu provavelmente me apaixonaria por esse simples gesto. Sempre fui uma pessoa que se apaixonava fácil pelos pequenos detalhes das pessoas. O problema era conviver com elas.

Numa sexta-feira após uma semana estressante no trabalho, porque minha pesquisa era desconsiderada por meus superiores, saí mais cedo e encontrei nas portas do edifício, o soldado que me encarava toda manhã. Assim que os elevadores abriram as portas eu vi ele, e antes que eu me desse conta, um sorriso largo dominava meu rosto. O suficiente para fazê-lo caminhar em minha direção e falar comigo pela primeira vez.

_Tudo bem?

_Claro_ Minha voz falhou por um segundo, evidenciando meu nervosismo em conversar com ele. Mas confesso que em minha mente, já tinha imaginado conversas banais do tipo diversas vezes.

_Meu amigo foi usar o banheiro aqui..._ Sabe aquele momento constrangedor entre duas pessoas? Meu rosto deveria estar completamente vermelho. Sem saber o que fazer, sorri mais uma vez.

_Sempre te vejo do outro lado da rua.

_É um saco ficar de pé tantas horas, cansativo_ Acho que ainda não contei para vocês sobre como eu reparava no corpo dele no uniforme militar. Se vocês me compreendem, sabem que é impossível ver um cara uniformizado e não prestar atenção.

Eu andei até a rua, ele me acompanhou, como se soubesse que na segunda-feira provavelmente continuaríamos distantes, como dois conhecidos se encontrando diariamente.

_Sabe, sempre me pergunto o que vocês fazem nesse prédio_ Ele falou sorrindo, se divertindo das suposições que tinha feito mentalmente.

_A maioria de nós trabalhamos em fertilidade humana. Eu até tinha feito doutorado em virologia, mas não adiantou muito.

Já estávamos na esquina, paramos e nos olhamos. Não havia paixão ou romance, apenas aquela absorção um do outro, como quando você encontra aquele crush na rua e não consegue para de prestar atenção. Vapor saia de nossas bocas, eu amava o frio do entardecer.

_Eu deveria voltar, se meu colega não me encontrar lá pode achar que tem algo errado…

_Eu sei.

_Nos vemos segundo, não é?

Concordei com a cabeça e dei um aperto de mão. Cada um se virou para caminhos opostos e começamos a nos distanciar. Minha mente se remoía de possibilidade e possíveis arrependimentos caso voltássemos a apenas encarar um ao outro na segunda. Mordi meu lábio inferior e antes que pensasse, me virei para trás.

_Me chamo Bryan_ Gritei, ele se virou e me encarou, sorrindo.

_Pode me chamar de Felipe.

E assim nos conhecemos. Algo me freava no interior, mas essa mesma precaução me fez passar anos sozinho sem relacionamentos sérios. Eu não deveria trabalhar no sábado, mas resolvi ir mesmo assim. Passei o dia no laboratório, estudando as taxas de fertilidades de animais com comportamentos homossexuais comparados com pesquisas anteriores feitas no início do século XXI. Sempre gostei do que fazia , apesar dos problemas para fazer as pessoas verem as possibilidades que eu via em meus estudos. Ao sair sábado do trabalho, caia uma chuva forte na cidade. Os soldados que vigiavam o edifício do outro lado da rua estavam abrigados num furgão, Felipe no motorista.

Eu cheguei até a marquise do prédio e olhei para a chuva, incerto se chamava um carro ou esperava passar. Peguei meu celular do bolso quando vi Felipe abrindo a porta do carro e atravessando correndo a chuva com um guarda-chuva. Ele ficou ensopado em segundo, com os cabelos molhados caindo em sua testa e seus lábios num tom avermelhado mais forte.

_Você vai se resfriar_ Sim, minha frase para ele foi a mesma que a mãe dele diria. Eu sou péssimo em relacionamentos com pessoas, droga.

