Você acha que existe profissão ruim? Vamos lá, cite uma. Ok, cite até três, se preferir. Pensou? Ok, agora jogue as opções no lixo. Sabe porque? Porque não há nada pior do que ser um estagiário. Você trabalha muito, é xingado pra cacete, todos botam a culpa dos erros em você, pra no final das contas você ganhar uma merreca de “bolsa”, porque o infeliz que chamar aquilo de salário merece um soco.
– Não, doutor. O seu arquivo tem que ter até 1.5MB pra ser upado, senão o Pje não aceita. - esclareci, pela quarta vez, enquanto massageava minhas têmporas com agitação e conferia o relógio. Chegaria atrasado na faculdade mais uma vez.
– E agora, doutor?
Sim, uma das várias manias dos profissionais de Direito é sair chamando todo mundo de doutor quando não lembra do seu nome.
– O senhor tem que dividir o arquivo em três partes. - repeti o mesmo discurso que sempre dirigia para aquele advogado em especial, e que ele fazia questão de sempre trazer um arquivo com mais de 4MB.
– Como faz isso? - perguntou, a calma ali, estampada no seu rosto já com marcas evidentes da idade. Em geral, ele era um senhor simpático. Mas, sabe quando você está totalmente estressado e qualquer suspiro de quem quer que esteja ao seu redor, é motivo para aumentar o estresse? Pois bem. Eu estava tendo um dia assim.
– Eu faço para o senhor. - me prontifiquei, já levantando da cadeira e me dirigindo ao terminal que ele estava usando.
Aqui na Carvalho & Fontana Associados, há uma sala destinada ao suporte dos advogados que vez ou outra prestam assistência à firma, ou até mesmo aos advogados nossos que precisam de algum serviço do estagiário – vulgo eu – como escanear processos, fazer cópias de documentos, protocolar ações e prestar suporte a advogados mais idosos que não sabem como manusear o sistema eletrônico da justiça.
Pedi licença e me sentei onde ele estava, acessando um programa de otimização e divisão de PDFs e fazendo o que eu havia lhe aconselhado minutos atrás. Resultado: em menos de 10 minutos (o Pje consegue ser a pior coisa do mundo no quesito agilidade) a ação havia sido protocolada. Imprimi o comprovante para o advogado, o qual ficou extremamente agradecido. A sinceridade das pessoas mais velhas é fácil de ser notada, e é confortante também. Meu estresse até diminuiu mais.
– Desculpe ter feito você passar do horário, doutor. - falou, ao pegar o celular para guardar no bolso e acabar vendo a hora. Todos tinham noção de que o expediente da firma ia até as 18h, e já era quase 18h30. – Você estuda pela manhã ou à noite?
– Os dois, doutor. Tô pagando uma pendência a noite, e hoje é dia de aula da dita disciplina. - respondi, pegando minha mochila que ficava embaixo da mesa. Nela sempre tinha uma muda de roupa limpa, até porque eu não gostava de chegar na faculdade todo de social nos dias em que saía do estágio direto pra lá.
– Então, pegue. - olhei em sua direção e vi a mão estendida com uma nota de vinte reais. – Pelo menos o seu lanche na faculdade está garantido.
– Não posso aceitar, doutor. Se meus chefes descobrem, vai dar errado.
– Bem, só tem eu e você aqui. E eu sei que não vou dizer nada a ninguém.
– Sendo assim, muito obrigado. - agradeci o advogado vovô com aquela famosa expressão facial de “não precisava...”.
Ele respondeu com um aceno e logo saiu da sala. Desliguei os terminais, o ar condicionado e as luzes. Hoje não daria tempo tomar banho, então fui até o vestiário dos funcionários apenas para trocar de roupa. O Jean estava terminando de trocar de roupa, pronto para sair. Ele era um dos vigias, então se ele estava ali, é porque o outro já havia assumido o turno da noite. Tive que me controlar para não encarar as pernas torneadas, branquinhas e com alguns pelos castanhos. Ele era o tipo de cara que quase não tem pelos, mas os que tem conferem um charme peculiar. Fora que o conjunto altura + olhos castanhos + cabelo de bom moço em um corpo que as mentes pervertidas se esbaldam, era uma tentação e tanto.
