PARTE 8
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Na mesa da sala, somente os cadernos abertos e os livros empilhados me lembravam que estávamos ali para estudar. Já o Leandro ao meu lado, grifando passagens de textos e explicando a matéria, apenas servia para que eu desejasse fazer tudo com ele menos aprender português...
- você reparou que o verbo “existir” é pessoal, concordando com o sujeito da oração? Por isso que o certo não é “existe cem pessoas no local”, e sim “existem cem pessoas no local”. Já o verbo “fazer”...
Eu basicamente escutava e assentia com a cabeça em concordância, mesmo tendo dúvidas. Não que ele fosse um mau professor, longe disso, mas depois de uma hora lendo e decorando regras de gramática eu só queria que o conteúdo acabasse logo. E tinha aquela fragrância... O Leandro usava algum perfume amadeirado que fazia eu querer me aproximar cada vez mais do seu pescoço só para cheirar diretamente a sua pele, tornando a obrigação de me concentrar nos verbos pessoais uma tortura.
Depois de terminar parte da matéria fiz alguns exercícios sem sua ajuda, para praticar. Enquanto esperava eu acabar para corrigir, o Leandro pegou um livro da sua mochila, abriu na parte onde estava o marcador de página e começou a ler.
Alguns minutos e questões respondidas depois, levantei a cabeça do caderno e li o título da obra:
- “O Lobo da Estepe”... É sobre o quê?
- Hummm... Bom, como vou explicar... – ele respondeu enquanto repousava o livro em cima da mesa, pensativo. Parecia se esforçar para encontrar as palavras exatas. – É sobre um cara na casa dos 50 anos, alcoólatra, bastante culto..., mas bastante atormentado também. É alguém que escolhe se isolar da sociedade sem sair dela, já que seu modo de pensar e ver as coisas não bate com o de mais ninguém.
- Entendi... Ele parece ser um sujeito terrivelmente chato de se conviver, então. – Foi só o que consegui dizer, sentindo vergonha por não saber como soar mais interessado e interessante para o Leandro. Ele riu.
- Sim, sim... Não é um personagem dos mais agradáveis. Mas também é uma pessoa autêntica, que leva a vida sem sentir obrigação de agradar todo mundo.
Como ele conseguia ser tão intelectual e gato ao mesmo tempo? E quando sorria então, a boca levemente entortada para o lado, parecia até uma afronta para os menos favorecidos. Aproveitei que já tinha começado a conversar para saber mais do Leandro:
- Esse seu lance com os livros, de onde veio?
- Você quer saber por que gosto de ler, é isso?
- Isso.
- Acho que tive uma infância meio... digamos assim, solitária... Nenhum irmão, poucos primos, todos bem mais velhos. Meus livros foram meus únicos amigos por um bom tempo, saca? Minha mãe morreu quando eu era bastante novo. Lembro que ela lia muito pra mim, antes de dormir. – Ele falou pausadamente, como se estivesse relembrando aos poucos uma memória tão distante que parecia pertencer à outra pessoa. – Uma vez, ela comprou um livro enorme com 365 histórias, uma para cada dia do ano. Todas as noites era uma ansiedade, uma expectativa, sabe... pra saber como seria a história do dia... E então ela faleceu no final de junho. Faltava metade do livro. Em seu enterro, eu a vi deitada no caixão e não entendia porque ela não se levantava, era tão pequeno... Levei o livro comigo e gritava, chorava, pedia que ela acordasse logo para ler o resto.
Ele falou isso com um tom de voz tão constante e com um olhar tão perdido que parecia estar contando a cena de um filme antigo, algo fictício e fugidio. Fechando o “Lobo da Estepe” que estava em sua frente e alisando distraidamente a capa, ele concluiu:
- Depois desse dia, li todos os tipos de livros. Mas nunca mais consegui concluir a leitura do livro das 365 histórias sozinho. Acho que só faria sentido se fosse lido por ela... E eu não sei por que estou falando sobre tudo isso! Haha, desculpe... – e passou a mão detrás da cabeça levemente abaixada, sem graça.
Não havia razão para se desculpar, mas o Leandro sempre achava que poderia estar incomodando. Além disso, esse desabafo todo só porque fiz a pergunta “por que você gosta de ler?” me fez pensar se em sua vida não faltavam pessoas em quem confiar, com quem se abrir... Quis dizer que ele não precisava se sentir culpado e pedir desculpas, que ele poderia falar o que quiser pra mim. Mas, ao invés disso, reparei que o clima de estudos estava esfriando e perguntei:
- Erhh... Você não quer conhecer meu quarto, escutar música, sei lá? A gente continua os estudos quando a Alexia chegar.
- Leu meus pensamentos.
***
Antes de irmos, peguei um refrigerante na geladeira e dois copos. Pedi que o Leandro esperasse apenas uns cinco minutos do lado de fora do quarto, enquanto eu arrumava o mínimo e deixava o cômodo “habitável”. Com a porta fechada, recolhi as roupas sujas que estavam em cima das cadeiras, joguei os tênis espalhados para debaixo da cama e empurrei uns farelos de pão e bolacha que estava no criado-mudo para dentro da lixeira. Respirando fundo, girei a maçaneta e o deixei entrar.