_Trocaram minha escala, não vou mais ficar aqui_ falou Felipe, eu não sabia se havia algum desapontamento na sua voz ou se, talvez, ele mesmo tenha pedido para ser transferido para outro lugar. Concordei com a cabeça, sem saber o que dizer e olhei para o chão.

Tinha medo de olhar para o soldado a minha frente porque eu sabia que seria a última vez que nos veríamos. Mais do que isso, eu estava frustrado por me sentir mal com isso. Desde jovem eu aprendi da pior maneira que os colegas se vão, pessoas morrem e amizades não duram para sempre. Eu me senti ingênuo como um adolescente, não que fosse completamente ruim, pois às vezes eu sentia falta dessas idiotices além dos deveres. Essa sensação de prazer, medo, euforia por estar com alguém que gosta. Me lembrei da última noite, quando me masturbei por vários minutos com o soldado vindo na minha mente mesmo sem eu querer.

_Eu esqueci minhas chaves no laboratório, vou…

Me virei para voltar para dentro do edifício, mas Felipe me pegou pelo punho e me puxou em sua direção. Antes que eu pudesse reagir ou problematizar, eu já estava o beijando e sentindo a umidade e calor do corpo dele misturando-se ao meu. Seu corpo uniformizado me excitava mil vezes ao toque de suas mãos em minhas costas. Meu braço direito passou pelo ombro dele enquanto minha mão esquerda repousou em seu peito.

Foi o momento mais feliz do meu ano. Mas o beijo foi bruscamente parado com uma pontada aguda na minha coxa que separou nossos lábios sem aviso. A chuva estava alta, não entendia o que acontecia. Foi quando ouvi o som dos vidros do prédio se quebrando ao mesmo tempo que caia com o impacto da bala que me acertara. Felipe agachou-se ao meu lado e me puxou para dentro do prédio, em direção ao elevador. Um rastro de sangue ficou no chão enquanto eu tentava ficar de pé novamente, mas uma dor forte na coxa me impedia.

Do outro lado da rua vimos o primeiro atirador surgir em meio a chuva. Ele deu um tiro no furgão, matando de primeira o colega de farda de Felipe. Eu sentia seu corpo atrás, de mim, procurando na cintura, mas ele tinha a deixado no carro. Suas mãos voltaram a apertar o botão do elevador rapidamente.

O som do elevador chegando nos deu esperança. Falei com dificuldades o código de segurança para abrir o elevador enquanto Felipe procurou em meus bolsos pelo cartão. Essa segurança básica poderia ser a nossa salvação caso conseguíssemos subir para outro andar.

Mais duas pessoas surgiram na chuva, ambas quase entrando no prédio. Eles não atiraram em nós, por mais que tivessem uma visão limpa e proximidade muito maior. Só podiam saber que não teríamos muita possibilidade de viver. Contavam como certo a nossa morte.

Felipe passou meu cartão no painel da parede e começou a digitar a senha, deixando marcas vermelhas por causa do sangue que ficou em suas mãos ao tentar apertar o ferimento da minha coxa. As portas se abriram e ele me arrastou para dentro do elevador. Ele se ergueu de pé, até alcançar um botão vermelho na parte de cima da entrada e o apertou. Era um botão de emergência especialmente para a possibilidade de um ataque. As portas se fecharam ao mesmo tempo que rajadas de tiro eclodiram.

Pensamentos confusos passavam pela minha cabeça, talvez pela perda de sangue. Eu achava que extremistas como esses que nos atacavam, estariam repetindo o mesmo em outros lugares do governo. Eu tinha certeza que alguma artéria tinha sido atingida bala que me acertou, havia muito sangue e meus olhos já começavam a pesar de sono como efeito colateral.

_Um aviso foi enviado à polícia e as agências do governo ao apertar o botão_ Murmurou Felipe, tentando tranquilizar a si mesmo enquanto o elevador subia. Ele sabia que quando as portas abrissem, haveria pânico. Mal sabia ele que as portas não chegariam a abrir, já que explosivos eram posicionados nas portas de saídas de emergência. Assim que os explosivos detonaram, o elevador estremeceu e parou de funcionar.