– E aí, Guga! Belezinha? - saudou ele, a animação de sempre.
– Fala, Jean. Tirando a parte em que vou chegar atrasado na faculdade, tá tudo de boa. - respondi, tirando os sapatos sociais e trocando por sapatênis. Por sorte eu estava usando um jeans escuro naquele dia, então economizaria tempo. – Ô, Jean. Rola aquela carona solidária hoje? – não custava pedir, certo? Até porque sempre que podia ele me levava, sem fazer questão, e isso porque sua casa era no mesmo bairro.
– Rola sim, doutorzinho. – garantiu, indo até seu armário e retirando o capacete reserva que possuía. – Termina de se aprontar aí que a gente desce.
***
– Valeu, Jean. Semana que vem eu deixo de te pedir carona, mas essa tu bota na conta. – agradeci, fazendo menção ao mesmo tempo da conversa que tivemos na descida até o estacionamento lá na firma. Eu havia conseguido juntar uma grana bacana depois de um ano juntando, e os meus pais falaram que daqui pro fim de semana (era uma quinta) me davam o restante para comprar minha moto. Concordaram que a cidade estava perigosa, e como moravam em outra cidade, não tinham como me deixar e/ou pegar na aula. Lógico que dessa vez eu não fiz a cara de “não precisava...”.
– Relaxa! – exclamou, o sorriso grandão no rosto novamente ao prender o capacete reserva no bagageiro. – Nos vemos amanhã na firma. Boa aula! – mal consegui responder de volta e ele já saiu acelerando na rua.
Mal dei dez passos em direção à faculdade e senti alguém enroscar o braço no meu. – Deu pra’quele gato?
Gargalhei. Nem precisaria ter olhado na cara da safada pra saber de quem se tratava. Kamila. Essas coisas só podem vir dela. Isso sem contar com o fato de que pouquíssimas pessoas tem conhecimento sobre minha opção sexual, e ela é uma delas. Não é a toa. A infeliz é uma grande amiga. Uma grande amiga loira – tingida, mas loira –, baixinha e das bochechas com vontade de apertar pela eternidade. Seu senso de humor era totalmente proporcional com sua sinceridade.
– Não, não dei. - respondi, sem conseguir evitar imaginar uma cena entre eu e o Jean.
– Tu tá muito comportado esses dias. - afirmou ela, franzindo o cenho na minha direção. Subimos uma rampa que dava acesso ao bloco de Humanas, e foi aí que descobri que ela estava segurando um espetinho na outra mão.
– Tô sem tempo, já te disse. – arranquei o espetinho da mão dela e comi dois pedaços de frango com bacon. Isso explica porque ela me achou tão rápido depois que cheguei. Devia estar em um dos food-trucks que ficam estacionados fora da faculdade.
– Oxe, e tem que ter tempo pra ser dadeiro é? – mais uma gargalhada.
– Eu já disse a você que eu também sou ativo.
– Guga, eu também dou o cu, apesar de doer pra cacete às vezes. - disse ao fazer uma careta, como se lembrasse da sua primeira vez. – Então, eu sei que tu gosta.
– Tá, eu saio com casais e você sabe. Mais uma prova de que eu curto tudo.
E não era mentira. Vira e mexe quando algum casal aparece no D4 querendo curtir, eu vou, desde que sejam bacanas, óbvio. O que filtrava bastante a saída com os ditos casais, é que eu só curtia sair com aqueles que eram bi, até porque pra comer a esposa eu tinha que estar com tesão, e meu tesão ativava com um cara do lado que curtisse a brincadeira.