Enquanto ele se sentava e quicava na cama para testar o colchão, eu coloquei refrigerante nos copos e os depositei na mesa de estudos que ficava no canto do quarto. Em seguida, liguei o computador para colocar música.
- Sua cama é top, cara! E de casal ainda... A minha até hoje é de solteiro, acredita? Sou tão espaçoso que fico doido pra ter uma dessas. Eu acordo e geralmente encontro a colcha no chão... Atiro tudo pro lado durante o sono! – ele disse de modo jovial, passando a mão no edredom que cobria minha cama.
- Pois eu sempre acordo no meio da noite pra ir pro outro lado da cama, quando o lugar em que eu to deitado fica quente... – falei rindo, sentado na cadeira do computador e passando o copo dele.
- Gostei desse pôster na parede. É algum lugar que você visitou?
- Não... Na verdade, é um lugar que não existe. Repara bem, é uma pintura tão realista que parece uma fotografia ampliada. Olha só, desse ângulo aqui. Viu? – eu disse, indicando a posição em que ele devia olhar - Pois é... Comprei de um artista numa exposição da Torre de TV.
- Show! É uma parada meio ilusão de ótica, né?
Aproveitei pra mostrar a ele minha coleção de álbuns de figurinhas completos, desde a edição da copa do mundo de 1994 até a última. Ele pediu também para ver meus cadernos de caligrafia, quando eu contei que tinha dificuldade em diferenciar as letras quando era pequeno (“Nossa, Edu. Juro que se não soubesse o que é esse caderno ia pensar que você fez japonês na infância! Haha”).
Deixei tocando uma lista de músicas que havia montado. Naquele momento, escutávamos “Creep”, do Radiohead. Bebendo o refrigerante aos poucos, foi somente quando ele inclinou sua cabeça para trás ao dar um gole que reparei. Havia um curativo um tanto quanto malfeito cobrindo um machucado logo abaixo da sua orelha esquerda, na lateral do pescoço. Sem pensar no que estava fazendo, levantei-me da cadeira, fui até ele e comentei enquanto ajeitava o curativo:
- Leandro, que foi esse machucado? Esses band-aids estão todos saindo já... Pera aí, deixa eu arrumar aqui.
- Não é nada! – ele falou com um misto de surpresa, por ter sido pego desprevenido, e de irritação, por eu ter reparado e ainda mexido no curativo.
E foi então que, ao repelir a minha mão com um gesto brusco de seu braço, ele fez com que eu me desequilibrasse e derrubasse quase todo o refrigerante do meu copo em mim mesmo. Com a roupa ensopada e ainda pingando na cama, olhei para um Leandro que parecia um pimentão de tanta vergonha, o vermelho invadindo todo o seu rosto.
- Foi mal... Eu não queria ter levantado o braço, foi automático... Eu...
- Tudo bem, Leandro. Sério, só vou tomar um banho. Já volto... Se quiser trocar de música, pode mexer no computador.
Peguei roupas novas para me trocar após o banho e saí do quarto. Eu não estava bravo. Na verdade, fiquei tão intrigado com a reação dele ao reparar que eu tinha visto o machucado que isso tomou conta da minha mente desde o momento em que liguei o chuveiro até o término do banho. Secando os cabelos com a toalha, pensei no que poderia estar por trás da vergonha por expor o machucado. Aquela marca parecia ser mais do que apenas um acidente.
Tirando esse contratempo, não pude evitar sorrir para meu reflexo no espelho. O Leandro no meu quarto, sentado na minha cama e vendo minhas coisas. A gente compartilhando um momento juntos, sozinhos. Até a trilha sonora era adequada, já que ele parecia curtir as mesmas músicas que eu. O único ponto negativo era o fato de eu namorar a melhor amiga dele.
Sim, eu sei que isso parece ofuscar todos os pontos positivos e engolir todas as esperanças de que sua presença pudesse vir me fazer bem. Mas mesmo não tendo nada de mais naquela tarde - a gente bebendo refrigerante no quarto e conversando bobagens -, eu sabia que construir essa lembrança com ele era tudo o que eu tinha no dia. E isso me bastava. Já estava conformado em transportá-lo para meus sonhos e continuar com a Alexia no mundo real, para não magoá-la. Eu dizia para mim mesmo que esse era o motivo (não machucar uma pessoa adorável como ela), mas a verdade é que me faltava coragem para assumir o que sentia.
Porém, a vida nos prega peças. E foi justamente isso que ela fez quando eu retornei ao quarto e vi que o Leandro tinha encontrado a minha pasta pessoal no computador. No instante em que abri a porta, vi que estava aberto um arquivo com os ícones de diversos filmes pornôs gays que eu havia baixado. Ele olhava para tela imóvel, sentado na cadeira.
Virando o rosto na minha direção, olhos arregalados, ele perguntou aquilo que eu não queria ouvir:
- Você é gay, cara?
(FIM DA PARTE 8)