Se a vida fosse um filme, Felipe tentaria me salvar. Mas éramos pessoas crescidas e ambos sabíamos o que aconteceria. Eu era a pessoa que ele conversou pelo segundo dia. Uma vida singular versus várias vidas que morreriam se os seguranças não percebessem o que acontecia. Com o elevador parado, o soldado tirou a escotilha de segurança e com a força que tinha, tentou abrir as portas do primeiro andar. O soldado não sabia porém, que naquele sábado com poucos funcionários, os extremistas só precisavam chegar até o primeiro andar e acionar um alarme de incêndio. As pessoas começariam a descer as escadas de emergência até serem encurraladas e mortas como animais. Era um corrida contra o tempo, eu sangrava até a morte enquanto Felipe tentava abrir as portas do elevador a força. Por sorte, só precisou abrir uma fresta grande o suficiente para que um segurança que ficava de guarda ali visse e percebesse os problemas. Imediatamente o segurança colocaria o edifício em alerta máximo enquanto os primeiros carros de polícia e exército já chegavam por causa do alarme acionado por Felipe no elevador.

Esse foi o primeiro ataque terrorista no Brasil, amplamente divulgado e sensacionalizado, gerando medo e algumas ações do governo para impedir que isso se repetisse. Incluindo o direito de forças militares entrarem em casas de pessoas suspeitas de violarem as leis anti-gilead.

Eu sobrevivi ao atentado. Felipe foi condecorado e promovido. Eventualmente ele ganhou novas responsabilidades e nos afastamos. Nos encontrávamos muito nos fins de semana, apesar de nunca chegarmos a morar juntos. Dois anos depois Felipe foi novamente promovido, o que o levou a se mudar para Rio Grande do Sul. Quanto a mim, continuei me dedicando ao trabalho. Ainda não sou bom de relacionamentos e meus estudos profissionais foram encerrados enquanto fui realocado para pesquisas de combates a radiação.

A cidade sempre parece gelada, com seus prédios tão altos erguendo-se entre o concreto e o asfalto. O calçadão estava vazio, o medo da população por causa da fertilidade ou do extremismo os fazia ficar em casa exceto para ir trabalhar. Eu me encolhi no banco em que estava, observando o entardecer gelado. Eu acompanhava o declínio de uma civilização.

Abracei a mim mesmo e fui me levantar do banco, quando senti a mão firme me segurar. Olhei em direção a pessoa que me tocava, algo íntimo para alguém como eu. E ali, parado perto de mim, com um sorriso largo, estava ele. O meu soldado. Felipe, com um uniforme cheio de condecorações e uma força invisível que o tornava numa fortaleza. A minha fortaleza. Algo dentro de mim se retraiu, não negarei. Tinha medo de saber que esse súbito reencontro seria algo tão rápido quanto o que tivemos seis anos atrás. Mas ao mesmo tempo, eu sentia na eletricidade do ar que aquele momento mudaria minha vida. Que ele não me abandonaria.

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Esse é um conto único, ou seja, não haverá necessariamente uma continuação. A história deveria ter mais acontecimentos, mas acabei me atendo ao atentado que uniu e separou Felipe e Bryan no passado deles, para não alongar o texto mais do que alonguei.

Essa história é a primeira de um projeto meu de, conforme minha inspiração, desenvolver contos com visões homossexuais de seriados.

Essa fanfic faz parte do universo de The Handmaid's Tale, O Conto da Aia, mostrado de uma perspectiva brasileira. Na minha visão, o extremismo no Estados Unidos acabou gerando e incitando alguns grupos terroristas em algumas partes ao redor do mundo, inspirados nos Filhos de Jacó. Como medida por causa da pressão popular, o governo proibiu qualquer manifestação em apoio a República de Gilead. Espero em breve postar outra história, em que medidas mais drásticas contra a Gilead serão tomadas no Brasil.

*PS: o nome da história é uma referência ao nome original (Conto da Aia) misturado com Traidores de Gêneros, como são chamados LGBTs pelos Filhos de Jacó.


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