O reencontro de mae e filho havia se dado de maneira inusitada, totalmente inesperada. Faziamos compras num supermercado novo e moderno, recem-inaugurado, e com nosso carrinho quase cheio de boas ofertas de congelados e superfluos da promoçao, observei quando Marquinhos escolhia caixas de bombom para levar. De repente ele parou o que estava fazendo quando uma mulher de meia idade se aproximou lhe dizendo algo, com uma expressao de choque nos belos olhos azuis. Aterrado, ele me fitou como a pedir ajuda, e larguei os pacotes de bolacha de qualquer jeito na prateleira, me aproximando deles com inquietaçao.
- Onde voce esta morando? _ ouvi a mulher perguntar, com voz tremula, tentando tocá-lo, mas ele recuou, parecendo aterrorizado.
- Tudo bem aqui? _ falei chegando perto e tocando-o no ombro; ele tremia, sem deixar de encarar a mulher _ O que houve, Marquinhos?
- A minha mae, Alex _ ele sussurrou, engolindo em seco.
- Quem e' voce? _ a mulher me olhou com atençao.
- Meu namorado _ respondeu Marquinhos, subitamente altivo, num olhar desafiador _ Veja so': ainda sou gay. Nao era por rebeldia, nao era pra fazer gracinha...
Ela fitou-o como se lamentasse profundamente, os olhos marejados. Era uma mulher bem bonita, ainda naquela idade, elegante, alta e magra. Meu anjo teve a quem puxar. Estava chocada demais para dizer qualquer outra coisa e Marquinhos, claramente magoado, deu-lhe as costas e saiu irritado daquele comprido corredor, me deixando ali com a mae dele.
- A senhora quer se reconciliar com ele? _ indaguei _ Se quiser fazer isso, saiba que as portas de nossa casa estarao abertas. Mas nao vou permitir que pisem nele de novo, certo? Nao agora, quando a vida dele se tornou fràgil demais para suportar novas dores e màgoas.
- Mas o que houve com ele? Do que voce esta falando..._ balbuciou ela, repentinamente nervosa _ Eu nao quis que fosse assim, que ele tivesse entrado por caminhos errados...
- Por favor, nao continue _ interrompi com certa impaciencia _ A senhora esta cheia de ideias equivocadas, de preconceito, e nao vou admitir que ele ouça essas coisas. Nao vou! Se quiser nos visitar, pode vir, mas deixe todos os julgamentos injustos em casa, nao traga toda essa carga ruim para nosso lar. Pode vir de coraçao aberto, e' serio. Deixo nosso endereço e nosso telefone, ok?
Puxando da bolsa uma agenda pesada e cheia de papeis dobrados, ela anotou tudo, ainda me fitando com certo ar nervoso, um tanto perplexa. Deixei-a, peguei o carrinho de compras, paguei no caixa e como suspeitei, encontrei Marquinhos jà no carro; parecia ter chorado. Me ajudou com as sacolas, e quando entramos, fechei os vidros e o abracei por longo tempo. Ele nao chorava, mas estava triste demais, me cortava o coraçao ve-lo daquele jeito; sabia que ele sentia falta da mae, e que guardava muitas magoas dela. Contei baixinho o pouco que conversei com ela e Marquinhos nao se mostrou surpreso, ele me conhecia bem, imaginava que eu teria essa atitude. Suspirou e disse apenas:
- Nao quero ouvir palavras de preconceito vindo dela, Alex. Vai me magoar muito, mais uma vez.
- Ela nao vai falar nada que o ofenda. Estabeleci essa condiçao caso ela resolva nos visitar. Nao se preocupe _ beijei-o nos cabelos _ Juro como nao deixo ninguem falar porcaria pra voce, meu anjo. Prometo.
A visita ocorreu cerca de uma semana depois, mas antes a mae dele avisou por telefone quando viria. Marquinhos esteve tenso por uns dois dias por conta daquilo, e enquanto eu pensava no que comprar para um lanche da tarde digno de oferecer à ela, o garoto era nervosismo puro. Percebi que ele tinha algumas expectativas com esse encontro, embora nao me confessasse diretamente.
Arrumamos a casa, providenciamos flores para os vasos e deixamos a janela aberta. Quando ela chegou, atenta e observadora, nos cumprimentando com certa reserva, notamos que nosso pequeno lar causou boa impressao. Fez perguntas educadas sobre nos dois, nossos empregos, nossa saude, e a questao da doença do Marquinhos e de nosso relacionamento nao foi abordada por enquanto. Ele nao perguntou pelo pai, e ela, por sua vez, tambem nada disse. Servi o chá de erva-doce, enquanto Marquinhos buscou na cozinha a travessa com o bolo de chocolate que ele mesmo tinha feito. Nao houve acusaçao, censuras, magoas vindo á tona.Nao dessa vez, embora ela tenha dito que era "duro" passar por cima de "algumas coisas desagradaveis" por amor, mas que esse era "o papel de uma mae". Em outro momento se referiu a mim como o "amigo" do filho dela, e Marquinhos nao deixou de retrucar com voz firme, afirmando que eu era, alem de "o melhor homem" que cruzou sua vida, como tambem "o melhor amigo". Enrubesci nessa hora, ajeitando os oculos para disfarçar. Ela percebeu tudo, claro, mas dissimulou seu constrangimento sorrindo para mim levemente.