– Aí já é modernidade demais pra mim. - resmungou ela antes de acenar para uma outra amiga nossa que vinha em nossa direção, igualmente doida. – Achei que estava doente.
– Eu ia estar, mas meu contatinho não conseguiu meu atestado. - confessou, fazendo beicinho enquanto fazia um passo aleatório de balé enquanto vinha em minha direção.
Graças às aulas de dança, ela tinha um par de pernas de dar inveja a muita garota por aí, além dos olhos claros em tons de verde e os cabelos ondulados castanhos, que nunca tinham um penteado padrão a ser seguido. Fora isso, nossa amizade era tanta que fomos reprovados na mesma cadeira.
– Ah, infame! - exclamei, lembrando-me do fato de que, quando Larissa queria, conseguia um atestado com uma facilidade assombrosa.
– Infame nada, esperta. – corrigiu ela, me dando um abraço. – Que cara é essa, hein? Comeu comida estragada ou tá sem dar?
Revirei os olhos e contive uma risada.
– Taquepariu. Cês são foda viu? – puxei as duas e sussurrei, olhando antes para ambos os lados. – Continuem falando assim, que daqui a pouco vão começar a ouvir vocês falando essas coisas e saberão sobre mim.
– Relaxe, que tu não da pinta não. - me garantiu Kamila antes de seguirmos em direção à nossa sala. Seu olhar sério me fez perceber que além de uma garantia, aquela era sua forma de pedir desculpas em caso de ter extrapolado.
Falei com alguns amigos e colegas que fui encontrando no caminho e em questão de minutos, chegamos ao destino.
Estava conversando trivialidades com o pessoal da turma quando meu celular começou a tocar. Retirei o celular do bolso e estranhei quando vi o nome de um dos meus chefes, o sr. Carlos Fontana. Saí da sala e atendi.
– Boa noite, Augusto. Tudo bem? – ele não me deixou responder. – Desculpe atrapalhar sua noite, mas meu estagiário esqueceu uma pasta com os documentos de um processo que terá audiência amanhã. – realmente, o Pedro foi bater papo lá na sala hoje pouco depois do horário de almoço, até guardei a provável pasta dele em um dos armários, sem saber que pertencia a ele. – Eu estou precisando deles no momento.
Porra! Só faltava ele dizer que queria que eu fosse até a firma.
– Você pode ir até a firma? – merda. Precisava inventar algo. Iria usar a desculpa de que tinha uma prova.
– Doutor, eu estou na faculdade. Terá uma –
– Ótimo! Meu filho também está aí, o nome dele é Vinícius. - quanto azar um estagiário poderia ter? – Vou pedir pra ele te encontrar na entrada em 10 minutos. Depois que pegar a pasta e entregar a ele, o mesmo vai te deixar de volta na faculdade ou até mesmo em casa. Obrigado pelo favor, Augusto! - e desligou.
Praguejei até os deuses do Olimpo. Entrei na sala, peguei minhas coisas e saí de lá indo em direção à entrada da faculdade, demorando um pouco apenas para explicar às meninas o que tinha acontecido.
Quase no mesmo momento que cheguei até o local combinado, um Corolla preto chegou também. Parei na entrada e fiquei esperando pra ver se o motorista ia se identificar. Eu é que não ia chegar no carro alheio perguntando se ele era o dito filho do meu chefe. O vidro foi baixado e eu pude ver um cara charmoso, de mais ou menos vinte e dois ou vinte e quatro anos, vestido com uma pólo de marca, assim como o relógio dourado no pulso esquerdo.
– Você é a droga do estagiário que manchou meu esquema da noite? – como diz o lema do estagiário: tudo sempre pode piorar.
Boa noite, pessoal! Tranquilo? Espero que tenham gostado desse capítulo. Fico no aguardo do feedback de vocês. Não sei se ficou muito longo, porque digitei no Word e lá a pessoa perde um pouco a noção de tamanho em como ficará aqui no site. Abraço por trás, cambada!