Houve uma segunda visita, e nessa Marquinhos estava mais calmo, mais confiante. Talvez tenha sido por isso que ele decidiu contar tudo à ela, apos almoçarmos juntos. Falou da doença, do tratamento, de sua expectativa de vida. O horror, o choque e a incredulidade se mesclaram no rosto da mulher enquanto ele falava, e as lagrimas, claro, vieram com abundancia. Ela chorava igual a Marquinhos, de um jeito muito sentido, baixando os belos olhos e tapando nariz e boca com a mao quase fechada. Fiquei com muita pena, percebendo tambem Marcos se esforçando para nao chorar, chegando ate a ficar um pouco vermelho.
- Como isso foi acontecer, meu filho? _ indagou ela, tirando um lencinho bordado da bolsa.
- Levei uma vida muito promiscua, mae _ respondeu ele sem rodeios, suspirando _ Depois do Vitor, que a senhora achava ser meu amigo, me envolvi com outro cara e... peguei dele... Tenho quase certeza que foi dele, sim, embora tenha tambem dormido com outros. Foram muitos... Parei quando comecei a namorar o Alex, mas jà era tarde demais.
Nao gostava quando ele se culpava, era tao inutil quanto desgastante. Apertei sua mao discretamente e o olhei, passando apoio e segurança. Ele falou ainda mais coisas, contou sobre a pneumonia quase fatal que tivera, sobre os efeitos pesados da medicaçao, sobre meu apoio incondicional. Nos olhos de sua mae vi uma gratidao intensa dirigida a mim, e fiquei outra vez sem jeito. Mais tarde, Marquinhos mostrou à ela alguns exames, explicando tudo o que aprendera sobre sua doença, talvez com isso querendo puni-la de alguma forma por ter estado ausente no momento em que ele mais precisava. Vi quando ela o tocou no rosto com cuidado, com pena, com dor, e foi facil ler seu pensamento atraves daqueles pedaços de mar cinza-azulado, facil como era no meu anjo: "Ele vai morrer", pensava ela. Nao suportei aquilo, tive de ser firme.
- Tenho certeza que ele viverà ainda muitos anos. A senhora nao precisa temer pelo pior.
Ela nao respondeu nada, acho que nao acreditou nas minhas palavras. O que mais eu poderia fazer? Eles se encaravam em silencio, e Marquinhos nao se entregava, era orgulhoso, estava magoado e nao cederia facilmente. Quando se despediram houve um abraço breve e constrangido á porta, e depois ele veio para o meu lado, deitou com a cabeça no meu colo, permanecendo longo tempo num silencio pensativo.
A terceira visita ocorreu num domingo, à tarde. Antes disso, a mae dele telefonava a cada dois dias para saber como ele estava indo, e era eu quem relatava o estado de saude dele e a tranquilizava; Marquinhos ficava irritado quando vigiavam muito sua saude, por isso nao queria responder às perguntas dela (e ainda por uma magoa persistente, eu achava). Nessa visita ela trouxe uma pequena cesta com guloseimas feitas artesanalmente: biscoitos de nata, mini bolos, tijolinhos de goiabada e marmelada, brigadeiros em forminhas prateadas. Disse que era para mim. Ouvi dela que nao havia nada no mundo que recompensasse á altura tudo o que fiz pelo Marquinhos, e afirmou que eu era "um grande amigo", o "anjo da guarda" dele. Marcos ficou emocionado ouvindo isso, passou o braço por meus ombros e encostou a cabeça, como se confirmasse tudo o que ela dissera. Claro que era complicado para ela assimilar nossa relaçao, e foi isso que ouvi mais tarde, num momento em que Marquinhos preparava uma limonada na cozinha e tinha nos deixado a sos.
- Prefiro continuar pensando que sao apenas amigos, esta bem?
Nao repliquei nada. Era o ponto de vista dela, e eu nao optaria por causar conflitos sobre aquilo; meu anjo estava feliz com essa reaproximaçao e era o que importava. Tambem soube, infelizmente, que o pai dele sabia daquelas visitas e pedira apenas que ela nao tocasse no nome do filho na casa deles. Isso me deixou bem entristecido, e tive de pedir que ela nao falasse sobre isso a Marquinhos; queria poupá-lo desse desgosto.
- Acho incrivel esse cuidado seu com ele, e mais ainda, me surpreende notar que voce nao demonstra receio de pegar a doença dele _ falou ela com certa hesitaçao, nesse dia.
- Fazemos uma prevençao total _ respondi, sincero _ Mas eu nao tenho medo, de verdade. Se tivesse, nao estaria com ele ate hoje.
Na quarta visita, no sabado, ganhei mais doces (compotas e geleias feitas em casa) e ela ainda trouxe para o filho um jogo de canetas esferograficas de dez cores, importado. Ele ficou euforico como uma criança, e sorri, observando-o. Quem o fazia feliz me fazia tambem, por tabela. Foi uma tarde quase alegre ali no apartamento, eles pareciam ainda mais proximos, embora meu belo cabeça-dura ainda tivesse desconfianças quanto ao afeto vindo da mae. Mas ele a amava profundamente, era nitido.
*
*
*
*
Valeu, galera! :)
Abraços!